09 dezembro, 2023

água árida

esperamos da palavra
do poeta que ela frutifique
nos ensine e faça ver
um novo mundo novo
modo de viver a vida
plena para nós e o povo

neste tempo afeito a afetos
em pó pós-moderno pós-
humano o poeta pode só
nos sussurrar em silêncio
(do precipício das palavras)
o seu grito mais estridente

 


 

24 novembro, 2023

Enquanto Mamon enche a pança...

Argentina Israel USA
Brasil Europa Irã Médio Oriente
Rússia Índia África China
a praga fascista se alastra
de mãos dadas com a erva
daninha do fanatismo
e contra eles se ergue apenas
o terror do estado tirano
inferno contra inferno
soldados de Deus   sol-
dados da morte    a destruição
pela destruição    o mundo
reduzido a cinzas   o humano
ao rés-do-chão
ao nível
do ver-
me

 


 

17 novembro, 2023

Stella

pobre
mulher
negra
louca
analfa

todas
as marcas
todas
as chagas

vivia
no fausto
das palavras
poeta
e não
se sabia

existia
em estado
de poesia
 



31 julho, 2023

mundo miojo

não há mais
tempo
!
agora
é tudo agora

tem mix
tura fina? não
só remix

in
stante
in
stável
in
stantânea
eter
nidade

a alma
surfa a super
fície descontí
nua
de links

a alma nua
uma montanha
de likes

a alma crua
um vale
de cifras

es
pelho meu
ex
iste algo
a
não ser
eu?

qual mesmo
a senha
da minha
sanha?

pro
dutividade
pro
atividade
pro
fissionalismo
pro
stação

tripalium
da tripas
coração

irmão
sinta
ódio
com
 muito
amor
aleluia

abra o olho
você con
cegue

meu bem
o mundo é um miojo
vai cozinhar teus sonhos
empapar as ilusões
em nojo




20 julho, 2023

sabedoria do pó

as pessoas    passam
os poetas    passam
até os poemas passam
as fábulas  as línguas
as galáxias     tudo passa
ao encontro de ninguém 
em lugar nenhum

então   por que diabos
os acasos do universo
urdiram um corpo
que se sabe e sabe
do passar de tudo 
mas quer   por tudo
não passar jamais?




13 julho, 2023

ex-plot

se for pra fazer poesia instantânea

que não seja poesia-miojo

que seja poesia-estouro

como o luís araújo pereira

e o sebastião uchoa leite

 


 

10 julho, 2023

Execráveis

"Fulano é execrável!"
Há realmente pessoas execráveis no mundo
e em grande número,
ainda mais nestes tempos sombrios...

Mas, a bem da verdade,
em cada um de nós
há um bocado execrável,
o caldo do inferno que no habita
as grutas mais fundas da alma,
às vezes mais à mostra do que pensávamos
e gostaríamos!

Eu,
todo espinhos desde sempre,
tornei-me especialista
em detectar a execrabilidade,
inclusive em mim mesmo.

Por isso, vos digo
(não como cristão piedoso
mas como perito infernal)
perdoe ou, pelo menos, tolere
os execráveis deste mundo,
exceto, é claro,
os infelizes cujas sombras
já apodreceram a alma inteira.
Ah! Espíritos bolsonaros...

Pois em cada execrável 
ainda existe
um cadinho de luz a ser cultivado,
um caldo de seiva saudável
que pode, com algum cuidado,
rejuvenescer a alma enferrujada.
Que seja uma luz lunar, fugidia,
ou farsa elétrica de lâmpada.

Eu vos digo, afinal,
(não como cristão caridoso
nem autor de autoajuda,
mas como perito abissal)
se existe
em cada ser execrável
um cadinho de luz,
agarremos então esse frágil
e fino fio luminoso
e o cultivemos
em meio à noite que nos é.

08 julho, 2023

O Desperto

(Franco Átila)

Vocês crédulos creem que creem no Cristo,
em Alá, Jeová, deuses mortos há muito,
cujas carcaças, agora, são apenas disfarces
para o novo Deus que nos guia...

