A utopia de uma sociedade classe média é uma ilusão

Tanto o ideário neoliberal quanto quanto o novo keynesianismo que está emergindo desta crise pandêmica e econômica têm um ideal de civilização, a ser atingido por meio de crescimento econômico e pela inclusão da maioria esmagadora da população no que chamamos de classe média.

Num aspecto, este ideal se tornou vitorioso: a estrutura psíquica das massas populacionais do planeta é de classe média ― ou tendem a se tornar. As pessoas, em geral, se vêem como capital individual auto-empreendedor, autônomas para atuar no mercado a ponto de não necessitarem de tutela ou proteção estatal nem de patrões que fiscalizem seu desempenho: são, em geral, patrões e empregadas de si-mesmas.

O ser humano atual, da pós-modernidade neoliberal é mentalmente um homem de classe média, o ápice evolutivo do homo economicus, cuja gérmen estrutural foi plantado na psique humana desde a aurora do capitalismo.

Se na prática muitos indivíduos não conseguem cumprir o imperativo moral de serem patrões e empregados de si mesmos, por não disporem da auto-disciplina necessária para se comportarem como empreendedores individuais, isto não significa que a disseminação da mentalidade “classe média” entre as massas tenha fracassado, mas sim que sua performance bem sucedida é muito difícil, como acontece com todas as exigências culturais excessivamente rígidas.

A consolidação da mentalidade meritocrática de classe média entre as massas, inclusive de pobres, se verifica na popularidade crescente da ideia de que os indivíduos vencedores ou perdedores (pobres) são responsáveis por seu sucesso ou fracasso socioeconômico. E, em geral, os perdedores aceitam esta auto-responsabilização, deixando de perceber as possíveis causas sociais de seu fracasso pessoal.

Como exemplo, a corrida das classes populares às igrejas neopentecostais no Brasil dos últimos 30 anos significa, entre outras coisas, o reconhecimento de si mesmo como responsável por sua própria pobreza e a disposição de reforçar ou reeducar espiritualmente sua estrutura psíquica de “classe média”. Mas também, e principalmente, a disposição prática de se comportar como indivíduo de classe média, dedicando-se ardorosamente não apenas às orações e ao ascetismo moral, mas também ao trabalho, à disciplina monetária e aos estudos.

Os rigores espirituais do renascimento evangélico para Cristo são também os do renascimento mental para o mercado capitalista, principalmente na obsessão maquinal pelos estudos e trabalho. A visão neopentecostal é a de que, no fim das contas, a alma disciplinada e sua família serão agraciadas com a prosperidade, concebida, ao mesmo tempo, como riqueza espiritual e monetária, como prêmio ao mérito concedido por Deus ainda em vida. (Tratei deste assunto em um outro ensaio).

Hoje em dia, o discurso das esquerdas, de culpar o sistema capitalista ou o neoliberalismo pelo fracasso pessoal costuma ter muito pouca penetração nas massas populares do mundo todo. No Brasil, mesmo entre os não evangélicos, a mentalidade meritocrática e individualista se impôs de forma esmagadora.

Como já afirmei no ensaio anterior a este, creio que essa vitória da psique meritocrática de classe média não se trata de ideologia das classes dominantes imposta aos trabalhadores, como supõe o marxismo tradicional, mas sim de um desenvolvimento estrutural da subjetividade capitalista, que se consolida na sua fase neoliberal (1980 até agora), mas cujo gérmen foi “plantado” na psique moderna ainda no início do capitalismo, a partir das revoluções Industrial e Francesa. Em todo caso, essa questão da mentalidade de classe média como um desenvolvimento lógico da estrutura subjetiva do homem moderno não é um assunto para este ensaio.

A utopia de uma sociedade de classe média e a realidade da favelização do mundo 

A questão que eu quero colocar neste momento é que a consolidação do homo economicus de classe média e sua meritocracia individualista vem acompanhada, no caso dos pobres, do desejo de ser tornar efetivamente (economicamente) um indivíduo de classe média.

A utopia neoliberal, mas também do novo progressismo keynesiano, é a de uma civilização de classe média, na qual há alguns ricos, uma maioria esmagadora de classe média e uma pequena minoria de pobres. Estes últimos seriam os fracassados que não desempenharam bem o seu papel de homo economicus, a serem tratados com um misto de piedade e desprezo, mas que, em nome da civilização, deveriam ser amparados por políticas sociais e pela caridade.

O problema é que a realização dessa utopia é um ilusão cada vez mais distante da realidade do capitalismo atual, cuja tendência é a de empobrecer as classes médias e transformar os pobres em pessoas supérfluas, inúteis para a reprodução do capital e, portanto, para a sociedade mercantil. O capitalismo atual produz cada vez mais exclusão social, na contramão do sonho meritocrático da inclusão pelo aumento massivo da renda e do poder de consumo da população.

