31 dezembro, 2024

26 dezembro, 2024

dismindfulness

não queira que eu esteja aqui

não queira que eu seja agora

saber-me inteiro não queira

coisa que nem mesmo eu quis


há tantas metades minhas

espalhadas pelo tempomundo

nãonunca me saberei

quandondeuoutroeuvários


rastro de animal nenhum

eu soo pleno ao contrário

o abismo do abismo em mim

sem fundo limiar sem fim


e a cabeça aluada

voa aos confins

ah! quemninguéns 

jamais vos me alcançareis

23 dezembro, 2024

Aura

Aura

que bela palavra!

Mística, aérea, etérea

alvorada da vertigem d'alma.

Mão, rosto... o corpo à esquerda

me formiga. Fornicam na cabeça

dormências e dores. Ó sinistra

brisa que me haure a alma!

Cefaliv te acalme

Aura





03 novembro, 2024

Dos filhos

que cada qual encontre o seu caminho

que não haja, nele, tantos espinhos

que, no entanto, haverá em qualquer caminho

que saibam, então, se desviar dos espinhos

que se aprende, talvez, após muito caminho

que, enfim, apesar do peso dos espinhos

que seja longo e pleno e leve o caminho

21 outubro, 2024

cis(co)smo

a pessoa é um cisco 

na face da terra

a terra é um cisco 

em torno do sol

o sol é um cisco 

num rincão da galáxia

e a galáxia é um cisco

na amplidão do universo


há mais sóis na galáxia 

e mais galáxias no céu

que pessoas na terra

e neurônios no cérebro


como pode tudo isso

caber na cabeça 

de uma pessoa-cisco

(do cisco do cisco 

do cisco) do cosmo?

20 outubro, 2024

há/ah amor?/!

os corpos se tocam

confundem se enroscam

as almas no entanto

galáxias distantes

milhões de eros-luz

13 setembro, 2024

Posteridade

Ó Drummond

Também quero a eternidade

Cansei da instantaneidade

Da pós-modernidade

Quero ficar

Para a posteridade!

Mas haverá pos

                                 ter

                                            id

                                                 da

                                                     de

                                                       ?

         

 


10 setembro, 2024

Pequena primavera num inverno infernal

Seca manhã de setembro

ruídos e carros

calor e fuligem

das matas de ontem.


Em meio ao caos

das ruas de hoje

um carro amanhece

coberto de flores.

29 agosto, 2024

súplica

alguém
me dê esperança
me livre do coiso
me acenda o riso
me ascenda a alma
me percorra o corpo
um frenesi de energia
um transbordar de alegria
que há muito não ri

alguém
um líder um profeta um sábio
uma bruxa um anjo um pássaro
um totem um presságio (a flor
do poeta nascida no asfalto)
algo ou alguém   o que for
me mostre o estreito caminho
me revele o improvável porvir
que não caia no abismo ao fim

e quando vier a mim
dádiva   graça   benesse
me transcenda me atravesse
e contagie toda a gente

e que este tempo besta
este temporal de perrengues
pragas selos tristes trombetas
vá pro diabo que o carregue

25 agosto, 2024

clima

de fim de festa
fim de mundo    um dilúvio
de fumaça
despenca de rios voadores
(e nos afoga no ar)
céu cerrado
tórridas serrarias
soja e gado
fogo e cinzas
o mato cinza
a cidade cinza
a vida cinza
a hora cinza

e este chão árido
doente
sob o sol pálido
inclemente



02 junho, 2024

ah!

efêmera flor 

      áspera flor

            ávida flor

                  ave da flor

                                            da vida

ah! vida-flor





31 maio, 2024

Dias dançantes

              Vem, me dê a mão
              A gente agora já não tinha medo
              (Chico Buarque)

Quando havia utopia
o mundo era escuro
mas o sol nascia no futuro.

O mundo era muito
desigual e bruto e falar
temerário
mas havia a esperança de um dia
se acordarem (e rimarem) os contrários.

A música era alegre
com um pingo de tristeza
ou seria triste
com lampejos de alegria?

Eu era menino e pouco
da vida eu sabia
sei que a TV me ninava
toda noite com João e Maria
quando havia (ainda) utopia.

 


 

13 maio, 2024

Cerco

Olho para cima e um pastor furioso

cospe o Evangelho ao pecador comunista

ateu, macumbeiro, gay, feminista...


Olho para baixo e a Terra se esboroa 

em monturos de lixo e nuvens de fuligem 

devorada pela fábrica de mercadorias.


Olho à direita e se arreganham caninos fascistas

e se entoam as ladainhas do empreendedorismo 

e os mantras sagrados do livre mercado.


