Crise é oportunidade

Crise é oportunidade. A frase se tornou um clichê utilizado nas finanças e na administração, mas é uma verdade. Individualmente, quando a pessoa entra em crise, seus fantasmas e neuras ocultos pela “normalidade” do dia a dia afloram e surge a oportunidade dela encarar os seus demônios, que ela fazia questão de não enxergar, de frente. É quando ela busca ajuda de amigos, sacerdotes ou psicólogos para tentar se compreender e fazer algo para melhorar.

O raciocínio também se aplica para uma crise no plano coletivo, com a que estamos vivendo com o coronavírus e a crise econômica que se seguirá. Os investidores e os empresários mais astutos sabem disso e mantêm o sangue frio em meio ao desespero para “comprar ao som dos canhões (do coronavírus) e vender ao som dos violinos”. Mas eles veem a crise apenas como oportunidade para melhorar a posição dos capitais de suas empresas ou fortunas particulares. Muitos criticam o egoísmo dessa atitude, mas devemos reconhecer que ela é eticamente legítima e juridicamente legal, ou seja, é justificável no âmbito dos valores de nossa sociedade, inclusive os mais progressistas.

A crítica dos progressistas aos neoliberais

Os economistas progressistas (também chamados de keynesianos, desenvolvimentistas ou heterodoxos) veem outro tipo de oportunidade nesta crise, menos egoísta e mais solidária. Eles apontam, com razão, a loucura neoliberal de nos submetermos incondicionalmente às leis do livre mercado, que dizem apenas que a economia não pode parar.

Para os progressistas o mercado é impiedoso e volátil demais para ser deixado à própria sorte e por isso a sociedade deve regulá-lo por meio do estado, para evitar crises e, se estas ocorrerem, para socorrer os mais vulneráveis. Eles acreditam, como afirma Anjuli Tostes num artigo recente, que “a economia não é algo separado da escolha das pessoas, como a física ou a química. Ela é uma construção social, produto das nossas escolhas”. Esta posição da deriva da crença progressista de que o arranjo da economia no capitalismo depende de escolhas políticas coletivas, ou seja, que a política pode, em última análise, definir os rumos da economia.

Afinal de contas, as leis do mercado não são como as da física, como a autora afirma. De fato, a necessidade de lucro efetivamente não é como a lei da gravidade. Mas os empresários, aqueles que efetivamente estão expostos às “leis do mercado”, rebatem que se eles deixarem de ter lucro por um certo tempo, vão cair, junto com seus empregados, no abismo econômico da falência, da mesma forma que um avião se espatifa no chão, com tripulação e passageiros, quando acaba seu combustível.

O lucro para as empresas continuarem no mercado é como a gasolina para um avião vencer a gravidade: quem não tem lucro despenca. Da mesma forma é o trabalho remunerado para a imensa maioria das pessoas: ele é a passagem para se estar dentro de um avião. Se você não consegue trabalho, sinto muito, será jogado ao ar em pleno voo. Em alguns países há bons paraquedas para os perdedores (salário desemprego, renda básica, etc), em outras, como a nossa, eles são de segunda categoria, cheio de furos e às vezes não abrem, mas há lugares, como nos países mais pobres, em que simplesmente não há paraquedas e as pessoas vão para o (ou nunca saem do) abismo da miséria.

As respostas dos progressistas aos dilemas da economia de mercado

Como os keynesianos rebatem a essa argumentação de que as leis do mercado, embora sociais, têm a mesma objetividade e força de coação que as leis naturais? Na verdade, seus diagnósticos e receituário não vão no sentido de suspender ou mesmo abolir da leis do mercado. Parece que, no fundo, eles não acreditam que elas podem ser suspensas ou contrariadas. Por isso, eles não criticam nem vislumbram um mundo onde não haja necessidade de mercados, capitais em concorrência, lucro, trabalho remunerado, crescimento econômico e de produtividade etc.

