A China é o modelo a seguir?

Na esquerda progressista, a China é citada como o modelo a seguir. Em contraposição ao fiasco histórico do neoliberalismo, os economistas progressistas cantam loas à China do século XXI: Paulo Gala, Luiz Gonzaga Belluzo, Bresser-Pereira, entre tantos, veem a China como o farol do novo progressismo ou novo desenvolvimentismo. Devemos imitá-la, desvalorizar a moeda, investir em ciência e tecnologia, infraestrutura e fazer com que o estado regule e intervenha na economia, se necessário, tornando-se produtor de mercadorias por meio de empresas estatais.

E mais, o estado deve exigir das empresas nacionais protegidas que sejam competitivas no mercado mundial. A produção industrial não deve ser apenas para substituição de importações, mas destinada à exportação, à competição ferrenha no mercado mundial. A China adotou uma espécie de keynesianismo mercantilista super-agressivo, de conquista de mercados. E o Brasil deveria imitá-la, tomando a América do Sul e parte da África como mercados cativos de consumo e fornecedores de bens primários e disputar o resto do mundo com Alemanha, EUA, Japão e China.

As causas reais do “sucesso” chinês

Mas será que o sucesso industrial da China se deve apenas a câmbio baixo, investimento em ciência e tecnologia, infraestrutura e forte intervenção estatal? Há outros dois fatores frequentemente esquecidos pelos progressistas e que são fundamentais para este sucesso: a exploração extrema da mão de obra e os baixos impostos.

O keynesianismo europeu, japonês e norte-americano dos trinta anos gloriosos (1955-1975) combinava forte regulação do estado com altos impostos e benefícios crescentes para os trabalhadores – desde bons salários a serviços públicos universais e de qualidade. Não é o que se vê na China. Lá, o desenvolvimento é para poucos, uma espécie de keynesianismo selvagem que é duro com a concorrência internacional e mais duro ainda com o trabalhador chinês.

Grande parte dos chineses são trabalhadores precários e vendem o almoço para pagar a janta. Os não precários, formalmente vinculados às empresas, ganham, em sua maioria, muito pouco: apenas o suficiente para pagar as contas. Para atrair as empresas e, depois, para continuarem na China, os impostos sobre o lucro são baixos e a arrecadação estatal costuma ser direcionada para a infraestrutura, ciência e tecnologia, restando muito pouco para políticas públicas universais: não há sistema de saúde gratuito na China, um país que se diz comunista!

O estado do bem-estar que não existe nem existirá na China

Na verdade, não há estado do bem-estar social na China, uma característica fundamental do keynesianismo clássico. A maioria da população é pobre. Embora a miséria tenha diminuído, a ascensão de uma pequena elite corporativa e de uma numerosa classe média (que, entretanto, é minoria ante a imensa população chinesa) fez aumentar a desigualdade no país, ou seja, aumentou a pobreza relativa da maior parte da população.

E não há nenhum sinal de que a situação dos trabalhadores chineses vá melhorar. Alguns mais qualificados ganham mais e passam à classe média, mas uma das vantagens comparativas de China ainda é sua mão de obra qualificada, dedicada, obediente e… barata! Principalmente barata. Se ela ficar cara ou inconveniente por algum motivo (podem descobrir, de repente, que o empregado chinês não é tão dócil assim), a China está mais do que preparada para automatizar tudo, aumentando brutalmente a produtividade por trabalhador e expulsando a maior parte dos operários do setor industrial.

Expulsos da fábrica, eles iriam para o comércio e os serviços, onde a tendência mundial é a precarização que, na China, não é tendência, mas a regra, inclusive na indústria. Ou seja, não existe a menor perspectiva do keynesianismo selvagem chinês realizar a utopia do keynesianismo clássico de inserir a maioria das pessoas na classe média, livrando-as da precariedade e da super-exploração. Se a China quiser continuar competitiva, das duas uma: ou sua indústria continua pagando mal, ou é automatizada, expulsando os trabalhadores para o setor terciário, ainda mais precário.

Isto não acontece porque a cúpula do PC chinês, das empresas nacionais ou das corporações multinacionais que lá se instalaram são más. Não é uma questão moral. O problema é que depois que a concorrência de mercado diminui e padroniza o custo de produção de uma mercadoria, nenhuma empresa ou estado pode mais elevá-lo por vontade própria, sob pena de perder mercado e, consequentemente, lucro.

A China não vai se desenvolver: os desenvolvidos é que estão se achinesando

A mão de obra barata e os baixos impostos chineses, conjugados com a automação extrema utilizada principalmente nos EUA, Alemanha e Japão, baixaram o custo de produção das mercadorias industriais a mínimos históricos. Em consequência, as margens de lucro também são baixíssimas. Alguns componentes eletrônicos, por exemplo, têm custo (e também lucro) quase zero de produção, depois de pago o maquinário para produzi-los. Isto não tem volta e hoje, para manter o custo de produção padrão, é preciso, ou pagar miseravelmente os trabalhadores, ou automatizar tudo, gerando desemprego estrutural.

