O fascínio dos artistas pelo fascismo

Da série "Capitalismo em agonia"

Ricardo Miranda, em “Me julgue, voltei a ouvir Lobão” e Alberto Villas em “Encaixotando Fagner” falam de sua relação de amor (musical) e ódio (político) com Lobão e Fagner, dois músicos que bandearam para a extrema direita e se deixaram levar pela onda fascistoide que nos assola. Fico pensando, o que faz alguns bons artistas (não raro vanguardistas) se enamorarem do fascismo?

Na Europa de 20 e 30, Ezra Pound, Herbert von Karajan e alguns futuristas tinham claros pendores fascistas. No Brasil modernista, Lobato e Villa Lobos se enamoraram do nacionalismo fascista. Agora, Lobão, Fagner e Roger (do Ultraje a Rigor) fascistaram claramente. Fagner foi ponta de lança da renovação da MPB nordestina e Lobão e Roger foram pioneiros do Rock Brasil. Todos eram desbravadores, iconoclastas, experimentais e têm ótimas canções em várias fases da carreira.

Não sei como Ferreira Gullar, falecido em 2016, se posicionaria diante da onda Bolsonaro, mas em seus últimos anos ele se tornara bastante reacionário, antipetista doentio, beirando a extrema-direita. Outros que parecem simpatizar com a onda fascista são os talentosíssimos Djavan e Guarabyra. Dinho Ouro Preto, do Capital Inicial, não votou em Bolsonaro, mas simpatiza com Sérgio Moro.

Talvez este fascínio dos músicos e poetas (comum também entre os atores) com o fascismo e seu discurso fácil contra a corrupção seja, em parte, por conta de sua situação de classe (média).

Rebeldia e fascismo

Mas desconfio de que haja alguma motivação mais profunda, que tenha a ver com sua própria condição de artista. O fascismo tem algo de vanguarda, da violência vanguardista para quebrar as regras, inclusive as das boas maneiras. Slavoj Zizek observa bem como os esquerdistas e porra-loucas contraculturais dos anos 60 e 70 eram mal vistos pelo status quo como pessoas sem modos e de boca suja. Hoje, o xingatório constrange igualmente a esquerda politicamente correta e os (neo)liberais; mas seu representante mais desbocado é um velhinho reacionário e paranoico da Virgínia, que se diz filósofo!

Há uma estética iconoclasta no fascismo que fascina alguns artistas e jovens. O fascismo tem a energia da juventude (desde os anos 1930) e expressa a rebeldia dos jovens, sufocados por um sistema social que lhes oferece, como futuro, apenas amarras: o trabalho precário, a necessidade da formação contínua, rendimento e consumo decrescentes. O consumo (de bens materiais e imateriais, de sexo, de viagens etc) é o paraíso pós-moderno, mas o ganho que a maioria da juventude vislumbra vai conduzi-la apenas purgatório capitalista do ganho escasso e do desejo frustrado dos que olham as vitrines dos shoppings sem poder comprar.

A revolta fascista, no fundo, é anti-capitalista, mas sem que os revoltosos saibam. Eles desejam voltar ou avançar a tempos melhores, restaurar uma suposta ordem em que os papéis de cada um eram bem definidos (homens e mulheres, brancos e pretos, ricos e pobres) e respeitados uns pelos outros. Mesmo para os pobres e negros haveria uma possibilidade de vida digna, desde que se resignassem à sua condição “inferior” e parassem com essa “palhaçada” ativista. Mas nesse mundo ideal, a única coisa que não se contesta são os pilares capitalistas: o trabalho abnegado, a propriedade privada e o lucro.

A revolta é contra os efeitos do capitalismo, como a exclusão social, o desemprego e principalmente a corrupção endêmica, que, para o fascista, se torna o mal causador de todos os demais males e que costuma se vincular às esquerdas ou aos “comunistas”, mas também aos judeus, gays, feministas e outros bodes expiatórios.

O fascismo, então, embora parta de um impulso inicial libertário, de revolta violenta contra o status quo, termina por se revelar como uma onda coletiva cujos afetos mobilizadores são o medo e o ódio, que deixam apenas um rastro de destruição e morte por onde passa.

Romantismo e fascismo

Talvez alguns jovens e artistas se sintam atraídos pelo fascismo exatamente por conta dos paroxismos que o sustenta, muito semelhantes aos impulsos românticos, ao mesmo tempo criativos e destrutivos, de amor e morte: juventude e reacionarismo; energia rebelde e terra arrasada; liberdade ilimitada de ação e tirania sanguinária; promessa de uma vida limpa da corrupção e a suprema corrupção do assassínio massivo. Mais que semelhante, pode-se dizer que o fascismo realiza, no plano coletivo, as potências sombrias do romantismo que, em última análise, é uma revolta estética de uma parcela rebelde da classe burguesa contra o próprio modo de vida burguês e o capitalismo em geral.

O romantismo tem um evidente impulso destrutivo, de ataque virulento à estética e ao modo de vida vigente. No plano pessoal este impulso de morte muitas vezes se volta contra o próprio artista, cuja vida desregrada acaba em morte precoce, numa espécie de suicídio lento - isto quando o romântico não se suicida de fato.

