Idílios de um burocrata febril

Do ebook Pretextos marginaus de 2004

Passar as tardes longe
vendo o vidro
mostrar-me o lento
fluxo de tempo
e a chuva chegando.

Esquecer todos os mandachuvas
volver-me todo – e só sei se entregar-me
se tragar-me até o último pulso –
ao luxo de um frêmito de vácuo.
Caos e acaso, miríades, ninguéns
acolhei estas ondas quase domadas
quase concêntricas em si (mim)
lançai-as ao descompasso anexato
do fluxo desta chuva.

Não reconhecer-se
esquecer todos os abismos
apagar as cismas
soltá-las, prisma
cacos, nacos
de lembranças refugadas.
Num cisma
nego-me e pego apenas
penas flutuantes
amantes de uma lua
de rua.

Chuva
jamais me houve.

 
 
Estar doente tem suas vantagens
de ver assim meio de esgueio
gente, bicho, coisa
assim querendo cair
a gente atravessa o mundo de lado
meio deslumbrado, meio soçobrado
a vida trisca num quase
num se ou numa frase
nem doída nem satisfeita.
Viver doente, empestado ou demente
assim meio sem jeito, é feito
fazer de qualquer ponto
da vida uma tangente.
 
 
Aqui dentro
"bom dia doutor", diz a secretária
"bom dia" de volta e pensa
"vou te comer salafrária"
e ela consigo: "seu pança, seu velho canalha".
– Me faz um favor doutor...

Aqui dentro
"bom dia doutor" e lá fora
barulhos de carros e danças
de folhas ao vento na tarde
calor de sol e asfalto
pedaços de céu nas vidraças
um doido vadia as ruas
cigarras dormem nos galhos.

Como a vida mais vida seria
Se a vida fosse toda fora
mais lia, mais ria, mais dia
vadia, vazando mais vida.

 
A vida toda um fora
olharmo-nos nos olhos
e esquecer as teias todas
serpeando entre nós
e o mundo, esquecer
inclusive nós mesmos.

Nada mais oculto
sob nosso olhar
apenas ar e mar
gelo e areia, desertar
desterrarmo-nos do mundo
de tudo o que é profundo

suspensos
sem nenhum mistério
gravidade alguma.

Entre nosso olhar
vadia, calmo, o caos.



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