Olho à esquerda e não vejo nada, nada imagino

minha cabeça avoada fincou, enfim, os pés no chão 

e cercou-se da realidade


(minha cabeça perdeu

o descaminho dos sonhos, perdeu

sua sanidade).

 


10 maio, 2024

efêmera flor

o que sobra de ti
      se derrama
            se esparrama
                  lava e lama

o que sobra de ti
      são os porres

o porre dos bares

o porre de um filme
      uma canção 
            a arte que for

o porre de um pôr
      do sol entre os prédios
 
e o porre total
      da porra do amor








26 abril, 2024

Ave do acaso

          se você vier pro que der e vier comigo
          eu lhe prometo o sol
          se hoje o sol sair
          (G. Azevedo e R. Rocha)
 
o meu canto é mais
silêncio do que som
é mais desnorteio
que abrigo 
é ascender às sombras
do fundo do abismo
mínima melodia
ritmo incerto
desarmonia
 
mas se você vier 
comigo
vou te levar ao limiar
entre o chão e o mar, o mar 
e o ar, entrelugar 
onde o eu e o tu se entrelaçam
a noite se faz dia claro
o canto se perde do tempo
e em ondas de sonho flutuam
inefáveis naves do acaso

24 abril, 2024

Preciso

Bem ou mal, cantar
eu sei, ou não.
Preciso saber?
Preciso
é aprender tocar
fogo em tudo
que seja preciso:
tocar o foda-se.




16 abril, 2024

Ultimato

Pobres modernos
perdidos no impasse das palavras
a cada poema o fim da linha 
cada passo a um passo do abismo.
Do silêncio do livro
o poeta grita
à multidão de surdos:
          o mundo está moribundo
          o sentido é absurdo
          o buraco não tem fundo
          se eu me chamasse Raimundo...
A solução seria esta rima
do branco da página
com o niilismo da vida?

Pobres modernos
poemas tão belos
mas ermos, enfermos
fragmentos de fina ironia
labirintos em volta do vácuo
ecos sem voz de fato
sombras de nenhuma Ideia.
          Mais um gole e se acabou
          palavras não dizem mais nada
          absintos de Rimbaud.

Pobres modernos:
          este vai ser mesmo o último
          não há motivo pra mais
          tudo já foi dito
          quem ainda lê versos?
Amanhã o poeta se trai
e mais um poema se inscreve
na vida que se esvai.

22 março, 2024

Gaza - Palestina

o horror     o horror   ó Palestina
     a mãe procura os cadáveres
dos filhos sob os escombros    o choro 
         da menina de pele queimada
  a morte ao vivo     nas telas da internet
     o horror que se repete e se repete
e se repete 

    armênios   Gueto de Varsóvia    Auschwitz
os genocídios    de russos e chineses   
      Vietnã    Camboja    Iraque   Sudão   
  Líbia   Síria   Iêmen    tantos outros
novo milênio    século XX    Modernidade
        tantos indígenas   africanos   orientais  
              ó Palestina
sois todos eles agora
       sois a síntese
                de todos massacres
                         condensados 
          no circo de horrores de Gaza

não entra comida ou remédio    só o ódio 
      irremediável dos soldados
                    e a chuva de bombas 
sobre casas e escolas     hospitais e mesquitas
      não há refúgio ou descanso em Gaza
           onde as pessoas morrem agora
                de morte matada
                       por bomba ou bala
ou se assassina em massa 
     com as bombas sujas da peste
              e da fome

soldados sorridentes tiram selfies  
       em meio às ruínas de Gaza
   em meio às roupas das mulheres de Gaza
trofeus da caça abatida
         os civilizados bebem o sangue
   dos animais árabes      bárbaros inumanos  
       a mesma história de sempre    a mesma 
 ladainha    a mesma cantilena     o mesmo
           banho de sangue repetido ad nauseam

ó martírio que não tem fim   ó Palestina
    microcosmo do horror 
                de todas as terras bárbaras
          disciplinadas 
                    pela Razão ocidental
    Gaza afogada num Mar Morto de ódio   
       num Mar Vermelho do sangue
dos filhos e filhas da Palestina  
          o mesmo mar de sangue
     de todos os outros
povos bárbaros    um oceano rubro de séculos
                          e séculos da pedagogia 
                    civilizatória dos canhões 

ó Palestina    amarga ironia
vosso povo desterrado
em sua própria terra
pelos filhos da Diáspora

ó Palestina    amarga ironia
sofreis a carnificina
pelas mãos impiedosas
dos filhos do Holocausto

12 março, 2024

Nada com nada

Compor canções edificantes
ou terrificantes,
edificações exímias sobre
o Nada
que é a vida,
formas perfeitas
com a carne das palavras
e a alma do artista.
Voz séria, ébria ou irônica
a ritmar sem fim...