Mas os keynesianos creem que os mercados podem e devem ser regulados pela ação estatal que, em última instância, depende de decisões políticas. Para ser mais preciso, os keynesianos não desafiam as leis do mercado, mas acreditam que as sociedades, por meio de decisões políticas, podem se adaptar melhor ou pior às suas intempéries, utilizando o peso do jurídico, econômico e político estado para forçar a melhor adaptação possível. Para isso, eles insistem em três ações necessárias dos estados para a correção dos mercados, todas inspiradas no keynesianismo dos anos dourados do estado do bem-estar social:

1. Propõem que o estado force um ponto de partida realmente igualitário para as pessoas no jogo do mercado, ou seja, que todos tenham efetivamente uma boa educação, um bom atendimento de saúde, alimentação e moradia, enfim, que as famílias pobres (dos pais perdedores na competição capitalista) tenham proteção social para que seus filhos tenham condições de sair da condição de miséria. Ora, esta proposta nada mais é do que a execução das ideias liberais de chances iguais para todos. De fato, os progressistas acusam os neoliberais de defenderem a ideia mas não a colocarem em prática, ao deixar os perdedores e seus filhos “ao Deus dará”, reproduzindo a miséria por inércia histórica.

2. Propõem, por questões humanitárias, que haja socorro digno para os perdedores, principalmente para os que não podem concorrer no mercado, como idosos, doentes, deficientes, dependentes químicos, mendigos, mas também os desempregados estruturais que se tornam supérfluos para o mercado e são obrigados a se virarem na economia informal de bicos. Novamente, não há desacordo com posições liberais, a não ser as mais fanáticas. Aliás, muitos liberais insuspeitos, como Milton Friedman, propõem uma renda mínima por questões humanitárias e para evitar convulsões sociais que abalariam o bom funcionamento dos mercados. Mesmo porque ela ajudaria, num círculo virtuoso, nos esforços para proporcionar condições iniciais igualitárias, ao permitir que as famílias perdedoras proporcionassem o mínimo necessário para uma boa formação de seus filhos,  permitindo-lhes que sejam, quando adultos, competidores aptos no mercado de trabalho.

3. Defendem uma forte regulação do mercado por parte do estado e até mesmo a atuação direta na economia por meio de empresas públicas, estatização e monopólio de alguns setores considerados estratégicos. O argumento (correto) é que a autorregulação do mercado é turbulenta demais, provocando crises sociais e políticas insuportáveis. Este é o único ponto em que os keynesianos divergem frontalmente das teorias liberais e neoliberais que pregam a autorregulação dos mercados. Mas o fato é que, exceto em raríssimas e desastrosas ocasiões, nem os governos mais abertamente liberais efetivamente abrem mão da atuação do estado como regulador e participante direto da economia. Nos EUA, farol neoliberal do mundo, portos, aeroportos e a maior parte da infraestrutura energética, rodoviária, ferroviária e de saneamento básico é estatal; há uma forte política de compras estatais que privilegiam a produção nacional; o governo é o principal financiador da ciência básica e aplicada, que é repassada, depois, às empresas de alta tecnologia nacionais; e a política monetária de seu Banco Central é a de proporcionar crédito abundante e barato (chuva de dinheiro) à banca, empresas e famílias, como incentivo à produção e consumo; tudo isso de acordo com o receituário keynesiano. Experiências fanaticamente neoliberais de estado mínimo, tentadas na Argentina, México e, agora, no Brasil, conduziram estes países ao desastre econômico e social.

Progressistas são liberais aperfeiçoados e pragmáticos

No frigir dos ovos, a solução progressista encontra-se dentro dos marcos liberais e trata-se, na verdade de um liberalismo aperfeiçoado e pragmático. Aperfeiçoado porque tenta democratizar o capital, seja proporcionando, de fato, condições iniciais igualitárias para todos, seja distribuindo a renda para massificar o consumo e, em consequência, a cidadania – que se exerce de fato pelo poder de compra e apenas acessoriamente por uma utópica consciência política, não tenhamos ilusões. Por isso, o nome progressismo é adequado, pois se trata de um progresso (um aperfeiçoamento) e um contrapeso humanitário em relação às rigidez teórica do liberalismo, insensível ao sofrimento humano e impraticável por longo tempo em qualquer sociedade. No pós-guerra, quase todos os governos duradouros foram progressistas/keynesianos e mesmo com o advento neoliberal, boa parte do receituário keynesiano foi mantido, apesar do progressivo desmonte do estado do bem-estar social.

O progressismo é um liberalismo pragmático e realista porque, ao contrário da ingenuidade liberal, que crê na possibilidade do funcionamento dos mercados com o estado mínimo, reduzido a guardião das leis e da moeda, os keynesianos sabem que a disputa capitalista é entre indivíduos e empresas, mas também entre nações e blocos de nações, extrapolando para a geopolítica mundial. Por isso, o estado deve entrar ativamente na disputa capitalista e garantir que as empresas nacionais ou instaladas em seu território sejam competitivas, por meio de investimentos massivos em infraestrutura, educação, ciência e tecnologia, políticas industriais, controles de capitais, do câmbio, dos juros e até mesmo assumindo empresas em setores estratégicos.