Vocês espíritas, espiritualistas, novos pagãos
creem que creem num difuso outro
mundo infra, supra, ali ou ao lado,
não sabem de nosso verdadeiro Pai
que paira cristalino acima de nós...

Vocês ateus, agnósticos, céticos sombrios
creem que descreem de tudo, mal
sabem a Deidade que louvamos todos...

Pois Deus existe! Existe e nos moldou
à sua imagem e semelhança, somos um
espelho falho de sua Alma perfeita.
Somos todos filhos do mesmo Pai
que tanto adoramos sem o sabermos.
Não sabemos do Deus, não sabemos
de nós, não sabemos de nosso
infinito amor pelo Pai infinito.

Mas eu, profeta abissal do mundo
pós-moderno, eu trago a Boa Nova,
a Revelação! Eu lhes digo o nome,
eu anuncio Aquele que vocês,
ignaros, adoram desde o berço,
desde o útero, desde o óvulo
e o esperma! Eu lhes mostro a Verdade
única e absoluta do Universo:
MAMON!

Ó Mamon! Ó adorado Mamon!
Ó Deus que se esconde sob a pele
de cordeiro do Cristo e na descrença
fria do ceticismo liberal! Ó Sabedoria
que nos guia a cada passo nosso
sem que o saibamos! Ó Luz áurea
e fria que nos ilumina e nos cega!
Ó misterioso Ser que não pode ser
descoberto pelas gentes que O adoram
com fervor e furor! Ó Pai amado
pelos homens todos da Terra inteira!

Dai-nos forças, ó Pai; dai aos olhos
de vossos filhos forças para desvelarmos
as vossas entranhas mais profundas!
E dai-nos, ó Pai, forças; dai aos braços
de vossos filhos forças para cometermos
o mais necessário e hediondo dos crimes
o PARRICÍDIO!

 

Arte de Sefira Lightstone


viaduto

o automóvel voa

rente às copas

das árvores

que

vislumbro

num piscar de olhos

com o olhar de pouso

dos pássaros que pausam



19 junho, 2023

Ócio moderno

Por que transformar
as areias do mar
num clube ao ar livre?

Por que a mata virgem
se desnuda em fuga
nos fins de semana?

Por que velhas cidades
são parques temáticos
anestesia de arcaico?

Por que a canção 
que toca o coração
se entoca no streaming?

Por que o prazer
se apraz agora
prezando prazos?

Por que todo tempo
à vista ou a prazo
tem pressa e preço?
 



putaria

 o cio

virou negócio


ócio

virou negócio


oh! céus!

virastes negócios!




16 junho, 2023

Sísifo

Ofícios são gratificantes,
há evolução, maturidade, legado...
O poeta não 
evolui,
mesmo que cresça 
poeticamente, não acumula nada,
não incorpora nada em si,
nada para si
nada para ninguém.

Seu movimento furioso
e voluptuoso
conduz ao ponto zero 
de onde a vida partiu.
A herança do poeta não é o conhecimento,
só uma sucessão de fugacidades
que talvez cintilem aos olhos
de alguém na cidade.
Fecham-se as páginas e ele 
(poeta, poema, livro)
morre para sempre...
até a próxima abertura, 
novo nascimento do nada.

O poeta gira em falso,
é um perpétuo
começo absoluto, criança eterna.
Humano
no ponto mais fundo do ser
humano, onde não se suporta mais
ser
o puro esvaecer, soldado raso,
tábula rasa, vaga 
superfície do existir,
onda que mal emerge e já torna
a mar.

Talvez por isso busque o sagrado,
ilude-se revestindo seu ritmo
de religações do espírito.
No fundo
o poeta sabe 
que sua voz e suas canções
apenas pulsam a passagem
entre o caos e o nada,
o tempo e seu esmaecimento,
o movimento da vida
e o muro inerte da morte.

