As ilusões keynesianas do pós-coronavírus

As mentes progressistas e humanistas acalentam a esperança de que a tragédia do coronavírus desperte um espírito solidário nas sociedades, que poderia humanizar o capitalismo com a reinvenção de uma social-democracia keynesiana. Esta esperança é uma ilusão. O capitalismo tardio não é humanizável nem reformável.

Os blogs progressistas são admiráveis, pois lutam heroicamente contra a selvageria neoliberal de nossas elites, vocalizadas pela grande mídia que promove o neoliberalismo como se fosse o suprassumo da civilização. Eles são a voz, minoritária, da solidariedade e da justiça social na pátria da desigualdade brutal.

E quase toda a blogosfera progressista é também keynesiana e sonha com o dia em que o país finalmente tomará o rumo do desenvolvimento que significa, basicamente, duas coisas: crescimento da riqueza com distribuição de renda.

Hoje, dois sentimentos atravessam a blogosfera progressista. Primeiro, o justificável medo de que a pandemia seja trágica para os brasileiros, em números de mortes mas também pelo empobrecimento da população causado pela depressão que virá. A equipe econômica atual é a pior possível para enfrentar o desafio: por sua incompetência e rigidez ideológica neoliberal.

O segundo sentimento é a esperança de que a tragédia do coronavírus finalmente faça o país e o mundo acordarem para a necessidade da retomada de um estado democrático forte, que regule e dê direção aos mercados. É a esperança da volta da social-democracia na política e do keynesianismo na economia.

O co-determinismo e a esperança social-democrata e keynesiana

Num ótimo artigo recém publicado, o economista Fernando Nogueira da Costa expõe claramente os princípios da social-democracia keynesiana, contrária ao determinismo econômico apregoado tanto pelos (neo)liberais quanto pelos marxistas ortodoxos.

O determinismo econômico diz que a economia determina os desenvolvimentos e resultados da política e até das outras esferas da vida, desde a intimidade até a ciência e o direito.

Fernando Nogueira diz que o mundo é muito mais complexo e imprevisível e que o modelo mais adequado para abordar suas incertezas é o co-determinismo. Há causalidades e determinismos no mundo, mas eles são múltiplos e imprevisíveis. Há efeitos/resultados aos quais não se pode atribuir causas precisas, como há causas que não desaguam em resultados previstos.

Por isso, é absurdo o pensamento liberal achar que basta deixar a economia fluir que tudo o mais vai se ajeitar, como se ela fosse a causa primeira e infalível do movimento do mundo. Pensar assim é sacralizar a “mão invisível” do mercado como se fosse a “mão de Deus”. As sucessivas crises capitalistas mostram que a economia está longe de ser perfeita e autorregulável.

Também é absurdo o determinismo teleológico do marxismo tradicional, que acredita que o capitalismo, embora injusto e imperfeito, é um passo necessário para superarmos a barbárie das tribos e impérios, rumo ao paraíso socialista. Além do ranço cristão de imaginar um paraíso ao fim da história, este pensamento mal disfarça o etnocentrismo de uma suposta superioridade do brancos europeu, criador do capitalismo, sobre os outros povos da Terra.

Diante do fracasso do determinismo econômico, em suas versões (neo)liberal e marxista, Fernando Nogueira proclama a necessidade de assumirmos o co-determinismo como teoria do mundo e o pragmatismo não ideológico como forma de agir nele. E se o receituário keynesiano e social-democrata é pragmático, sejamos keynesianos e sociais-democratas, então, agindo de acordo com a situação e em busca de resultados.

E se a política não é determinada pela economia, mas elas se co-determinam, podemos formar um consenso político em favor do melhor dos mundos: crescimento da riqueza e sua justa distribuição. A tragédia do coronavírus poderia ser o detonador desse consenso mundial, como a Segunda Guerra o foi para o keynesianismo social-democrata dos 30 anos dourados do capitalismo (1945-75).

O co-determinismo não diz que a política determina a economia, pois isto seria um determinismo com sinal trocado. Mas o co-determinismo, embora admita a imprevisibilidade, não nega o poder da ação humana e pressupõe que há previsibilidades parciais.