Por conta desse pragmatismo, os keynesianos são mais capitalistas que os liberais, cuja política de retirada do estado acaba por enfraquecer o país na competição internacional, levando-o à pobreza. Todos os estados industriais ricos e competitivos da atualidade foram e ainda são, em larga medida, keynesianos, da perspectiva da interferência efetiva do estado na economia nacional com a finalidade de posicionar o país como vitorioso na ferrenha concorrência mundial. É o caso dos EUA, Alemanha, Japão, China e Coreia do Sul: nenhum deles cometeram o suicídio de praticarem um liberalismo puro sangue, de estado mínimo.

O advento do neoliberalismo, portanto, não foi uma vitória completa das ideias do liberalismo financeiro sobre o progressismo e a economia real. Foi, antes, uma acomodação entre ambos, corroendo as receitas distributivas e de proteção social, de matriz keynesiana, no interior dos países, mas mantendo a participação ativa do estado na guerra de capitalista. O neoliberalismo dos países vencedores é uma espécie de keynesianismo selvagem, que apoia ativamente o capital financeiro e produtivo, proporciona emprego e crescimento do PIB, mas paga mal o trabalho e lhe oferece pouca proteção social. O modelo mais vitorioso desse “novo keynesianismo” é a China, mas ele se instala paulatinamente nas demais nações industriais, como EUA e Alemanha, cujas “flexibilizações” do trabalho vão sempre na direção de seu barateamento e precarização ― escrevi sobre isso no artigo A China é o modelo a seguir?.

A crise como oportunidade para a volta de um keynesianismo humanitário

Agora, na crise do coronavírus (mas foi assim também em 2008) os progressistas/keynesianos acham que é hora de nos decidirmos politicamente por um capitalismo mais humanitário, de colocarmos freio na insensatez do neoliberalismo fanático, a la Levy/Meirelles/Guedes, mas também no keynesianismo selvagem ao estilo chinês e que se espalha para a Europa e os EUA, minando o estado do bem-estar social. É hora de voltar a distribuir o capital para o povo, repovoando as nações com uma forte e numerosa classe média, investindo em ensino e saúde públicos, universais e gratuitos, em programas de renda mínima para os desassistidos, na proteção efetiva do meio ambiente (nosso suporte de vida) e no amparo às minorias e mais vulneráveis. É hora, enfim, do estado intervir na economia não apenas a favor das corporações, como faz o keynesianismo selvagem chinês, mas para democratizar de fato o capital, como nos bons tempos do keynesianismo do pós-guerra.

O coronavírus está mostrando como o neoliberalismo fracassa quando se trata de proteger a vida das pessoas, seja na versão fundamentalista dos Chicago Boys, seja na versão pragmática do keynesianismo selvagem chinês. O capital e suas leis (o lucro, o trabalho assalariado, a eficiência produtiva) devem servir ao bem-estar das pessoas e não o contrário. Precisamos nos decidir coletivamente em direção a essa humanização do capitalismo. É preciso voltar ao ideário progressista social-democrata, que manda a política colocar um cabresto na economia, para que ela seja um instrumento para bem-estar humano e não o contrário, como vem acontecendo.

Afinal, a economia não é como a física, cujas leis naturais são incontornáveis, não é mesmo? E novamente, as boas intenções progressistas, nos fazem retornar ao problema inicial de onde partimos neste artigo: será que os rumos da economia capitalista são mesmo uma questão de vontade política? E será que os keynesianos/progressistas acreditam nisso de fato? Acabamos de mostrar que os progressistas são, na verdade, mais pragmáticos que os liberais puro-sangue, o seja, que suas receitas econômicas intervencionistas tornam o país e suas empresas mais ricos, mais adaptados (mais fortes) para sobreviver na dura seleção “natural” do mercado mundial.

Se é assim, na hora do “vamos ver” será que os keynesianos/progressistas irão mesmo além da simples adaptação e tentarão mudar a direção “natural” do capitalismo global, elaborando leis para aumentar salários e direitos trabalhistas, tributar lucros e renda progressivamente, gastar com renda mínima e proteção de vulneráveis? A Alemanha vai olhar para a China e outros emergentes asiáticos e se perguntar: eles vão encarecer os custos para a produção com aumentos de salários, direitos e tributos? Duvido! Eu também não vou. O mesmo dirão os EUA e a própria China. E todos os demais países.