O poeta comete o erro fatal
para a alegria de viver:
torna-se íntimo do desamparo
e da insignificância
que nos sustenta    
cambaleantes
do abismo mais fundo do ser
inexistente
que somos.


13 junho, 2023

Lugar comum

madrugada 
a tv está calada 
não se fala mais nada 
na sala   na casa fechada 
as frutas sobre o balcão 
esperam ser guardadas 

prazeres funcionários 
postos sobre a mesa 
uma pizza calabresa  
e um copo de cerveja 

amanhã é o trabalho 
a vida funcionando 
o murmúrio da cidade 
a vida    uma cilada 
a rotina é o caralho 
embaralho noites e dias 
em barulhos e silêncios 
cegos-surdos se lançando 
num caos de letras caladas 

mais um copo e mais outro 
até curar esta angústia 
e sua filosofia 
barata de cozinha


Paul Cézanne, Still Life with Skull

08 junho, 2023

O tio

    Ao tio Zé Gomes (in memoriam)

Figos no tacho, fervem
nuvens na tarde escura
de Morrinhos. O tio
falastrão quase não fala,
perdido entre as cobertas
puídas da cama puída
no quarto quase vazio.

    Os tios
    não eram eternos?

As rachaduras
do casebre em ruínas,
o olhar perdido do tio
não me conhece mais.
O silêncio,
o silêncio,
uma nuvem carregada de silêncio
se abraça ao aroma
doce de figo

    Os tios
    não eram eternos

e despenca um mundo
de água (de infância). 

 



25 maio, 2023

fogo furioso

a juventude
todas as carnes tesas
todas as peles lisas
toda desejo e impulso
tudo pulsa e amanhece
em luz e frescor
a juventude é bela
como nenhum deus foi
e como é feia a velha
pele descamada de um corpo
quase morto
mas
como é bela a feia
pele povoada por profundos
sulcos e barbas grisalhas
não pelos pelos nem pela
pele em si mas pelas marcas
da fúria do movimento
imperceptível de um corpo
que (ainda) vive


Retrato de um velho camponês (Van Gogh)

24 maio, 2023

moral da história

fala uma coisa
faz outra
a vida reta
que se prega
não é regra
mas a exceção
no Reino Cristão
reina a hipocrisia
entre ovelhas
e pastores
(quase todos 
com alma de lobo)
 
se avexe não
peça perdão
na hora de orar
e pague o dízimo
que a alma amanhece
limpa e leve
para mais pecar
e mais hipocrisia
mas tudo bem
tudo também
será perdoado
(pague o dízimo!)

ou talvez Deus
nem tenha notado
as tuas maldades
afinal Ele anda 
tão ocupado
em empreender 
o Novo Evangelho 
da Prosperidade
na Terra e no Céu
e até no Inferno! 
(pobre Diabo)




15 maio, 2023

Whitney

A mina de ouro do show business
ou a drogada sapata
condenada ao inferno 
no tribunal puritano?
Prefiro a lembrança
da alma sensível da artista
caída
no abismo da fama.

Não creio em deuses
mas qual orixá
cismou de moldar
um rosto de anjo
num corpo de ninfa
e essa boca, 
esse sopro
essa voz divina?




10 maio, 2023

fogo-fátuo

trinta e cinco não são nada
perto da idade do cosmo
perto da idade da terra
não são nada nem mesmo
perto do tempo da espécie
ou de uma fábula

trinta e cinco é o espaço
de tempo em que se vai
do auge do adulto às profundas
rugas de oitenta e se vislumbram
as núpcias com a iniludível
a nos sorrir das catacumbas

bem pensado bem pesado
o peso de oitenta verões
que os ombros já não suportam
é uma pluma ante as bilhões
de toneladas de anos-luz
das galáxias que nos ignoram



07 maio, 2023

Fome de alma

Fome de amar
fome de forma
fome de felicidade
é tão difícil falar
as ricas conotações da fome
quando há tanta fome. Fome
miserável e esquálida a vagar
no deserto concreto das cidades.




30 abril, 2023

Quem (se) salva?

