A Vida ou o Capital?


A vida ou o capital? Esta é a questão a ser posta desde a consolidação do capitalismo na Inglaterra e Europa, com as revoluções industrial e francesa e, depois, sua paulatina expansão por todo o mundo até o fim do século XX, quando se pode dizer que todas as culturas do planeta foram literalmente absorvidas e unificadas numa única cultura moderna – a cultura do capital.

O capital é o que os sociólogos e antropólogos chamariam de princípio de síntese social da cultura moderna. Quando esta se estabelece, a sociedade se torna uma estrutura (ou uma totalidade, como gostam de chamar Moishe Postone e Robert Kurz) cujo Centro ou Ser é o Capital.

Dizer que o capital é o centro da estrutura da sociedade capitalista significa que ele dita as suas leis e seu movimento, como um motor imóvel. Significa que o capital é onipotente, por ser, ao mesmo tempo, a causa e a finalidade de todos os movimentos os eventos da estrutura; e é também onisciente, já que suas leis condicionam aprioristicamente esses movimentos estruturais, mas não apenas eles.

Dizer que o capital é onisciente, ou seja, apriorístico, significa também que ele condiciona os seres humanos, sua visão de mundo, constituição psíquica, valores e relações sociais, sem que este condicionamento prévio seja percebido pelas pessoas, pois uma das características do “a priori” é que ele é inconsciente e naturalizado. Assim, consideramos natural: que o trabalho seja uma atividade necessária ao ser humano; o recebimento de um salário justo pelo trabalho; o dinheiro; o estado; que as empresas comprem o trabalho de pessoas (empreguem-nas), vendam mercadorias e tenham lucro; que haja competição entre elas; que somos sujeitos universais do direito; que esse mesmo direito (formal, abstrato e universal) regule a vida social em seus aspectos mercadológicos, políticos, civis, criminais etc.

Mas o fato é que a humanidade, ao longo de centenas de milhares de anos de existência, sobreviveu a maior parte deles sem trabalho, salário, dinheiro, estado etc. Mesmo nas sociedades antigas e medievais, em que havia estado e dinheiro, este último não estava no centro da vida social que, geralmente, era regulada por outros princípios de síntese social, como a posse da terra, a religião e o pertencimento de classe. Apenas no capitalismo a síntese social é realizada pelo dinheiro e o lucro ou, para ser mais preciso, pelo capital e suas leis rigorosas e quase objetivas de auto-reprodução.

O problema de se ter o capital como síntese social é sua natureza, pois ele é uma riqueza abstrata que se mede pela quantidade de trabalho para se produzir uma mercadoria, seja ela qual for. Não importa se é uma bomba ou um bombom, um cigarro ou um remédio, nem se o produtor é um chinês trabalhando 12 horas por dia, um africano em trabalho semi-escravo numa mina ou um alemão com direitos trabalhistas. O que importa ao capital é que o valor investido gere mais valor (lucro), reproduzindo o capital. Ou seja, toda a concretude qualitativa da vida humana é reduzida à quantidade abstrata e inumana do capital, em função do qual a vida deve ser vivida/sofrida, principalmente em forma de estudo e trabalho - mas também de consumo, o gozo no capitalismo.

No capitalismo, pessoas e natureza são instrumentos do capital e mais: dele dependem para sobreviver e, para isso, devem seguir suas leis. Mesmo os ricos, embora privilegiados no sistema, não podem abrir mão de seguir as leis do capital, como a da concorrência, por exemplo. Muito menos os trabalhadores e pequenos capitalistas, que necessitam vender mercadorias ou trabalho (também uma mercadoria) para se alimentar, morar, se locomover e ter alguma vida social. A outra escolha é a mendicância.

Em momentos de crise o Capital cobra seu preço

Em tempos de guerra ou de emergência sanitária, como agora, o capitalismo costuma entrar em colapso e as pessoas ficam sem trabalho e, consequentemente, sem meios para sobreviver. Em geral, o estado interfere na vida social, suspende momentaneamente as leis do mercado e passa a fornecer o básico para a sobrevivência.

É o que parece que vamos passar com a crise do coronavírus. A relutância de muitos governos, empresas e indivíduos em parar suas atividades não essenciais para a sobrevivência humana se deve à dependência das pessoas da troca para viverem. Parar de vender e comprar mercadorias ou trabalho (também uma mercadoria) significa, no capitalismo, não ter como sobreviver – comer, morar, vestir-se, tratar da saúde etc. O estado para de arrecadar e encontra dificuldades para sustentar os serviços públicos e as empresas entram no prejuízo, demitem e podem ir à falência, agravando ainda mais o desemprego e a arrecadação de tributos. Por outras palavras, o capital não pode parar de circular por conta da dinâmica da sociedade moderna, que se organiza como uma estrutura em cujo centro está o capital/dinheiro, do qual os humanos são dependentes para viver.

Se um extra-terrestre inteligente chegasse agora ao planeta Terra e testemunhasse o impasse entre manter a economia funcionando e tomar as medidas sanitárias necessárias para salvar milhões de vidas, ele certamente ficaria assombrado. Pois notaria que temos recursos técnicos e materiais para mantermos o isolamento necessário de toda a população global, com as condições básicas de sobrevivência e um atendimento médico adequado, até que se desenvolva de uma vacina eficaz.