Como dissemos antes, por mais boa vontade que se tenha, as leis do capital (entre elas a da concorrência, que premia os capitais mais eficientes em gerar lucro, barateando ao máximo os custos do trabalho) embora sejam sociais, uma vez postas em movimento se parecem com as leis naturais em sua objetividade, inevitabilidade e poder de coerção: se um indivíduo, empresa ou estado não se “adaptar”, ou seja, não se tornar competitivo, ficará para trás e se espatifará no abismo da quebradeira ou da miséria, como um avião cai quando lhe falta combustível.

O keynesianismo nunca propôs a suspensão das leis “naturais” do capital, mas apenas a adaptação da nação a ela, para que o estado se torne competitivo e rico. E, se possível, que haja uma boa distribuição interna da riqueza proporcionada pela vitória sobre as outras nações, mesmo porque a redução da desigualdade alivia as tensões sociais e cria um mercado interno dinâmico. Mas se não for possível distribuir renda para se formar uma grande classe média, como no keynesianismo clássico, que pelo menos se garanta, em nome da paz social, a empregabilidade plena, mesmo que sejam empregos precários, com salários baixos e jornadas estafantes, como acontece com o keynesianismo selvagem da China, que está sendo copiado por EUA, Alemanha e outras nações industriais.

Sem falar que os keynesianos raramente tocam no assunto da substituição de pessoas por máquinas (robôs, IA, computadores, big data, internet) como forma de aumentar a produtividade e que diminui a necessidade de trabalho humano. E, desta vez, a tendência é que o aumento da produtividade não proporcione abertura de novos postos de trabalho bem remunerados em quantidade suficiente para repor os postos perdidos – e quem afirma isso não são críticos marxistas “radicais”, mas estudos científicos mainstream.

Como retornar aos bons tempos do keynesianismo humanista (o Primeiro Mundo de 1945-1975) se as leis da competitividade e da produtividade coagem estados e corporações a reduzirem os custos do trabalho, ou barateando o trabalho humano ou substituindo-o em larga escala por máquinas?

Há competição ferrenha entre estados nacionais por empresas industriais, de preferência nacionais, que empregam cada vez menos pessoas, mas que ainda representam a melhor possibilidade de riqueza e empregos diretos e indiretos, mesmo que precários. Nesta competição, o investimento num estado do bem-estar é uma questão de custo-benefício. A paz social, a educação e a saúde das pessoas são um ativo importante para o mercado, mas se deve investir apenas o mínimo necessário nestas áreas, pois há também os investimentos indispensáveis em infraestrutura. E todos estes gastos necessários do estado são retirados da tributação do capital, que também deve ser a menor possível, para que os capitais produtivos do país sejam competitivos. Eis o segredo da eficiência chinesa: fazer o máximo com o mínimo – entre esses mínimos, estão a remuneração do trabalho e os gastos sociais do estado.

O keynesianismo nunca esteve tão forte quanto no século XXI, mas não o keynesianismo social-democrata dos trinta anos gloriosos – este perdeu competitividade, pois seus excessos salariais e de direitos aumenta demais o custo do trabalho, além de exigir uma imensa carga tributária para cobrir gastos sociais. A vitória foi do keynesianismo selvagem (ou neoliberal) chinês, que está sendo copiado paulatinamente e sem alarde pelas outras potências industriais (EUA, Alemanha, Japão, Coreia do Sul), seja pela “flexibilização” das leis trabalhistas, seja pela automação. E não será o coronavírus que vai sensibilizar o capital para os dramas humanos.

As leis “naturais” do mercado

Trump chama o coronavírus de comunista, num apelo à infantilidade das pessoas de atribuir aspectos humanos ao vírus, um “ser” absolutamente inconsciente, amoral e apolítico, cujo único objetivo é se multiplicar, infectando o máximo de organismos possíveis. É pueril tentar humanizá-lo, ele não é vermelho, não conhece fronteiras, raças, classes sociais, não é piedoso nem impiedoso, bom ou mal. O que podemos fazer com ele é estudá-lo e, a partir desse conhecimento, descobrirmos formas de o combatermos, com medidas de isolamento, internações, vacinas e medicamentos.