Todos os dados estatísticos, produzidos pela própria ciência econômica dominante, indicam um aprofundamento, nos últimos 40 anos, das desigualdades socioeconômicas entre indivíduos, classes sociais e nações, além de registrarem uma colossal concentração de riqueza (capital) nas mãos de pouquíssimas pessoas e corporações. E não há, no horizonte, perspectivas de que isso irá se modificar. Muito pelo contrário, todos os sinais são de um crescimento ainda mais acelerado das desigualdades e da concentração de renda e riqueza a nível mundial.

A desigualdade, provocada pelo que Marx chama de concentração e centralização do capital, é uma tendência de longo prazo do capitalismo, que nenhuma intervenção política pode reverter, como já comentei em outro artigo a respeito do determinismo econômico que impera no capitalismo. No máximo esta tendência pode ser mitigada ou freada por um tempo, como na Europa e EUA do estado do bem estar social (1945-1975) ou no Brasil da era petista (2002-2016).

Isso porque o capitalismo, uma vez posto em movimento se torna um sistema autônomo e determinista, cujo fim último é a acumulação de capital e não o bem estar humano. E a concentração de renda e riqueza é um resultado lógico do desenvolvimento dos mercados, em que os capitais maiores tendem a absorver os menores e o trabalho tende a ser superexplorado, resultando na realidade atual da “flexibilização” que, na prática, significa mais tempo de trabalho, menos remuneração e menos direitos para a imensa maioria da população mundial, isso quando há trabalho.

Ou seja, o capitalismo é um sistema com lógica própria que se torna autônomo em relação às vontades e necessidades das pessoas e que, no fim das contas, ameaça a própria vida humana e a natureza ao instrumentalizá-las para acumulação do capital. E, a não ser provisoriamente e pontualmente, o desenvolvimento do capitalismo não pode ser humanizado ou controlado a partir de sua própria lógica (do lucro), como acreditam os keynesianos. A única possibilidade de frear seu processo destrutivo é a emancipação da sociedade mercantil, com a fundação de uma outra sociedade não capitalista, igualitária e ecológica.

A utopia de uma civilização humana majoritariamente de classe média se choca, portanto, com a lógica irreversível do sistema mercantil, cujo resultado é a barbárie de um mundo favelizado. Mundo que já se anuncia na atualidade, com a brutal concentração da riqueza nas mãos de uma reduzidíssima elite mundial, secundada por uma pequena (e numericamente decrescente) classe média, ambas envoltas por um mar de pobreza e miséria crescente. Além disso, os pobres tendem a se tornam cada vez mais supérfluos para o capital, não constituindo nem mesmo um exército industrial de reserva, ainda mais em tempos de automação massiva da produção de capital, com as máquinas substituindo o trabalho humano.

A realidade dos últimos 40 anos de neoliberalismo comprova o acerto da ideias de Marx, ao prever que a tendência de longo prazo do capitalismo é o aumento da desigualdade e da pobreza. Após o breve suspiro distributivista dos anos dourados europeu e norte-americano (1945-75), o capitalismo retornou a seu “fluxo normal” de aumento da pobreza em meio à abundância.

A frustração do desejo de ser classe média e a explosão do fascismo

Diante dessa realidade de aumento da pobreza, o sonho individual de subir na vida pelo aumento da renda e do poder de consumo e a utopia coletiva de uma sociedade massivamente de classe média serão inevitavelmente frustrados. Nem a direita neoliberal, nem a esquerda progressista podem realizar este desejo das massas de ascender ao “paraíso na terra” do homo economicus, de trabalho, renda, consumo e conforto abundantes para todos.

O resultado desse fracasso são os sentimentos de frustração e impotência, que acometem tanto os indivíduos quanto vários grupos sociais e que logo se transmutam em medo (de empobrecimento ou de se continuar eternamente pobre), revolta difusa, ódio, inveja e ressentimento. Estes afetos sombrios, por sua vez, são um solo fértil para o surgimento do fascismo, a pior praga que se desenvolve nas profundezas psíquicas e políticas capitalismo.

Nas terras fertilizadas pelo medo e o ódio, o fascismo floresce vigoroso, com seus líderes moralistas de “pulso firme”, seus delírios de grandeza e virilidade para compensar o sentimento de impotência (“Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”), seus bodes expiatórios a serem perseguidos e eliminados (judeus, negros, gays, comunistas, políticos corruptos, imigrantes etc) e seu desejo por morte e destruição sem fim.