Em que mundo você vive
sonhando sujeitos revolucionários 
a massa contagiada de utopias?
Eu não vejo nada 
em lugar nenhum
a não ser o rastilho de pólvora 
para as explosões da moral
e dos bons costumes.
O mundo é dos bons 
cristãos e suas almas prósperas 
estiradas no curtume
fétido do fascismo.

Em que nicho cult
(tribo academia ativismo
ou partido) você vive
se iludindo?
E de que latrina da minh'alma
classe média eu urro
esta canção desenganada?
 
 

 

 

21 abril, 2023

autorretrato


depois da morte

revira-se a correspondência
à procura de um afeto
um fato um feito um pensamento
que feche o círculo sempre aberto
da precária existência

vasculham-se os escritos guardados
no baú a sete chaves
em busca de uma chaga a gritar
algo além do silêncio inaudito
do que foi dito

ou talvez
ninguém se lembrará de sua voz
e seus escritos eventuais
quedam calados numa gaveta qualquer
engolida pelo tempo

que diferença faz
se estamos todos perdidos na dobra
de uma gaveta esquecida enfiada
num rincão longínquo
de uma galáxia espiral?

04 abril, 2023

Beco

Um corredor estreito arremetia contra as paredes cinzas dos fundos dos edifícios, em reboco cru, sujas, calçadas rachadas, fezes, restos de comida, trapos. As três meninas tristes habitavam uma das paredes. O ruído da cidade entrava surdo no beco escuro, a dez longos metros da avenida abarrotada de gente e automóveis. Ele deambulava e entrou ali, sem motivo, queria respirar. Mas o lugar fedia. Respirou com a ajuda das meninas e suas mínimas narinas. Quando olhou para cima uma janela de céu escorregou por suas retinas... e ele mergulhou no azul infinito. As meninas foram testemunhas.

Grafite de Mathiza


27 março, 2023

A vida e a poesia

Se enveredam num caminho
que se enrosca morro acima
dando voltas e mais voltas
e não se volta

Às vezes há desvios
com promessas de atalhos
e nos devolvem ao mesmo 
repisado caminho

Veredas urdidas com o tempo
não se para ou se desatam
os nós cegos que nos atam

Nada ensinam nem nos salvam
às vezes vislumbramos
o silêncio perfumado
de um jardim na nuvem alta
antes de escorregarmos
no cascalho da estrada 

e darmos com os burros n'água
ou cairmos de cara no chão
se dermos sorte e não
nos despencarmos do paredão






22 março, 2023

Um livro de ontem

Ando lendo poetas estaduais
de uns tempos atrás... Agora, 
por exemplo, tenho um livro à mão
escrito por um concidadão
(sem nomes, por favor!).
Ó Deus! Tantos clichês!
Não é que ele seja um poeta
muito ruim, percebe-se
ecos e sombras de algum
grande lírico. Bom leitor,
esse meu conterrâneo de outrora,
mas seus sons e imagens não 
me cheiram tão bem.
Há exagero quando caberia rigor
e vazios onde cairia melhor
um desatino. Um descompasso 
de tempo e espaço, alguma coisa que não
se encaixa. Apenas um mediano
artesão, niilista e pagão,
medíocre epígono provinciano,
um entre tantos...
Ó Deus! Quanta tinta
em vão!

Naldo Goyazes, Goiânia, 
22 de março do ano da graça de 2063.

NOTA HISTORIOGRÁFICA sobre o livro a que se refere o poema acima.

Este humilde historiografista apurou que o poema "Um livro de ontem" se refere, sem nomear milagre nem santo, à obra intitulado Um dia de segundos, da lavra de um infiel cujo nome ou alcunha era Wilton Cardoso ou, talvez, Franco Átila -- Deus tenha piedade de sua alma! --, que viveu nos alvores do século XXI em Goiânia, cidade meridional da extinta megalópole de Gynsília. Os registros exactos deste obscuro autor e de sua vida inglória perderam-se na Grande Tormenta Climática ou, depois, na Water War que assolaram as eras profanas -- ao tocar em tais desgraças, recordemos, por ordem do Sancto Pryncipe e com o ficto de nos mantermos rectos e não mais sofrermos a ira do Senhor, que nas eras profanas somávamos biliões de almas desviadas do Estreito Caminho pela ambição, vaidade e lascívia desmedidas, e se no mundo restamos nós, poucos miliões de almas viventes no Hemisfério Austral, devemo-lo à infinita misericórdia de Deus -- louvado seja!.