A mesma coisa se pode dizer do capital e suas leis, com a diferença óbvia que não se trata de um organismo biológico, mas de uma forma social que é nosso princípio de síntese social. Durante muito tempo, as várias esquerdas tentaram vincular o capital à chamada classe dominante, o 1% que, de fato, é privilegiado no capitalismo.

Mas mesmo este 1% de felizardos da população mundial (alguns dizem que são 0,1% ou ainda 0,01%) que não têm que se preocupar com as contas no fim do mês agem sob a coação do capital. O fato de serem vitoriosos não dá a eles o controle do sistema, embora tenham mais poder de influência política do que qualquer um de nós, zés ninguéns econômicos. Mas este poder decisório das elites é localizado e não sistêmico, além de ser sempre precário e constantemente ameaçado por mudanças de mercado, por rearranjos geopolíticos, pelo surgimento de “novos players” mais poderosos, pela obsolescência de seus produtos ou ramo de negócio etc.

O que impera mesmo no capitalismo são as leis “naturais” do capital, que coagem tanto os predadores (1%) quanto suas presas (99%), quase da mesma forma que as leis biológicas coagem igualmente os organismos do vírus e os nossos, obrigando-nos a nos adaptarmos a elas, recolhendo-nos à quarentena e buscando medicamentos e vacinas para enfrentarmos a praga.

A diferença entre o vírus e o capital é que, em relação ao primeiro, não podemos suspender, por vontade própria, as leis naturais, reorganizando a natureza de forma a não haver mais vírus a nos infectar ou que, pelo menos, infectem apenas os “comunistas”, como gostariam os trumpistas e bolsonaristas. Quanto ao capital, como se trata de uma forma social, há a possibilidade de suspendermos as suas leis. Podemos mesmo extingui-lo.

E há precedentes históricos de vida humana sem capital, pois na maior parte das sociedades do passado não havia dinheiro, nem lucro, nem mercado, nem trabalho – em muitas não havia nem mesmo estado. Não estou sugerindo uma volta a um passado supostamente paradisíaco, não se trata do sonho idílico de nos tornarmos índios adâmicos, com se não houvesse violência e sofrimento nas sociedades tribais. De resto, mesmo que quiséssemos, é impossível restaurar culturas passadas que, no máximo, podem nos inspirar em alguns aspectos admiráveis, como a recusa em dominar os outros povos e a natureza – embora essa recusa ao domínio geralmente não implicasse na recusa à violência e à guerra entre as tribos.

Da forma como criamos o capital, ele se tornou uma força autônoma (alienada de nós) e impossível de se controlar. Pior, ele submete a vida humana e a natureza a seu objetivo maior, de reprodução infinita – só possível ao capital por ele ser uma riqueza abstrata, pois só um ente abstrato pode crescer infinitamente. Em suma, nós criamos um mundo em que somos, juntos com a natureza, instrumentos do capital. Nem mesmo os keynesianos pretendem desafiar suas tendências espontâneas (uma expressão melhor e mais precisa do que “leis naturais”), mas apenas fazer com que nos adaptemos a elas com o menor sofrimento possível.

Mas no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo este “menor sofrimento possível” que o keynesianismo pode proporcionar às pessoas se resume à empregabilidade, na maior parte das vezes em trabalhos precários, mal remunerados e estafantes. O céu keynesiano é a China e é para lá que caminham EUA, Europa e Japão. E é se tornar uma China que o mudo subdesenvolvido deve sonhar. Mas a China é um inferno de pessoas-máquinas trabalhando 12 horas por dia, quase sem folgas e direitos e ganhando apenas para subsistência.

E há ainda outra contradição neste processo, muito bem descrita por Marx e que deriva das leis “naturais” do capital. Ao remunerar mal o trabalho humano ou substituí-lo por máquinas o capital particular que faz isso primeiro baixa o custo de produção, ganha mercado e lucra muito. Os outros capitais particulares correm atrás do prejuízo e logo baixam seus custos também. O resultado é que a taxa de lucro global decresce, assim como a massa salarial, pois as pessoas recebem menos salários ou são substituídas por máquinas, se tornando supérfluas para a produção de valor, engordando o precariado do terceiro setor.