A psique de classe média da massas, individualista, meritocrática e que age e se vê como capital humano auto-empreendedor é incapaz de perceber que seu fracasso econômico (efetivo ou iminente) como resultado da lógica fria, abstrata e impessoal do capitalismo. Isso porque sua visão visão de mundo é condicionada pela própria lógica do capital, sem que o sujeito saiba que seus princípios mais elementares, como a meritocracia individualista, a dignidade do trabalho, a competitividade e a racionalidade instrumental, são, na verdade, estruturas psíquicas inconscientes, desenvolvidas para atender as necessidades do capital (de mais lucro) e não as humanas.

Diante dessa impossibilidade de perceber o capitalismo como responsável pelo seu fracasso, os indivíduos (de classe média, mas também os pobres) oscilam entre culpar a si mesmo, como convém à consciência a-política neoliberal, ou culpar um grupo social responsável pela corrupção (moral, econômica, política) do mundo e que resultou no seu fracasso individual.

O fascismo emerge quando uma parte massiva dos indivíduos deixam de culpar a si-mesmos por seu fracasso em se tornar ou se manter na classe média e encontram um bode expiatório (um grupo social corrupto) para a crise capitalista que os empobrece ou os ameaça de caírem na pobreza.

O nascimento do fascismo, portanto, é um processo de repolitização e de retomada de uma visão coletiva do destino dos indivíduos e grupos sociais, que recusa a culpabilização de si pelo fracasso social. Trata-se, portanto, de uma revolta (revolucionária) contra a mentalidade despolitizada, individualista e meritocrática que estrutura o sujeito pós-moderno neoliberal, mas sem consciência disso, como já abordei com mais detalhes em outro artigo.

Por conta dessa inconsciência, a maior parte da mentalidade do homo economicus capitalista, assim como o desejo de se tornar (ou se manter na) classe média será mantida e até reforçada pelo fascismo. Assim, o fascismo aparenta ser, inclusive aos próprios fascistas, uma forma de capitalismo, pois valoriza e dignifica, não raro de forma fanática, as categorias capitalistas, como o trabalho, a competição, a mercadoria e o lucro.

Mas, no fundo, o homem fascista recém politizado instrumentaliza o homo economicus a-político, assim como o fascismo, ao se consolidar, instrumentaliza o capitalismo, cuja lógica da produção pela produção passa a servir ao ideal fascista de destruição pela destruição. A partir da consolidação do fascismo todas as potências técnicas e materiais do capitalismo, em vez de servir ao lucro (reprodução do capital), passam a servir, em última instância, à produção da morte, da guerra e da destruição ilimitadas, até culminar na autodestruição, destino suicidário de todos os fascismos.

A volta da politização e mobilização social do fascismo assume ares revolucionários e, de fato, ela provoca uma subversão na sociedade capitalista, ao subordinar sua lógica da mercadoria ao desejo de destruição pela destruição. A revolução fascista, portanto, não se dá em nome de uma nova racionalidade que substitua a razão instrumental do capital, mas em favor da irrupção da irracionalidade absoluta que deseja apenas o aniquilamento e o morticínio.

A nova política revolucionária da massa fascista passa a ser, então, a necropolítica da eliminação dos inimigos e dos fracos. Deixar os velhos e vulneráveis morrerem por covid é deixar a “natureza” selecionar os mais fortes e funcionais. Assim como a matança dos negros favelados, a criminalização e opressão dos progressistas e manifestantes antifascistas significam purificar o mundo dos criminosos e terroristas.

Que fazer?

A solução para o impasse do fascismo não passa, portanto, pela utopia inatingível de construção de uma sociedade de massas de classe média, seja pela via neoliberal ou progressista (keynesiana). Insistir nessa utopia de democratização da renda e do consumo significa arremessar o desejo (de ser classe média) contra o muro da realidade capitalista (de favelização do mundo) que frustra a realização desse desejo. Este “choque de realidade“ irá aumentar a frustração e o sentimento de impotência, tanto a nível individual quanto coletivo, desaguando fatalmente no fortalecimento do fascismo.

A solução para este impasse é a conscientização de que o capitalismo e sua lógica abstrata e impessoal são os verdadeiros responsáveis pelo fracasso coletivo da sociedade da mercadoria. Enquanto tal conscientização não ocorre, o homo economicus continuará a culpar o indivíduo pelo “seu fracasso pessoal”.

E nos momentos de agudização das crises capitalistas, como agora, quando o sofrimento psíquico e social se tornam insuportáveis, o homo economicus despolitizado se transmuta no sujeito paranoico do fascismo, repolitizado de forma delirante. Então, a culpa pelo fracasso pessoa deixará de ser individual e passará a ser atribuída a algum grupo social eleito como bode expiatório a ser odiado, reprimido e eliminado, alimentando a espiral fascista de ódio, medo e irracionalidade.