Não,
hoje eu quero ir ao dentista
e errar depois pelo Centro 
esquecido de Goiânia,
com suas praças e vielas
que escondem calçadas quebradas,
frestas
de onde brotam capim
e casinhas art déco.

Hoje
eu não quero alçar a Voz aos abismos
nem às alturas do Nada
ou do Ser,
quero ser o corpo que sou,
pó sem voo, mero cisco
no chão de asfalto e cimento.
Nenhum regozijo,
sequer um lamento.

Hoje eu não quero nada
com nada.

11 março, 2024

sol alto

uma língua de silêncio
cintila
no mar de ruídos da avenida

um mar largo de ruas
e ruínas
tragados na voz muda

ó canto que não canta
no asfalto
nasce o poema: sol alto 





x


30 janeiro, 2024

Precipitação

Pra que tanta angústia
insone ansiedade?
Esse medo de chuva...

Olha as árvores
dançando ao vento
da chuva que vem

secando ao sol
da chuva que passou.


Versão alternativa:

Pra que tanta angústia
insone ansiedade?
Esse medo de chuva...

Olha as árvores
dançando ao vento
do temporal que vem

secando ao sol
depois do mau
tempo que passou.

Qual sentido?

círculo




virtuoso?                     O                       vicioso?




ou






 

28 janeiro, 2024

A fazenda de trevas

ou: O abismo de Narciso

A exigência de ser amado é a maior das pretensões (Nietzsche) 

Ah, se uma rês pastou em sua fazenda, gostou do pasto e depois se afasta! Mesmo que não deixe de amá-lo, a simples diminuição do amor (ele faz contas com o amor) ou o interesse por outras pastagens lhe é insuportável. Enquanto está entre as suas cercas, pastando em seus campos, a rês vale muito pouco para ele. Mas se ela ousa fugir para experimentar novas pastagens, é como se tornasse um Deus ou Demônio muito maior que ele, que se carcome por dentro. De ciúme. De inveja da rês alada que é feliz sem o seu pasto. De inveja dos outros fazendeiros e de seus pastos fartos. De raiva de si mesmo e da pouca sustância de seu pasto magro. 

A rês é terrível: não lhe gosta, como pode pastar feliz longe de suas terras? Uma rês mal agradecida, malvada. Ele quer que ela se sinta infeliz longe de sua fazenda e volte ao cativeiro, ele quer a tristeza do que lhe escapou às mãos. E a rês, mesmo longe, lhe quer bem, ainda lhe tem amor no olhar, um amor além da posse. Que ódio! A rês é virtuosa, é melhor que ele, que se sente impotente e raivoso. Que inveja da bondade da rês, ela fere, uma ferida que cresce e aprofunda, uma ferida antiga que estava oculta e se mostra em carne viva: a carne podre de sua alma escura. Que ódio de sua alma que não consegue ser tudo para a rês, que não consegue ser algo para alguém, nada para ninguém. 

Ele se sente horrível se não lhe gostam. Precisa que gostem dele em seu lugar, pois é incapaz de gostar, inclusive de si mesmo. Precisa de um rebanho que lhe siga os passos e as ordens. Um rebanho submisso de mil cabeças infelizes no seu pasto miserável, para fazê-lo um fazendeiro rico e orgulhoso. Há um medo terrível da fuga, que uma rês escape de seu pasto. Em sua fazenda, os serviçais vigiam sem parar as suas reses: os peões da Posse, da Raiva, do Ciúme, da Vingança, da Vaidade e da Inveja. E o Capataz do Medo, o medo de perder as reses. O Capataz que a tudo controla, que quer regular o fluxo da vida, manipulando o pasto, a ração e o caminho das reses, que vigia os lobos que rondam a fazenda e dá ordens aos peões sombrios. O Capataz é seu servo mais assíduo e fiel. Com o Capataz zeloso vigiando suas posses, ele pode dormir em paz, contando seu rebanho e acumulando o lucro da ordenha diária do amor, da sangria de amor que ele guarda em seus tanques imensos, insaciáveis. 

Mas ele está ficando cego. Não vê que se fazendo de servo, o Capataz se torna o seu senhor. Não vê como sua fazenda está ressequida e triste, sem pássaros nem frutas, sem chuva, sem árvores: apenas um pasto imenso e ralo, e seu rebanho infeliz. Ele mesmo não vê o quanto é triste, se arrastando sozinho em sua casa grande e ruinosa. Ele é o silêncio que se move no silêncio, o vazio que se abisma no vazio, as ruínas que deslisam nas ruínas, o escuro dentro do escuro da casa sombria. Ele está cego e surdo, doente, quase não se move, absorto em sua catatonia, em seu medo de perder uma rês que seja, uma gota que seja do leite do amor que ele sangra das reses. O leite que ele pensa beber todas as manhãs, mas que há muito não lhe molha a boca ressequida. Ele está morrendo em vida, a pior morte que existe. 

