27 novembro, 2022

Caraminholas na cabeça do menino aluado

Como é  que existe algo
se não era de haver nada,
nem este gato, átomo,
galáxia nenhuma, nem Deus,
nem a ideia de Deus; sequer
este pensar que não há 
de haver deuses, coisas, nadas...
nem este poema que quase
não existe? 

Mas há!
 
E se houvesse um outro
universo no multiverso,
o inverso do espaço-
tempo do existir, 
(não) onde só há o Nada?

E se numa dessas jornadas
de versos ao infinito
das caraminholas que eu
empreendo sempre, eu
caísse nesse outro
universo vazio, eu
me afundaria no Nada
ou não? Ou eu
adoeceria o Nada
de (eu) existir?

05 outubro, 2022

Oração do segundo turno

Nossa Senhora dos Pagãos
e São Marx, protetor dos ateus,
dai-nos forças para não
cairmos na tentação
de jogar tão baixo e sujo
quanto as pessoas de bem
e certos filhos de Deus
que mais parecem filhos da puta;

e dai-nos verve, paciência e empatia
para a crudelíssima luta
para libertá-los do surto
fascista e trazê-los ao mundo
real como ele é, sem o Bem 
contra o Mal e nem cons-
pirações pervertidas;

e livrai-nos do mal
do bolsonarismo e também
de todo e qualquer (neo)fascismo,

amém!
 

 

25 setembro, 2022

Expécie

Do pó à alma. Tênue equilíbrio
de carbono entre a matéria
e a teia de sentidos que se e-
vapora com(o) as águas
do Cerrado, até o deserto
de nós. A terra sem os rios
de símbolos milenares.
O equilíbrio se quebra, a alma
e a matéria dos vivos
se transmutam no Deus
monetário, autômato
Narciso. Que deus
sentirá nossa falta?
 

 

28 agosto, 2022

Brega

Só é bom quando é 
um retumbante sucesso
na Rádio Record(ação) infinita
de nossa velha juventude. 

Só é bom quando vira 
uma lembrança-bomba
que nos vira do avesso e revira
a cabeça e os olhos da gente
em coração, fígado e ouvidos
como jamais se vira.

Só é bom quando
o passado nos fere
com suas mágoas e risos
por nós quase esquecidos
e a pieguice de sempre
para sempre nos habita.
 

 

31 julho, 2022

Lembrança

Minha sombra no fundo
do riacho de águas transparentes.

As águas passam
a sombra fica

mas o que existe, mesmo
no fundo, são as águas.

25 julho, 2022

Prosa com um velho poeta

não saberás o rumo a seguir,
pois o caminho também não te espera
(Álvaro Pacheco)
 
Se ninguém te lê Mallarmé
quanto mais vosmecê
velho poeta da província
com suas canções desoladas
sobre o (não) sentido da vida,
suas canções de modernas feições
mas deslocadas da forma e da fúria
modernas, suas canções tão longe
deste chão miserável
onde o povo só pode pensar
no pão de amanhã que talvez faltará.
 
Ainda assim te entendo velho poeta
e é alegre e doce ler os poemas teus
tão céticos e amargos. Nalguns dias
a tua solidão me faz companhia.

Entendo também outras almas sensíveis,
poetas ou não, que podem meditar sobre o não
sentido da vida sem se preocupar com o pão
de amanhã, mas sentem raiva e angústia
(ou seria vergonha, culpa, má consciência?)
por tal privilégio, já que o resto do povo
só pode pensar no pão de amanhã 
que talvez faltará.
 
As almas sensíveis não conseguem/tentam escapar
da máquina do mundo que fabrica uma multidão
de bocas famintas e fabrica um muro e do outro
lado do muro, uma fartura infinita de pão
para tão poucas bocas bem saciadas. E entre estas
as almas sensíveis e tristes sonham
a alegria do dia em que todos, sem exceção
e se assim o quiserem, poderão meditar 
sobre o (não) sentido da vida sem se preocupar 
com o pão de amanhã, que a ninguém faltará.


18 julho, 2022

20 junho, 2022

Quase velho

Sempre foi velho
desde criança contemplando
adultos dentro do mundo
emaranhados em seus afazeres, deveres, amores
corpos inteiros no fluxo confuso do mundo.
Olhava-os com espanto e reverência, sem saber 
que os olhava das margens
se entregando pela metade
ao fluir tormentoso do rio
como crianças apavoradas
que se agarram às margens e sonham
as aventuras do mergulho.
 
Para a criança o rio 
é a fonte a refletir seu inocente
e cruel Narciso
o rio apenas um instrumento do riso
(só depois os adultos fantasiam 
vivências poéticas do rio da infância).

Mas naquele menino havia um Narciso 
mais cruel, que nunca 
quis ir-se e o menino ficou
à margem e o rio acabou
em lago, espelho estanque de seu riso
sempre mais amargo
como o riso dos velhos mal vividos.
 
E o homem feito vagou 
a vida toda imerso pela metade
e a outra metade etérea
(ou mineral ou putrefata, qualquer metáfora para fora
da vida) presa nas margens da vida
como os velhos cada vez mais
etéreos, pois lhes falta
corpo cada vez mais
mas sem a paz
dos velhos.

Agora a idade do corpo
se aproxima enfim da sua idade
de sempre, das verdades contemplativas
e etéreas dos velhos (seres próximos 
do éter e do pó absolutos)
mas sem conhecer a paz 
dos velhos que se entregaram ao fluir
e só agora se reencontram na última margem
relembrando a infância antes de se
lançarem às águas no cio
dádiva infinita
do finito do rio.

Sem conhecer a paz, agora quase velho
só houve memórias de margens
sem o outro lado nem o rio imenso 
nem mergulho nem travessia 
nem entrega nem (re)encontro
houve apenas o riso amargo à margem.
Só ouço o pó, éter sem fim...

