Nada (ou quase)
companheiro de angústias e utopias.
Nada,
no ano novo,
no futuro,
eu não acredito em nada,
nos liberais, nos progressistas, no ativismo, no estado
de direito, na democracia, no mercado, no outro
mundo, na outra vida, nem mesmo na arte. A ciência funciona
apenas para engordar o bolso dos abutres
nas bolsas. As redes
enredam narcisos apaixonados em likes, os links são o caminho
da peregrinação da alma em busca do Graal
dos algoritmos da fortuna
dos já afortunados.
Bem aventurados os implacáveis e ambiciosos, os ciosos de si mesmos,
são deles o reino dos CEOs.
Não creio em nada,
mercados de carbono, energias limpas, consciência social num mundo i-
mundo de almas adorando o Deus dos shoppings
num ritual frenético de compras, mais compras, mais mercado-
rias, a felicidade é ganhar, ganhar, ganhar e gastar, gozar o instante
depois do longo sacrifício do dia a dia, sol a sol, a vida inteira
em troca de um punhado de cifras.
As ruas entupidas de carros, o mundo entupido de carbono, as cidades afogadas
em mares de asfalto, os lares sufocados em concreto, os mares submersos
em plásticos, os bairros abarrotados de crime, as bocas cheias
de fome, as sociedades caídas no abismo sem fundo
da miséria, as nações naufragadas
no mar de sangue das guerras,
os novos biomas
de soja e gado. O gado fascista pasta o capim de ódio
no pasto de paranoias das mídias. As redes
entopem os buracos da cabeça de asneiras,
açúcares e gorduras. As bocas cagam mentiras no esgoto das cidades. Não acredito
em nada, nos corpos, os corpos
flácidos, malhados, adestrados nas disciplinas da produtividade,
a proatividade, a boa alimentação, as boas intenções, o bom cidadão, a compaixão, eu não
acredito em nada,
nem mesmo em mim,
eu, mais
uma peça nesta máquina de loucuras, eu não
acredito
em nada.
Eu acreditaria numa rede solidária
de comunidades de iguais, radicalmente iguais,
a diferença afloraria sem nenhuma hierarquia,
ninguém haveria de obedecer, mandar, possuir ou ter
que trabalhar para sobreviver, a duras penas.
Nesse mundo que sonho e quase
creio (logo eu, de tudo incrédulo)
não deveríamos sobreviver apenas, mas
viver a vida! A vida vivida
em comum, com todas as suas potências
e misérias. Não seria o céu, mas seria a boa vida
mundana. Um mundo de paz...
Quanta utopia!
Na vida real, crua
e cruelmente mercantil
em que estamos mergulhados,
não há alma alguma (ou quase
alguma) a sonhar um sonho assim
tão besta!
Mas seria
tal sonho
um sonho
assim
tão besta?
Queira ou não é bom ler toda essa angústia, ajuda a recuperar um senso de realidade, perceber que não se está só em todo esse nada, essa descrença, dor.
ResponderExcluirSó gostaria de entender melhor qual é a relação dessa imagem no final.
Pra mim realmente não sobrou nada em que depositar esperanças
Fico feliz em ter com quem partilhar a angústia atual. A parte final é a do 'quase'. Abraço!
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