Com isso, há uma superprodução de mercadorias e, ao mesmo tempo, um subconsumo decorrente do menor poder de compra dos trabalhadores. Para compensar esta situação o neoliberalismo criou capital fictício para emprestar às empresas, governos e consumidores, fabricando enormes bolhas financeiras que sempre explodem em algum momento, tornando o sistema ainda mais turbulento e instável. Sem falar que a necessidade de se produzir mais mercadorias para compensar a diminuição das margens de lucro está levando o planeta a seus limites ecológicos.

A oportunidade pós-capitalista

A crise do coronavírus e sua necessidade de quarentena, imposta, desta vez, pelas leis biológicas do grau e velocidade de contágio do vírus, nos oferece a oportunidade de ver o quanto nossas necessidades humanas são relativas. Nossa vida não se resume a necessidades alimentares, habitacionais e de saúde. Precisamos uns dos outros, de conviver em família e com nossos amigos, de eventos formais ou informais, festas, cerimônias etc. Mas em que medida e como fazemos tudo isso pode variar muito.

Por exemplo, a quarentena nos mostra que podemos passar muito bem sem andar de automóvel o tempo todo. Que o básico para nossa sobrevivência pode ser produzido com pouquíssimas horas de trabalho humano. Afinal, com a tecnologia que temos, umas poucas pessoas em atividade cuida das necessidades de quase todo mundo. E boa parte de nossa sede de consumo parece extremamente supérflua.

Aliás, se diminuirmos nossa sede de consumo e dividíssemos de forma equivalente o tempo dedicado à produção de bens e serviços necessários a uma vida não consumista, talvez cada um de nós não precisasse “trabalhar” mais do que meio período por dia e apenas uns três ou quatro dias da semana. O resto seria nosso tempo, para dormir, passar com a família e os amigos, fazer o que se gosta, se reunir, pensar, meditar, amar, brincar, andar por aí etc. Enfim poderíamos ser, existir para além das obrigações do trabalho e das leis do capital. Como o consumismo estaria abolido, nosso tempo livre também não estaria mais ligado às engrenagens do mercado na forma de consumo, ele seria realmente livre, inclusive da lógica da mercadoria.

A quarentena no mostra, enfim, que temos recursos técnicos e principalmente imaginativos (utópicos?) para sonharmos uma sociedade com outros tipos de necessidades e prioridades, que poderiam ser atendidas com muito menos “trabalho” humano. E mais, que os serviços e bens materiais podem ser distribuídos de forma igualitária entre as pessoas, reconhecendo que as necessidades simbólicas (que vai do gosto culinário, passando pela orientação sexual até as aptidões para certas atividades) são bastante diferentes entre indivíduos e grupos sociais.

As leis do capital são tão naturalizadas que aprisionam, inclusive, a nossa racionalidade e imaginação, que só conseguem pensar e imaginar possibilidades de vida a partir de um mundo pré-formado e pré-concebido por estas leis: necessidade de trabalho, de concorrência, de eficiência, de moeda, de lucro etc. 

Uma crise terrível como a que vivemos tem pelo menos a vantagem de quase suspender (e apenas temporariamente) o funcionamento da economia e, consequentemente, das leis do capital. Essa suspensão forçada nos permite ver que é possível haver vida humana que não seja regida pelo capital, ou seja, que não seja instrumentalizada para sua reprodução. Se formos um pouco mais ousados, podemos aproveitar esta parada dos mercados para imaginar e pensar um outro mundo, não onde o capital seja humanizado, o que é impossível como acabamos de mostrar, mas onde não mais existam as leis “naturais” do capital nos impondo suas coerções e sofrimentos desnecessários.
Ao suspender o funcionamento da máquina do mundo, a crise suspendeu também a hipnose do capital sobre nossas mentes e abriu uma brecha em nossa percepção para vermos a irracionalidade e o sofrimento provocado nas pessoas, não apenas pelo neoliberalismo, mas pelo próprio capitalismo e sua lógica da mercadoria.

Por essa brecha os keynesianos vislumbram o retorno de um capitalismo humanista que, como vimos, nunca passará de um sonho e acabará por se tornar uma nova adequação do humano ao capital.

Por essa brecha que a crise abriu em nossa percepção, podemos vislumbrar mais: um mundo sem o capital e suas leis, em que a humanidade use todas as potencialidades que ela desenvolveu até agora, não para a reprodução do capital, mas para seu próprio benefício. E, ao contrário do que muito pensam, trata-se de um utopia realizável. E necessária, dado o estágio atual do capitalismo, que desde a década de 1970 parece rumar para seu colapso final.

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