O profano Um dia de segundos -- maldito seja! -- veio a lume no ano de N.Sr.J.C. de 2024 e dele restou apenas o alfarrábio encontrado no ano de N.Sr.J.C. de 2128 numa destroçada Goiânia. O exemplar quedava em mau estado de conservação, misturado a vários outros, num porão sob a casa em ruínas onde vivera o glorioso poeta e erudito Naldo Goyases, no que parecia ser um bunker para onde foi transferida sua biblioteca. O poema acima trata-se de um perspicaz comentário sobre o infeliz livro e seu autor, e estava anotado à mão num guardanapo dentro do exemplar. A se crer no juízo de valor de Goyazes, e motivos não há para se duvidar de sua argúcia exegética e elevado senso moral, este Wilton Cardoso e seus escritos infames prestam-se apenas para registro historiográfico. Trata-se de lírica menor, não raro obscena e francamente anticristã, desprovida de engenho e virtude que possam lumiar nossa Nova Era Cristã purificada no fogo atómico. Inda pesa, em desfavor de malfadada obra, o facto de a divulgação primeira de seus poemas ter se dado por meio da internet, engenho demoníaco e para sempre banido pela I Convenção Austral dos Pryncipados. Não se recomenda, portanto, a sua reimpressão, devendo o exemplar remanescente quedar mudo na Sala-índex da Biblioteca Real. 

NOTA DE ESCLARECIMENTO sobre o poema "Um livro de ontem", da lavra do glorioso poeta cristão Naldo Goyazes, chamado junto ao seio de Nosso Senhor Jesus Cristo no fatídico ano de 2095, na megalópole de Gynsília, por ocasião da guerra que para sempre a arruinou: ESCLAREÇO-VOS que o poema é anterior ao advento do Principado e à promulgação da Sacra Súmula Poética que proibiu, dentre outras coisas, tons irônicos, humor corrosivo, linguagem vulgar, versos sem metro ou iniciados com minúsculas, rimas irregulares e gêneros líricos não chancelados. Por ser o ilustre poeta Naldo Goyazes um reconhecido e devoto cristão, e levando em conta que o poema foi escrito antes da Sacra Súmula, o estilo relativamente licencioso de seus versos não configuram, em nossa humildae opinião, heresia

Firmo e confirmo, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que os factos acima narrados são verazes e exactos. Que a ira de Deus caia sobre minha cabeça se vos falto com a verdade! Encaminho esta nota impressa, com graves cumprimentos, à chancela real. Vida longa ao Sancto Príncipe, nomeado e ungido por Deus Nosso Senhor como Protetor Supremo de nosso Pryncipado!

Jeosafá do Ermo Interior, Grão-Mestre Historiográfico, Deserto Central da Sulamérica Brasiliana, no décimo nono dia do sétimo mês do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2171.



19 março, 2023

O emissário do caos II

há um abismo
sem sentido
e por assim dizer
natural
que nos leva a crer 
nos deuses que criamos

eu trago a palavra
e o silêncio
desse abismo ancestral
que nos traga
 
há um outro abismo
cavado à força
de cavalos mecânicos
com almas mercantes
que nós mesmos criamos
como se tirássemos o chão
já frágil
do sentido e da vida
com as nossas próprias mãos

na palavra que falo
e na pausa que me cala
eu trago também 
esse abismo de cifras
que nos traga

eu sou a voz
dos dois abismos

ninguém
quer ouvir o que eu digo

fecha os olhos
e ouvidos

Homem face a face com o abismo (Susano Correia)



