Quase velho

Sempre foi velho
desde criança contemplando
adultos dentro do mundo
emaranhados em seus afazeres, deveres, amores
corpos inteiros no fluxo confuso do mundo.
Olhava-os com espanto e reverência, sem saber 
que os olhava das margens
se entregando pela metade
ao fluir tormentoso do rio
como crianças apavoradas
que se agarram às margens e sonham
as aventuras do mergulho.
 
Para a criança o rio 
é a fonte a refletir seu inocente
e cruel Narciso
o rio apenas um instrumento do riso
(só depois os adultos fantasiam 
vivências poéticas do rio da infância).

Mas naquele menino havia um Narciso 
mais cruel, que nunca 
quis ir-se e o menino ficou
à margem e o rio acabou
em lago, espelho estanque de seu riso
sempre mais amargo
como o riso dos velhos mal vividos.
 
E o homem feito vagou 
a vida toda imerso pela metade
e a outra metade etérea
(ou mineral ou putrefata, qualquer metáfora para fora
da vida) presa nas margens da vida
como os velhos cada vez mais
etéreos, pois lhes falta
corpo cada vez mais
mas sem a paz
dos velhos.

Agora a idade do corpo
se aproxima enfim da sua idade
de sempre, das verdades contemplativas
e etéreas dos velhos (seres próximos 
do éter e do pó absolutos)
mas sem conhecer a paz 
dos velhos que se entregaram ao fluir
e só agora se reencontram na última margem
relembrando a infância antes de se
lançarem às águas no cio
dádiva infinita
do finito do rio.

Sem conhecer a paz, agora quase velho
só houve memórias de margens
sem o outro lado nem o rio imenso 
nem mergulho nem travessia 
nem entrega nem (re)encontro
houve apenas o riso amargo à margem.
Só ouço o pó, éter sem fim...

Mas se ouve um poeta
também, um ser de éter
ainda, um filho do desassossego.
 
João Colagem

 

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