Portanto, se a maioria da sociedade se convencer da necessidade do keynesianismo e de um estado democrático promotor do bem estar social e indutor do desenvolvimento, as possibilidades de sucesso seriam muito maiores. Seriam quase certas, pois o atual conhecimento econômico aliado à vontade política da maioria jogaria todo o peso dos estados e instituições multilaterais em favor da regulação e correção da economia.

O determinismo econômico como realidade do capitalismo

A visão determinista que marxismo tem da história é, de fato um erro, pois o capitalismo não é uma sociedade superior às anteriores, nem é um passo necessário ao socialismo. Da mesma forma, o determinismo liberal que pressupõe a perfeição dos mercados foi amplamente contrariado pelos fatos.

Mas há uma parte do pensamento marxista, recuperado e depurado por Moishe Postone e pela Crítica do Valor, que reconhece vigorar no capitalismo o determinismo econômico, confrontando a ideia keynesiana e social-democrata de que o sistema é, em princípio, co-determinista. E contestando, em consequência, que a ação política tem alguma chance de alterar os rumos do sistema.

A princípio, Postone e a Crítica do Valor concordam com Fernando Nogueira (e os keynesianos, portanto) ao apontar os equívocos do marxismo ortodoxo: a história humana não é uma evolução rumo à perfeição socialista, na qual o capitalismo seria um passo necessário. Pensam, portanto, que se há alguma “regra geral” do mundo, esta é a da co-determinação, da incerteza fenomenológica e da complexidade causal.

Mas afirmam que o capitalismo, ao se consolidar com a Revolução Industrial, acabou por criar uma sociedade determinista em meio ao real co-determinista. Afirmam ainda que se trata de um fato único na história humana, pois nenhuma outra cultura tomou tal rumo.

Postone fala que o capitalismo é uma totalidade direcional: um todo que tem rumo prévio, ou melhor, leis objetivas. E que Marx descobriu a causa (inicial e final) de seus movimentos, ou melhor o ser que determina essa totalidade. Este ser inconsciente e abstrato, que é uma forma social e também a riqueza do sistema é o capital, objeto principal do pensamento de Marx, juntamente com suas categorias básicas, que só existem no capitalismo: valor, trabalho, mercadoria, dinheiro.

O capitalismo, por esta interpretação que Postone e a Crítica do Valor fazem de Marx, é uma totalidade regida por um ser, o capital, causa inicial e final de todos os movimentos do sistema. Trata-se, portanto, de uma metafísica terrena, de uma segunda natureza de cujas leis (determinações) as pessoas não podem escapar.

Ora, se há leis objetivas, é possível fazer previsões de evolução da totalidade (de suas direções). Foi exatamente isso que Marx fez, quando afirmou que o capitalismo:

1. Se constitui por contradições internas que inevitavelmente leva a crises cíclicas, cada vez mais graves;

2. Evolui de forma a substituir trabalho humano por máquinas;

3. Que esta substituição tem como consequência a queda tendencial da taxa de lucros a nível global;

4. Para compensar a queda do lucro global, precisa aumentar indefinidamente a produção de mercadorias, tornando-se um regime de produção pela produção (que hoje ameaça o equilíbrio natural do planeta);

5. Tende a se expandir e penetrar em todas as esferas da vida (política, direito, intimidade, cotidiano, arte, religião, ciência…), que passam a ser regidas pela lógica da mercadoria;

6. Leva à globalização da economia, formando um grande mercado mundial regido pela lógica da mercadoria e pela concorrência universal;

7. Captura em sua lógica os estados e instituições públicas, que passam a funcionar primariamente para a reprodução do capital (e apenas secundariamente, portanto, para o bem estar das pessoas);

8. Tende à concentração de riqueza, gerando uma imensa pobreza relativa (perdedores) e uns poucos ricos (ganhadores).

Marx acertou em todas estas previsões: a empiria está com ele, portanto. Até previu que as leis do capital podem sofrer resistências contra-tendenciais, derivadas de decisões políticas deliberadas, mas que as coerções do capital acabariam por se impor ao sistema.