Mas se ouve um poeta
também, um ser de éter
ainda, um filho do desassossego.
 
João Colagem

 

17 junho, 2022

Poética do perdão

Desculpem-me as alturas 
das profundezas intemporais
mas as palavras também falam
de larvas, lavras e chão
e são para se ver também.

Desculpem-me os vates do chão 
mas certas horas, em horas incertas
há desejos de céu no céu 
da minha boca incrédula.

Desculpem-me cultores
do chão e da forma
pois minhas memórias se querem
contar, de alguma forma
não devem ser minhas
memórias apenas.

Pois há os puritanos
do chão e o céu da forma 
pura e outro céu ainda, do espírito
mais puro. Desculpem-me os puros
pela voz mestiça,
o sincretismo de rezar
ao mesmo tempo em mil altares, o infiel
deitar-me em tantas camas
com palavras de lava e lama
e seu veneno vaporoso.

Desculpem-me
o bacanal das línguas lânguidas 
dissolvidas em orgasmos sujos
de terra, entorpecidas de ares viciados,
em turvas águas afogadas e queimando-se
ávidas no fogo fátuo
no seu eterno fogo fátuo.

Perdão 
por todos os meus pecados!

João Colagem

16 junho, 2022

parcas linhas

a morte
destino
certo

a vida
sentido 
incerto

um certo
caminho
cego
 
 
 
Nº 16 - Jackson Pollock

 

24 maio, 2022

Idílios de um burocrata febril

Do ebook Pretextos marginaus de 2004

Passar as tardes longe
vendo o vidro
mostrar-me o lento
fluxo de tempo
e a chuva chegando.

Esquecer todos os mandachuvas
volver-me todo – e só sei se entregar-me
se tragar-me até o último pulso –
ao luxo de um frêmito de vácuo.
Caos e acaso, miríades, ninguéns
acolhei estas ondas quase domadas
quase concêntricas em si (mim)
lançai-as ao descompasso anexato
do fluxo desta chuva.

Não reconhecer-se
esquecer todos os abismos
apagar as cismas
soltá-las, prisma
cacos, nacos
de lembranças refugadas.
Num cisma
nego-me e pego apenas
penas flutuantes
amantes de uma lua
de rua.

Chuva
jamais me houve.

 
 
Estar doente tem suas vantagens
de ver assim meio de esgueio
gente, bicho, coisa
assim querendo cair
a gente atravessa o mundo de lado
meio deslumbrado, meio soçobrado
a vida trisca num quase
num se ou numa frase
nem doída nem satisfeita.
Viver doente, empestado ou demente
assim meio sem jeito, é feito
fazer de qualquer ponto
da vida uma tangente.
 
 
Aqui dentro
"bom dia doutor", diz a secretária
"bom dia" de volta e pensa
"vou te comer salafrária"
e ela consigo: "seu pança, seu velho canalha".
– Me faz um favor doutor...

Aqui dentro
"bom dia doutor" e lá fora
barulhos de carros e danças
de folhas ao vento na tarde
calor de sol e asfalto
pedaços de céu nas vidraças
um doido vadia as ruas
cigarras dormem nos galhos.

Como a vida mais vida seria
Se a vida fosse toda fora
mais lia, mais ria, mais dia
vadia, vazando mais vida.

 
A vida toda um fora
olharmo-nos nos olhos
e esquecer as teias todas
serpeando entre nós
e o mundo, esquecer
inclusive nós mesmos.

Nada mais oculto
sob nosso olhar
apenas ar e mar
gelo e areia, desertar
desterrarmo-nos do mundo
de tudo o que é profundo

suspensos
sem nenhum mistério
gravidade alguma.

Entre nosso olhar
vadia, calmo, o caos.



09 maio, 2022

Serei-as?

Ouvindo Céu, Salma Jô, 
Maria Beraldo e Bárbara Eugênia
 
elas muitas
seus corpos um
canto do cosmo
onde o cosmo
se con-
centra
 
eros & afrodite
corpo & boca
alma & vulva
pele & mente
língua & dentes
tudo tanto
tenso tão in-
tenso cavalas
felinas ser-
peiam perversas
derramam-se
em palavras
nuas suas
línguas-lâminas
cortam-me
os nervos d'alma
salivam em mim
seu beijo-veneno
desejo (fêmeo) de uma vida inteira
numa linha de 
Voz

Vênus de Milo com gavetas - Salvador Dalí

02 maio, 2022

06 abril, 2022

letra morta

só os
poetas
(ou as
pirantes
a) leem
poesia
 
poeta só
prestarás
(se prestares)
depois de bem
velho ou bem
morto

(quase)
ninguém lerá
teu verso torto
tantos desejos
tontos   ah!
vida perdida
em letras suicidas


 

23 março, 2022

Furdunço

Os alvos fidalgos na sala
Brindam aos deuses da fortuna
 
E ralham soberbos co'os bárbaros,
Tosco gentio de fea figura,
Alma escura e estirpe mui pobre,
A amassar o pão na cozinha,
A labutar até o bagaço
E a grunhir, vã revolta, aos nobres
Reza braba, praga e resmungo.

E enquanto rinham, cai a casa
Na cabeça de todo mundo.

 

Sem título - Zdzislaw Beksinski


05 março, 2022

Um saber infernal

O caminhar sombrio
daquele que carrega
dentro de si o inferno
em meio ao inferno 
das ruas sujas de medo
miséria, ódio e rancor.
 
Sua alma queima de frio...
Pelo escuro possuído
e envolto no escuro, só 
o sóbrio saber das sombras
risca uma fresta de céu (sol)
na couraça dos dois infernos
carentes do calor
do amor e da luz
do sentido.
 

 

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...