Enquanto morre, ele pergunta a seus peões por uma rês fugida e se contorce de ódio pela perda, ódio da rês que não quer mais o seu pasto, ódio de si mesmo que a deixou escapar... E as reses fugindo mais e mais de sua triste e ressequida fazenda, e seu ódio aumentando, e sua vida murchando, e a morte crescendo nos porões da casa, planta negra cultivada pelos peões sombrios. A morte tomando a casa inteira e ele fazendo as contas das reses fugidas, das reses que restam, do leite do amor que começa a faltar, de que ele nunca se fartou, que sempre lhe faltou, embora abundante... E o Capataz do Medo rindo dessa canção tão triste.

 

De repente 

Não há casa nem curral 

Não há rebanho nem cercas 

Nem leite nem riquezas 

Nem fazenda ou fazendeiro 

Não há nada 

Nunca houve nada, nunca! 

Apenas seus olhos sombrios 

De menino assustado 

Sonhando latifúndios no asfalto 

Seus olhos tristes de boi apartado 

 

Ele é um boi 

Sobre os campos de cimento e vidro 

E pedra e plástico e cavalos de metal 

O Capataz e seus peões tangem com violência 

Um rebanho cheio de peste e feridas 

E o rebanho era ele 

 

Ele é um boi 

E a morte cresce nos porões da casa imensa 

De cômodos mobiliados com o Medo 

O Ódio, a Vingança, o Ciúme, a Inveja 

Móveis carcomidos de si mesmos 

Tão antigos quanto a casa 

E a casa era ele 

Ruindo ainda em vida 

Com as suas fantasias 

De boi só 

 

Ele é um boi 

Um boi magro e marcado 

A ferro e fogo e ferido 

Pelo chicote e os ferrões 

Do Capataz e dos peões 

Senhores de fato 

De suas terras desertas 

Senhores que cruzam num galope louco 

Os campos de sua alma de um confim ao outro 

Sua alma de abismos: fazenda de trevas 

Prenhes de mágoa e medo 

E delírios negros 

 

22 janeiro, 2024

Microparaísos no inferno

Guerras guerras guerras
Estou cansado de saber das guerras
Quero apenas contemplar as guelras
Dos peixes lentos na lagoa calma
E as garras
Afiadas dos gatos
Guardadas
No macio das patas

17 janeiro, 2024

cega revolta

extrair até o osso
do suor humano
horas e horas
nas salas nas ruas
olhos cansados nas telas
braços exaustos nas máquinas
por pão e água
e migalhas de entretenimento
carnes e almas gritam
aflitas

em vez de chutarem o bezerro de ouro
e reinventarem a tribo comum
procuram bodes expiatórios
e engrossam as fileiras fascistas

 

15 janeiro, 2024

Seção de Condicionamento Límbico

ao Eduardo
companheiro de limbo
 
Oito horas numa sala
com ar condicionado
olhando para uma tela:
sistemas, processos, planilhas...

Ó pão nosso de cada dia!
Ó cálice que não se afasta!
E a alma condicionada
geme em silêncio: amém!
 
Oito horas numa cela
não é para minha natureza
seria para a condição
humana de alguém?

07 janeiro, 2024

pai-poesia

meu pai nunca precisou fazer poesia

ele (se) faz do dia

após dia

seu firme compasso de vida

poesia sem letra nem melancolia



06 janeiro, 2024

poesia

grafia das minhas
aluações da alma

fragmentações explícitas
do meu eu baldio

exposição dos fios
desencapados de dentro

bálsamo precário
pr'esse coração sem jeito

único ofício
concreto que tenho

pai

meu pai
meu contrário
(como eu queria
ser) inteiro
cabeça e pés
no chão do dia

04 janeiro, 2024

Uma cama entre dois turbilhões

Para a Zezé

Tempos tumultuosos lá fora
dores, lutas, labutas
presságios de fim de mundo

Aqui dentro
o coração revolto
um poeta de cabeça fraca

Amanhece chovendo manso
sinto o doce odor da sua respiração
misturado ao suave suor noturno
de sua pele atlética

A bagunça dos lençõis e cobertas
mal oculta a harmonia da cena
e a força do seu sono ressoando
luz contra as sombras do mundo
e meu coração soturno

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...