Um livro de ontem

Ando lendo poetas estaduais
de uns tempos atrás... Agora, 
por exemplo, tenho um livro à mão
escrito por um concidadão
(sem nomes, por favor!).
Ó Deus! Tantos clichês!
Não é que ele seja um poeta
muito ruim, percebe-se
ecos e sombras de algum
grande poeta. Bom leitor,
esse meu conterrâneo de outrora,
mas seus sons e imagens não 
me cheiram tão bem.
Há exagero quando caberia rigor
e vazios onde cairia melhor
um desatino. Um descompasso 
de tempo e espaço, alguma coisa que não
se encaixa. Apenas um mediano
artesão, niilista e pagão,
medíocre epígono provinciano,
um entre tantos...
Ó Deus! Quanta tinta
em vão!

Naldo Goyazes, Goiânia, 
22 de março do ano da graça de 2063.

NOTA HISTORIOGRÁFICA sobre o livro a que se refere o poema acima.

Este humilde historiografista apurou que o poema "Um livro de ontem" se refere, sem nomear milagre nem santo, ao livro intitulado Um dia de segundos, da lavra de um infiel cujo nome ou alcunha era Wilton Cardoso ou, talvez, Franco Átila {Deus tenha piedade de sua alma!}, que viveu nos alvores do século XXI em Goiânia, cidade meridional da extinta megalópole de Gynsília. Os registros exactos deste obscuro autor e de sua vida inglória perderam-se na Grande Tormenta Climática ou depois, na Water War, que assolaram as eras profanas - ao tocar em tais desgraças, recordemos, por ordem do Santo Príncipe e com o ficto de nos mantermos rectos e não mais sofrermos a ira do Senhor, que nas eras profanas somávamos biliões de almas desviadas do Estreito Caminho pela ambição, vaidade e lascívia desmedidas, e se no mundo restamos nós, uns poucos milhões de almas viventes no Hemisfério Austral, devemo-lo à infinita misericórdia de Deus {louvado seja!}.

O profano Um dia de segundos {maldito seja!} veio a lume no ano de N.Sr.J.C. de 2023 e dele restou apenas o alfarrábio encontrado no ano de N.Sr.J.C. de 2124 numa destroçada Goiânia. O exemplar quedava em mau estado de conservação, misturado a vários outros, num porão sob a casa em ruínas onde vivera o glorioso poeta e erudito Naldo Goyases, no que parecia ser um bunker para onde foi transferida sua biblioteca. O poema "Um livro de ontem", com suas impressões sobre o livro e seu autor, estava anotado à mão num guardanapo dentro do exemplar. A se crer no juízo de valor de Goyazes, e motivos não há para se duvidar de sua argúcia exegética e elevado senso moral, este Wilton Cardoso e seus escritos infames prestam-se apenas para registro historiográfico. Trata-se de lírica menor, não raro obscena e francamente anticristã, desprovida de engenho e virtude que possam lumiar nossa Nova Era Cristã purificada no fogo atómico. Inda pesa, em desfavor de malfadada obra, o facto de a divulgação primeira de seus poemas ter se dado por meio da internet, engenho demoníaco para sempre banido pela I Convenção Austral dos Principados. Não se recomenda, portanto, a sua reimpressão, devendo o exemplar remanescente quedar mudo na Sala-índex da Biblioteca Real. 

NOTA DE ESCLARECIMENTO sobre o poema "Um livro de ontem", da lavra do glorioso poeta cristão Naldo Goyazes, chamado junto ao seio de Nosso Senhor Jesus Cristo no fatídico ano de 2095, na megalópole de Gynsília, por ocasião da guerra que para sempre a arruinou. ESCLAREÇO-VOS que o poema é anterior ao advento do Principado e à promulgação da Sacra Súmula Poética que proibiu, entre outras coisas, tons irônicos, humor corrosivo, linguagem vulgar, versos sem metro ou iniciados com minúsculas, rimas irregulares e gêneros líricos não chancelados. Por ser o poeta um reconhecido e devoto cristão, e levando em conta que o poema foi escrito antes da Sacra Súmula, o estilo relativamente licencioso de seus versos não configuram, a nosso ver, heresia

Firmo e confirmo, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que os factos acima narrados são verazes e exactos. Que a ira de Deus caia sobre minha cabeça se vos falto com a verdade! Encaminho esta nota impressa, com graves cumprimentos, à chancela real. Vida longa ao Santo Príncipe, nomeado e ungido por Deus Nosso Senhor como Protetor Supremo de nosso Principado!

Jeosafá do Ermo Interior, Grão-Mestre Historiográfico, Deserto Central da Sulamérica Brasiliana, no décimo nono dia do sétimo mês do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2171.



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