A conscientização de que o sistema capitalista e a lógica da mercadoria são os verdadeiros responsáveis pela exclusão social é um processo difícil. Como humanos, tendemos a personalizar os culpados. Mesmo as revoltas das esquerdas são ávidas por encontrar e culpar as elites responsáveis pelo sofrimento do povo, como o 1%, a banca neoliberal, os especuladores e CEOs que administram as grandes corporações etc. Esta culpabilização das elites corruptas  feita pelos pelos progressistas está há um passo das teorias conspiratórias dos donos do mundo, dos desejos de purificação moral e, finalmente, da emergência dos delírios fascistas de destruição e morte.

É mais fácil projetar o mal em indivíduos ou grupos sociais (sujeitos coletivos) do que admitir que o nosso problema é o capital, um “ser social”, inconsciente, amoral (nem bom nem mau) abstrato e puramente quantitativo, inventado por nós e que agora nos domina.

Mais difícil ainda reconhecer a “culpa” do capital porque este “ser” se encarnou em cada um de nós e estrutura nossa psique desde suas bases mais profundas. Pensamos, sentimos, vemos o mundo e a nós mesmo a partir da lógica da mercadoria. E principalmente agimos de acordo com esta lógica. Uma prova de nosso condicionamento pelo capital é considerarmos natural e digno o fato de trabalharmos e recebermos por nosso trabalho. Por outras palavras, naturalizamos e dignificamos o ato de nos vendermos no mercado como mercadoria.

Criticar o capital significa, portanto, questionar a nós mesmos, autocriticar nossa formação psíquica de base, sobre a qual nos constituímos como seres humanos. Significa questionar nossa identidade como sujeito moderno ou pós-moderno e abalar nossas verdades e convicções (éticas, científicas, políticas, pessoais) mais profundas, como, por exemplo, nossa fé democrática, nosso conceito de liberdade individual, os direitos civis, a dignidade do trabalho, a necessidade do dinheiro e do estado, a legitimidade da propriedade privada, a centralidade da economia, a neutralidade da técnica e da ciência etc.

O capital nos habita e nos estrutura como subjetividade. Portanto, são o capital, a sua lógica da mercadoria e o capitalismo (sistema abstrato e impessoal regido pelo capital) as causas principais de nosso fracasso como coletividade humana. Reconhecer essa isso significa perceber que nosso destino individual passa, antes, pela forma social que nos constitui e nos antecede como indivíduos. Significa tomar consciência que o destino de cada um de nós passa, antes, pelo destino coletivo de todos nós, de como nos organizamos (muitas vezes de forma inconsciente) como sociedade.

Significa, por outro lado, assumir que somos nós mesmos (pobres, de classe média ou ricos) os artífices e, portanto, os“culpados” por nosso próprio fracasso como sociedade. Mas não se trata de uma culpa individual ou decorrente do mau uso do livre arbítrio e de nossas capacidades racionais, como quer o cristianismo, o iluminismo ou o neoliberalismo.

Melhor que usar o termo culpa é falar sobre responsabilidade. Somos responsáveis, como coletividade e de forma inconsciente, por chegar a tal situação histórica de sermos instrumentalizados pelo capital que nós mesmos criamos. Este reconhecimento do capitalismo como nosso destino coletivo arquitetado de forma cega por nós mesmos e incrustado na psique individual de cada um de nós, constitui a necessária tomada de consciência que possibilitará a ação emancipatória.

Embora esse processo de conscientização seja difícil, ele é possível, principalmente em momentos de crise aguda capitalista, como agora, quando a o desenvolvimento da lógica da mercadoria explicita todas as suas contradições sistêmicas. É por essas brechas contraditórias que a rebelião fascista questiona o capital de forma inconsciente e irracional, instaurando sua revolução destrutiva e sua necropolítica.

E por essas mesmas brechas do capital é possível, e mais que isso, urgente e necessário, que as pessoas tomem consciência de que a causa real de seu “fracasso” e seu sofrimento não são grupos sociais específicos a serem odiados, mas sim a dominação abstrata do capital, que nos coage duplamente: a partir do fora social e suas regras de mercado; e a partir de nossa própria interioridade subjetiva constituída como homo economicus.

A conscientização é um processo doloroso, mas libertador, de perceber esta esta situação de dominação abstrata do capital. A partir daí teremos a possibilidade e, mais que isso, a responsabilidade de construir, de forma consciente, uma outra sociedade realmente solidária e comunitária, livre a da lógica expansiva e desumanizadora do capital. E livre, em consequência, dos perigos da rebelião irracional do fascismo.

Comentários

  1. Excelente artigo Wilton. O link sobre o processo de repolitização, "como já abordei com mais detalhes em outro artigo", não está funcionando. Abraço

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    1. Obrigado pela leitura atenta e pela dica do link. Já está corrigido. Abraço!

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