17 março, 2023

O emissário do caos

 

Fecha os olhos
E ouvidos
Ninguém
Quer ouvir o que eu digo

Pois por dentro e por fora
Sou fea figura
E a minha voz impura
É de ator canastrão

Talvez
Haja algo que valha
Na palavra que trago

Não 
Eu sou a voz do abismo

O abismo 
Sem sentido
Que nos traga

Fecha os olhos
E ouvidos

12 março, 2023

grito

há um silêncio que dorme
sob as águas do poema
                                               e grita
ao ruído surdo das ruas
                                             uns raros
mergulham e beijam
sua boca repleta
de palavras que clamam
                                             em silêncio
                 despertam
loucos
(loucos de poesia)
vislumbram a loucura
         da vida
normal que se leva
                   e nos leva
                                      ao abismo
(sem água ou
       grito)                                   da morte
                    de tudo o que é
humano

 

O Grito (Edvard Munch)
 

02 março, 2023

tempo-sal

por que
 
você sente sau
 
dades do tempo perdido
 
que você acha
 
que foi fel
 
iz
 
?
 
 

 

02 janeiro, 2023

Nada (ou quase)


A Eleutério Prado,
companheiro de angústias e utopias.

Nada,
no ano novo,
no futuro,
eu não acredito em nada,
nos liberais, nos progressistas, no ativismo, no estado
de direito, na democracia, no mercado, no outro
mundo, na outra vida, nem mesmo na arte. A ciência funciona
apenas para engordar o bolso dos abutres
nas bolsas. As redes
enredam narcisos apaixonados em likes, os links são o caminho
da peregrinação da alma em busca do Graal
dos algoritmos da fortuna
dos já afortunados.
Bem aventurados os implacáveis e ambiciosos, os ciosos de si mesmos,
são deles o reino dos CEOs.
Não creio em nada,
mercados de carbono, energias limpas, consciência social num mundo i-
mundo de almas adorando o Deus dos shoppings
num ritual frenético de compras, mais compras, mais mercado-
rias, a felicidade é ganhar, ganhar, ganhar e gastar, gozar o instante
depois do longo sacrifício do dia a dia, sol a sol, a vida inteira
em troca de um punhado de cifras.
As ruas entupidas de carros, o mundo entupido de carbono, as cidades afogadas
em mares de asfalto, os lares sufocados em concreto, os mares submersos
em plásticos, os bairros abarrotados de crime, as bocas cheias
de fome, as sociedades caídas no abismo sem fundo
da miséria, as nações naufragadas
no mar de sangue das guerras,
os novos biomas
de soja e gado. O gado fascista pasta o capim de ódio
no pasto de paranoias das mídias. As redes
entopem os buracos da cabeça de asneiras,
açúcares e gorduras. As bocas cagam mentiras no esgoto das cidades. Não acredito
em nada, nos corpos, os corpos
flácidos, malhados, adestrados nas disciplinas da produtividade,
a proatividade, a boa alimentação, as boas intenções, o bom cidadão, a compaixão, eu não
acredito em nada,
nem mesmo em mim,
eu, mais
uma peça nesta máquina de loucuras, eu não
acredito
em nada.

Eu acreditaria numa rede solidária
de comunidades de iguais, radicalmente iguais,
a diferença afloraria sem nenhuma hierarquia,
ninguém haveria de obedecer, mandar, possuir ou ter
que trabalhar para sobreviver, a duras penas.
Nesse mundo que sonho e quase
creio (logo eu, de tudo incrédulo)
não deveríamos sobreviver apenas, mas
viver a vida! A vida vivida
em comum, com todas as suas potências
e misérias. Não seria o céu, mas seria a boa vida
mundana. Um mundo de paz...
Quanta utopia!
Na vida real, crua
e cruelmente mercantil
em que estamos mergulhados,
não há alma alguma (ou quase
alguma) a sonhar um sonho assim
tão besta!

Mas seria
tal sonho
um sonho
assim
tão besta? 

Fórmulas (Gerty Saruê)


O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...