O fascismo, como desenvolvimento das potências sombrias do romantismo no plano coletivo, também ataca de forma violenta as regras estabelecidas, dando a impressão de um movimento libertador - do politicamente correto, dos conchavos políticos, dos controles estatais etc. E como um romantismo sombrio, todo fascismo acaba por ser também autodestrutivo, se consumindo numa guerra sem fim, interna e com o outro, alimentada pelo ódio e o medo. Só que esta destruição se dá no plano coletivo, deixando atrás de si sociedades arruinadas.

Voltando à atualidade, tanto a MPB, quanto o Rock Brasil são esteticamente próximos do romantismo, principalmente em sua relação conflituosa com a vida moderna. E, assim como os românticos, seus músicos são oriundos da classe média contra a qual se revoltam. Romantismo, Modernismo, MPB e Rock Brasil estão num mesmo continuum estético e têm, portanto, a potência sombria da destruição irracional, que pode ou não se desenvolver num artista ou grupo de artistas.

E mais que os artistas, estas energias destrutivas podem impregnar o público, ou seja, as massas que cresceram ouvindo estas músicas. Não é raro encontrar fascistóides na casa dos 40 ou 50 anos, que são fãs de rock e passaram a adolescência ouvindo Legião, Paralamas, Engenheiros, Titãs e Lobão, grupos populares que eram máquinas de ganhar dinheiro, mas cujas letras contestavam duramente o status quo.

O que acontece com o romantismo e sua descendência (modernismo, MPB, rock) é que seu espírito rebelde instaura na sociedade uma espécie de caos estético, mas que é também cognitivo. A partir deste caos, o público e os artistas podem tomar vários caminhos, do mais libertário aos mais tirânicos. Da mesma forma, os fascismos nascem a partir da cumulação de problemas sociais insolúveis que culminam em situações caóticas de difícil compreensão. Uma das possibilidades que pode se desenvolver do caos é o fascismo.

As primeiras manifestações do movimento passe livre, por exemplo, eram extremamente anarquistas e libertárias, próximas do que chamamos de extrema esquerda. É difícil encontrar uma imagem mais romântica e libertária que um bando juvenil de black blocs mascarados, armados com coquetéis molotovs e dispostos a quebrar bancos, Mc’Donalds e concessionárias de automóveis, símbolos do capitalismo. Rapidamente o movimento virou radicalmente à direita e se transformou na onda neofascista que elegeu Bolsonaro. Mas mesmo assim o ímpeto inicial de destruição e entusiasmo juvenil por uma vida purificada da corrupção sistêmica permaneceu, encontrando num deputado do baixo clero e num juiz provinciano seus líderes e na fé evangélica sua base espiritual. E com esta feição reacionária e moralista o vírus purificador do fascismo contagiou a maior parte da população, que elegeu Bolsonaro presidente e o congresso mais reacionário das últimas décadas.

O elixir da juventude fascista

A conversão à extrema-direita de Lobão e Fagner já estava colocada, como potência, desde o início de suas carreiras no rock e na MPB, movimentos românticos por natureza. Ao encontrar a onda fascista de nossa década, a maioria dos artistas do Rock e da MPB se mantiveram indiferentes ou fiéis à sua rebeldia inicial, contra toda forma de autoritarismo. Muitos se posicionaram claramente contra Bolsonaro, Moro e a onda fascista. Alguns, no entanto, sucumbiram à empolgação juvenil (e viril, máscula) do fascismo e vincularam sua rebeldia estética à revolta fascista.

O fascismo tem o dom de rejuvenescer velhos bruxos. Fagner e Lobão estavam velhos e cansados, meio esquecidos no turbilhão comercial que se transformou o mundo da canção. Viram na energia fascista uma espécie de elixir da juventude e se lançaram em sua onda, como surfistas desesperados. Só que o feitiço da juventude fascista, como nos contos de fada, é apenas uma máscara. Por trás dela, o encantado pelo fascismo, seja ele artista ou não, apodrece em vida.

Comentários

  1. Se, como diz o texto, o fascismo tem a energia da juventude, no caso desses Fagner, a Namoradinha, Roger e Lobão (do rockinho nacional - VIDE RAULZITO E MAMONAS... ESTES, SIM !), no caso destes quatro, na verdade o encantamente com o fascismo tem mais a ver com a senilidade que atacou-lhes o espírito. Já, há muito tempo, se é que o foram algum dia, esses senhores fazem parte de uma acomodada pequeno-burguesia que já não "cheira nem fede". Fagner, por exemplo, depois de seus primeiros anos, tornou-se um "perseguidor" do sucessos populares fáceis como em suas parcerias com Michael Sullivan / Paulo Massadas. Dos demais, nada de mais a dizer.

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    1. Sim, são artistas senis, menos por conta da idade e mais por seu envelhecimento estético. Por isso buscam na excitação viril do fascismo um elixir da juventude, mas só encontram, como todos os fascistas, a pulsão da morte e a (auto)destruição. Em relação à qualidade musical, como você mesmo diz, os primeiros discos de Fagner eram bons, depois ele fez coisas boas esporadicamente. Gosto da fase inicial do Ultraje à Rigor, embora seja um rock descompromissado - como os Mamonas, aliás. Quanto ao Lobão, acho que ele produziu coisas muito boas, bastante críticas e contundentes até a década de 90. Mas aí já é uma questão de gosto.
      Abraço

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