Assim, a única forma de uma nação se industrializar de forma competitiva no contexto atual é através do keynesianismo selvagem de estilo chinês, em que o estado é ator principal na competição global ao lado das empresas nacionais, mas sem poder (não é uma questão de querer, de vontade política, como as esquerdas acreditam) dividir as benesses do enriquecimento com os trabalhadores. Ou estes são super-explorados como na China, ou são substituídos por máquinas, como nos países desenvolvidos, obrigando-os a se uberizarem no setor de comércio e serviços.

Aliás, o que ocorre, em geral, é uma combinação das duas coisas em todo o mundo, ora prevalecendo a automação (EUA, Japão, Alemanha), ora a superexploração do trabalho (China, Vietnã). No Brasil, por exemplo, as fábricas de automóveis foram amplamente automatizadas, expulsando a mão de obra para o comércio e serviços precarizados e/ou de rendimentos menores. Mas há ainda um amplo setor têxtil em que ocorre superexploração do trabalho, com metas desumanas para costureiras sem carteira assinada e que recebem por peça de roupa produzida; sem contar as situações de trabalho escravo, como o caso dos imigrantes bolivianos.

Mesmo as tradicionais nações industriais estão adotando disfarçada e paulatinamente o keynesianismo selvagem chinês, mantendo o forte apoio estatal ao setor produtivo, ao mesmo tempo que desmontam o estado do bem-estar social e “flexibilizam” suas leis trabalhistas - na verdade subtraem direitos e baixam os rendimentos dos trabalhadores. A crescente revolta popular contra a política tradicional na Alemanha e EUA, que muitas vezes toma ares fascistas, é por conta desse empobrecimento paulatino da classe trabalhadora, sentido principalmente pela juventude, sem perspectivas de nem ao menos manter o padrão de vida de seus pais, em face da precarização geral do mercado de trabalho.

Riqueza sem desenvolvimento: o futuro inexorável da nações industriais

A China é um país rico, o mais rico do mundo, mas não é desenvolvido, pelo menos nos termos do keynesianismo clássico, que considera o desenvolvimento como a combinação de riqueza nacional e ausência de pobreza de sua população. E não há nada a indicar que a China se tornará desenvolvida por tais critérios “clássicos”. Muito pelo contrário, o que está acontecendo é que os países industriais desenvolvidos, como Alemanha, EUA e Japão, estão, aos poucos, se tornando chinas: continuam ricos, altamente industrializados e competitivos, mas aumentam paulatinamente sua população de pobres, diminuindo a classe média. A riqueza com desigualdade é o preço atual para se tornar (e se manter) um país competitivo no capitalismo global.

Em tempos de automatização massiva da indústria (que avança inclusive no comércio e nos serviços) e de escalas gigantescas para compensar as margens ínfimas de lucro, não há sobras de valor para atender as necessidades dos trabalhadores, muito menos das pessoas improdutivas que o decadente estado do bem-estar procurava proteger. Crianças, velhos, doentes, deficientes, mulheres e outras minorias discriminadas tendem, cada vez mais, ao abandono e desamparo.

A máquina do mundo não pode parar, mesmo que custe a vida das pessoas. A China que o diga. Quem duvidar que vá às estatísticas econômicas e trabalhistas chinesas ou, se preferir, assista ao documentário “Indústria americana” ganhador do Oscar deste ano. Nele, os próprios trabalhadores chineses falam como é seu regime de trabalho: dois dias de folga por mês, 12 horas por dia de trabalho intenso, alguns minutos para comer.

Comentários

  1. Apenas para oxigenar, essa semana assisti uma entrevista do Jones Manuel para a TV 247 tratando das múltiplas formas de organizacao do trabalho na China, incluindo inumeras cooperativas. Obviamente nao diminui o alerta sobre a exploração do trabalho na China, mas tb considerar o apresentado no documentário industria americana como a regra, me parece uma certo exagero...nesse documentário mostram uma certa organizacao sindical dos trabalhadores da fábrica em questão, o q sabenos q igualmente nao pode ser extrapolado cono uma marca nos EUA, certo?

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    1. Cara Ana Cristina, de fato o filme é só um exemplo, mas creio que os trabalhadores chineses ali retratados representam a maioria.
      Mas você tem razão, para um conhecimento mais aprofundado é necessário ler estudos de pessoas que pesquisam o trabalho na China. Como sugestão, indico estes três ótimos textos, publicados no blog Esquerda Online:
      https://blog.esquerdaonline.com/?p=8425
      https://blog.esquerdaonline.com/?p=8416
      https://blog.esquerdaonline.com/?p=8421

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