Ou seja, Marx reconhece que circunstancialmente o capitalismo pode funcionar de forma co-determinista e a ação política se torna eficaz por algum tempo e em algumas regiões do sistema. Mas estruturalmente e a longo prazo as leis do capital (o determinismo econômico) se impõem de forma incontornável, submetendo pessoas, instituições e natureza aos imperativos da lucratividade (reprodução do capital).

Assim, os 30 anos dourados da social-democracia keynesiana, saudados e desejados pelos novos keynesianos da atualidade, como Fernando Nogueira e os blogueiros progressistas, foram, na visão marxista, apenas um período contra-tendencial relativamente longo, um represamento do “curso normal” de algumas leis capitalistas (como a do aumento da pobreza relativa). Com o advento do neoliberalismo dos anos 80, o sistema retoma este “curso normal”.

Em muitos aspectos, porém, o keynesianismo aperfeiçoou e aprofundou as tendências “naturais” do capitalismo, como a expansão e consolidação do mercado global e a entrada do estado nacional como participante ativo na concorrência mundial, apoiando a expansão dos capitais nacionais, incentivando os capitais internacionais a se instalarem no país ou mesmo participando diretamente da economia em setores estratégicos.

Outra contribuição do keynesianismo para a consolidação do capitalismo foi a expansão da lógica do capital a todas as esferas da vida, com a criação de uma enorme classe média, cuja vida é inteiramente regida pela lógica do capital, da educação das crianças para o mercado, passando pelo mundo do trabalho que dá sentido à vida adulta, até a aposentadoria consumidora.

O neoliberalismo não foi um corte tão radical assim na lógica keynesiana, mas apenas interrompeu a contra-tendência distributiva (humanitária) do keynesianismo social-democrata. E foi obrigado a substituir o capital produtivo, que não gerava mais lucro suficiente, pelo capital fictício como motor do sistema.

Mas o neoliberalismo manteve os outros aspectos keynesianos que afirmam as leis do capital, como a expansão da lógica da mercadoria para todas as esferas da vida (inclusive a vida dos pobres, cujo modelo é a classe média trabalhadora-consumista) e a forte participação do estado como indutor da economia ― pelo menos nos países industriais vencedores da concorrência mundial, como EUA, Alemanha, Japão, Coreia do Sul e China.

O retorno à social-democracia keynesiana é uma ilusão

O neoliberalismo interrompeu a distribuição de renda keynesiana porque ela se tornou disfuncional para a acumulação do capital, em função da 3a revolução industrial da década de 1970, que introduziu a microeletrônica no chão da fábrica, substituindo o trabalho humano por máquinas inteligentes, processo que se aprofunda, desde então.

Em consequência, o trabalho é cada vez mais secundário na produção real de valor. Mas o valor é, de acordo com Marx, tempo de trabalho humano. Com a diminuição do trabalho na produção, o que ocorre, então, é uma desvalorização do valor a nível global.

O resultado observável desta desvalorização é que cada vez mais pessoas se tornam supérfluas para o capital (desemprego estrutural), o lucro global das empresas produtoras de mercadorias tende a cair (queda da taxa de lucro) e os estados arrecadam cada vez menos tributos para manter os gastos sociais (desmonte do estado do bem estar).

O advento atual da indústria 4.0 aprofunda a automação industrial e a estende, numa escala sem precedentes, para a distribuição e venda de bens e serviços, aprofundando a crise do valor e, consequentemente, a diminuição do emprego regular, do lucro produtivo, da arrecadação estatal e dos gastos sociais.

A alternativa keynesiana é a expansão de dívidas em tempos de crise, para sua diminuição posterior em tempos de bonança. Mas esta tem sido a receita neoliberal desde a década de 1980 e as dívidas não param de crescer, tornando o sistema capitalista ainda mais turbulento, ao assentá-lo em imensas bolhas de capitais fictícios que sempre estouram.