Basta direcionarmos o nosso conhecimento e capacidade produtiva para a produção do que é essencial para a saúde, a alimentação, moradia, vestuário, transporte comunicação etc. É o mais racional a fazer, se não quisermos que milhões morram de uma doença em boa parte evitável. Mas o capital “não aceita” tal solução pois precisa se multiplicar e Ele (o Capital) está no centro da estrutura social, e não nós, humanos: daí sua força, grande o suficiente para nos coagir a não parar de trabalhar e negociar (relações sociais que o fazem multiplicar), mesmo pondo em risco nossas vidas.

As mensagens angustiadas do Capital em tempos de crise são a de que “a economia não pode parar”, “as mercadorias não podem parar de circular”, “o Capital deve se reproduzir a todo custo”, vocalizadas pelos economistas de mercado, chamados de ortodoxos ou neoliberais (ou sacerdotes do Deus-Capital), que não cansam de repeti-las, mesmo diante de uma tragédia sanitária iminente.

E, em grande medida, os neoliberais estão certos, pois se o capital cessa sua reprodução, a sobrevivência humana está mesmo ameaçada, porque ela depende da lógica mecadoria. É nessas horas trágicas que percebemos a centralidade do capital e nossa extrema dependência dele. A ciência, a tecnologia, o trabalho, as capacidades produtivas, enfim, todas as potências humanas que desenvolvemos durante o capitalismo e das quais precisamos para sobrevivermos só se movem em função da troca de mercadorias, do dinheiro, dos impostos, do trabalho assalariado, dependem do capital afinal.

Não temos mecanismos, por exemplo, de mobilizar nossa capacidade técnica para a produção e distribuição de equipamentos médicos e alimentos para entregá-los diretamente a quem precisa, de forma independente do mercado. Mesmo o estado funciona seguindo a lógica monetária, pois arrecada, gera dívidas e gasta. Não há como mobilizar o pessoal da saúde, da alimentação e do transporte, sejam públicos ou privados, para servir à sociedade sem pagar-lhes salários, pois todas as atividades humanas são trabalho/mercadoria.

O extra-terrestre talvez ficasse admirado com de nossa imensa capacidade técnica para conhecer os segredos dos micro-organismos e de suas consequências para a saúde, para fazermos previsões acerca da curva de contágio e sabermos como diminuí-la a tempo de desenvolvermos uma vacina eficaz. Mas ficaria horrorizado diante de nossa incapacidade social de realizar, na prática, toda esta potencialidade técnica. Tudo porque a ação sanitária correta faria a economia paralisar, jogando bilhões de pessoas na miséria que possivelmente mataria mais que a doença viral.

Ao erigirmos uma sociedade cuja síntese social é realizada pelo capital, para o qual pessoas e natureza são meros instrumentos de sua reprodução, ficamos dependentes da multiplicação do dinheiro, do lucro das empresas, do aumento do PIB e do crescimento do emprego e dos salários. Ou seja, só estamos relativamente bem enquanto o capital se multiplica e, mesmo assim, apenas se somos úteis à produção de valor (se servimos bem ao Deus), o que significa que 99% de nós devemos nos tornar máquinas de trabalhar e gerar lucro. E mais, o nosso bem estar é apenas um efeito secundário (que muitas vezes não ocorre) da soma das eficiências produtivas: de cada um de nós, da empresa em que trabalhamos e do país em que moramos. O objetivo principal é a produção, não de bens úteis, mas de lucro (capital).

O extra-terrestre, em desespero diante de nosso sofrimento, talvez quebrasse seus protocolos de não interferência em culturas primitivas, se dirigisse a nós e nos perguntasse: por que vocês não se libertam da lógica da mercadoria, matam e enterram esse seu Deus-Capital e passam a usar todas as suas potencialidades técnicas, científicas, artísticas e filosóficas para o bem de vocês mesmos?

Por que não fazemos isso?

Comentários

  1. Porque nos esquecemos de sonhar, capturados na rede da sobrevivência do dia a dia. Porque lideranças existentes nao sabem como pensar fora da caixa do Kapital. Porque estamos esperando a confluencia de todas crises ambiental, sanitaria, economica, existencial, para poder enxergar para alem do casulo apodrecido que nos envolve e nos tolhe. Gracias.

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    1. É, parece que esperamos cair no abismo para tentar sair. Não conseguimos imaginar outra vida que não seja sob o domínio do capital.

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  2. Oi Wilton, aqui é o Pedro Breier, você deixou um comentário no texto que publiquei ontem no Cafezinho. Achei sensacional esse texto seu, posso publicar lá no nosso blog? Abraço.

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    1. Sim pode publicar caro Pedro. Sugiro que publique esta versão do meu blog, que está revisada e mais bem acabada que a publicada no blog do Nassif.
      Abraço

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    2. Feito: https://www.ocafezinho.com/2020/03/25/a-vida-ou-o-capital/

      Abraço!

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  3. Respostas
    1. Plagiando Caetano Veloso, digo: " ... Alguma coisa está fora da ordem, Fora da nova ordem mundial ..." (Fora da Ordem - Caetano Veloso).

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    2. Sim, o capitalismo é uma fábrica permanente de turbulência e desajuste.
      Abraço

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