Mas desta vez, dizem os novos keynesianos, como Fernando Nogueira e os recém convertidos Monica de Bolle e André Lara Rezende, a expansão da dívida seria destinada principalmente ao socorro da economia real e dos pequenos empresários, aos gastos sociais do estado e à renda básica universal, beneficiando diretamente os mais vulneráveis.

A questão é que, por conta da tendência inevitável de crescimento do desemprego estrutural, os vulneráveis (improdutivos para o capital) também tendem a crescer numericamente, numa conta que não fecha: para sustentá-los a dívida pública teria que crescer indefinidamente, sem perspectiva de tempos de bonança em que ela diminuiria.

Ora, isto é o que já acontece na fase neoliberal. A nova receita keynesiana, portanto, é apenas um acréscimo humanitário (dar dinheiro aos pobres e não só ao grande capital) na fracassada solução neoliberal, assentada no crescimento das bolhas de capital fictício para manter a economia girando. Não vai funcionar.

Todo esse raciocínio é, de fato, muito determinista e baseado nas leis “quase naturais” do capital, descobertas por Marx e enfatizadas por Moishe Postone e pela Crítica do Valor. Mas é assim que as coisas são na realidade do capitalismo e, por essas leis, não há a possibilidade lógica de haver, no pós-coronavírus, uma social-democracia keynesiana de alcance global, distributivista e solidária, mesmo que haja uma grande vontade política de toda a população mundial, incluindo ralé e elites.

No capitalismo, a política quase nada pode fazer contra as leis (determinações) da economia. No máximo pode mitigar a miséria com programas sociais distributivos ou utilizar o Estado para fortalecer um país na guerra capitalista mundial (como fazem Alemanha, EUA e China), em detrimento dos países perdedores. Estes herdam o pior dos mundos, pois além de terem um percentual maior de pobres em sua população, terão menos recursos para ajudá-los, como é o caso dos países africanos e latino-americanos.

As esperanças do ressurgimento de um novo keynesianismo social-democrata são ilusões típicas de tempos de crise, quando a boa vontade de muitos emerge. Mas a boa vontade política é inútil no capitalismo, em que só a busca de lucro (mais capital) importa, e a vida das pessoas e a natureza se subordinam às coerções (determinações) da economia.

A não ser como adaptação dos países vencedores às leis do mercado mundial, o keynesianismo não tem nada de pragmático. Ao acreditar que o capitalismo atual é um sistema co-determinista, o keynesianismo faz uma leitura equivocada de sua realidade sistêmica e suas leis quase objetivas. Sua postura, teórica e prática, se revela tão ideológica (baseada na fé de um co-determinismo que não há) quanto a dos liberais e marxistas ortodoxos.

Os novos keynesianos acreditam que as ideias e receitas de Keynes, por ter funcionado parcialmente no pós-guerra, podem ser adaptadas e aplicadas à crise atual do capitalismo, inteiramente diferente daquela situação.

O que ocorre, hoje, é um colapso estrutural do capitalismo, cujas crises financeira de 2008 e sanitária de agora são apenas os gatilhos, que disparam e aceleram a descida ao abismo. A solução pragmática não é a keynesiana, de reforma do sistema, de resto irrecuperável. Esta é uma solução de fé, tão ilusória quanto a austeridade neoliberal e a revolução proletária do marxismo ortodoxo.

A solução verdadeiramente pragmática (realista) é a que quase todos consideram ilusória: a abolição do capital e a emancipação do capitalismo e sua lógica impessoal de valorização do valor. E o capitalismo permite tal solução, pois embora seja um sistema total, cuja lógica impessoal é quase tão objetiva quanto as leis da natureza, seu desenvolvimento é contraditório. E em suas contradições imanentes ele possibilita que vejamos suas falhas e possibilidades de superação.

Só a abolição do capital e suas categorias (trabalho, valor, dinheiro) pode restaurar, pragmaticamente, a realidade co-determinista do mundo, resgatando o poder de ação das pessoas sobre a realidade social e interrompendo o determinismo econômico do sistema capitalista, que nos arrasta inevitavelmente ao duplo precipício de uma crise ecológica e social sem precedentes e, talvez, sem retorno.

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