30 junho, 2020

O fascismo e a politização paranoica das massas

O que o senso comum costuma entender por politização de um grupo social ou de uma nação é a capacidade dos indivíduos perceberem o seu destino como coletivo e, a partir daí, agir politicamente de forma associada, seja integrando ativamente algum tipo de associação formal ou informal, se manifestando em espaços públicos e participando ativamente dos pleitos eleitorais, não em interesse próprio ou de terceiros, mas no da coletividade.

Assim entendida, a politização costuma predominar nas esquerdas, sejam elas revolucionárias, reformistas ou anti-imperialistas (nacionalistas). Os indivíduos com tendências  liberais (incluindo aí os neoliberais) e conservadoras são despolitizados, ou melhor, se contentam com as regras do jogo da política nacional, seja ela uma democracia representativa ou um regime autoritário que mantenha a ordem da nação e que eles apoiam ou aceitam. No mais, tratam de cuidar de suas vidas individuais e familiares dentro das regras capitalistas e, no caso dos conservadores, seguindo ou aparentando seguir a moral e os bons costumes.

Além de perceber seu destino como coletivo, outro aspecto do indivíduo ou grupo social politizado é seu caráter utópico, seu desejo de modificar a sociedade de forma benéfica para todos ou, pelo menos, para grupos sociais específicos: nação, pobres, negros, mulheres etc.

Portanto, de acordo com a opinião corrente (doxa), a politização se sustenta em dois pilares: a importância dada à mobilização coletiva, que se sobrepõe ou se equilibra com o mérito pessoal; e a vontade utópica de promover a mudança social, que não raro se efetiva como prática.

O sujeito despolitizado, ao contrário, percebe o empenho e o mérito pessoal como mais importantes do que a mobilização social e aceita ou defende a ordem estabelecida do capitalismo liberal como justa e ideal para que os indivíduos se desenvolvam. Se fazem críticas de ordem política ou econômica, estas costumam ser pontuais e se referem menos à mudança sistêmica do que ao aperfeiçoamento da política. E quase sempre na direção de deixar os indivíduos e empresas agirem em busca de seu sucesso pessoal.

Os chamados despolitizados são os que aderem à política liberal e seu individualismo fragmentário sem maiores questionamentos. São, na verdade, politizados, mas no grau zero da política própria do capitalismo. Esse grau zero são as bases políticas dadas pelo liberalismo e supõe a prevalência do livre mercado, das liberdades individuais e, se possível, a democracia formal e o estado de direito.

O neoliberalismo, que se tornou o destino político e econômico do capitalismo ocidental, a partir da década de 1980, promoveu e disseminou globalmente esse grau zero da política, cujo indivíduo modelar é o homem de classe média, racional, trabalhador e competitivo, de mentalidade individualista e meritocrática - o despolitizado por excelência.

Este homem pós-moderno se vê como capital individual auto-empreendedor (mesmo se for funcionário) e todas as suas ações são no sentido de multiplicação do capital próprio: o crescimento pessoal se confunde com a acumulação particular de capital, na forma de posses, renda e/ou capital cultural, para usar o termo que Jessé Souza tomou da sociologia de Pierre Bourdieu.

Inclusive o indivíduo pobre das classes populares tende a se estruturar mentalmente como homem de classe média, desejando e lutando para atingir tal patamar social, o que é impossível na quadra atual do capitalismo, cuja tendência incontornável é o aumento da pobreza e a diminuição numérica das classes médias, como já tratei em outro artigo.

O desencanto inevitável com as promessas da política liberal

O liberalismo individualista é a política de base do capitalismo. Mesmo os progressistas e conservadores, que divergem dos liberais, o fazem sem contestar seus fundamentos políticos e econômicos, que são as bases éticas e funcionais do capitalismo: estado nacional, direito, lucro, propriedade privada, competição, racionalidade instrumental, trabalho remunerado etc.

Quero enfatizar dois aspectos problemáticos do liberalismo e sua política de grau zero, vista pelas esquerdas como despolitizadora dos indivíduos. O primeiro, já referido acima, é que ela tende a estruturar os indivíduos como capitais individuais auto-empreendedores com a promessa de que o empenho individual (nos estudos, no trabalho, na formação contínua) vão levar o indivíduo e sua família a uma vida confortável. E que isso pode acontecer de forma massiva, pois supõe que todos os que se dedicarem como indivíduos empreendedores, terão uma vida confortável.

A realidade, como se sabe, é bem outra e no capitalismo atual não há lugar para uma maioria numérica de classe média em países em desenvolvimento e mesmo nos ricos países centrais a pobreza relativa aumenta a olhos vistos, sem que nada se possa fazer a respeito.

Então, as pessoas começam a perceber, corretamente, que todo o aparato político de cunho liberal, como eleições, estado de direito, instituições como estado, partidos, três poderes, mídia etc, tudo isso não é feito para o bem estar das pessoas em geral, beneficiando apenas uma pequena elite: os 10% de classe média alta e os 1% ricos. (Na verdade o capitalismo não é dominado por essas elites, mas sua lógica concentradora leva irremediavelmente à concentração de renda, riqueza e poder não mãos de uns poucos: por isso, é mais correto falar em “elite privilegiada” do que “elite dominante”).

É aí que entra o segundo aspecto problemático do liberalismo: ele não oferece alternativas à sua política de grau zero, individualista e voltada para os interesses do capital. No máximo, as pessoas podem formar sindicatos e associações para vocalizar suas reivindicações ou para a ação coletiva. Mas nada disso promove, no capitalismo atual, melhorias de vida significativas em termos econômicos para as pessoas, conseguindo, quando muito, mitigar os problemas sociais decorrentes da desigualdade crescente.

Como afirmava Margaret Thatcher, “o que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias”. E, em relação a isso e aos demais princípios liberais que nos governa, ela arrematava que “There Is No Alternative” (em português, 'Não há alternativa'). Podemos reprovar o cinismo e a desumanidade de Thatcher, mas ela está rigorosamente correta do ponto de vista da lógica liberal, que é também a capitalista e que, cedo ou tarde, acaba se impondo a tudo e a todos enquanto o sistema mercantil perdurar.

A socialização abstrata do capitalismo e a repolitização da sociedade

Mas o fato é que a condição humana é coletiva desde sempre e mesmo o capitalismo se organiza numa dimensão social (a sociedade que Thatcher rejeitava), na forma de mercado e capital. Só que essa ordem social é abstrata e alienada das vontades das pessoas, que se tornam coisas mercadológicas, ao negociarem seu trabalho ou seus bens no mercado.

A socialização capitalista existe num grau até maior que nas outras sociedades (a prova disso é que só sobrevivemos com os bens produzidos por terceiros), mas ela aparta os indivíduos concretos como produtores particulares e isolados na economia, e como sujeitos abstratos do direito na esfera política e civil. Concretamente, as pessoas encontram-se de fato isoladas umas das outras, com exceção do círculo íntimo de familiares e amigos.

Tal situação representa um perigo quando as pessoas caem na miséria e não encontram ninguém a quem recorrer, mas também representou avanços, como Marx demonstrou, ao libertar as massas da dominação direta que havia entre nobre e servo, senhor e escravo ou coronel e agregados.

Em todo caso,  as pessoas sentem um terrível mal estar no capitalismo por conta do bloqueio que este promove na socialização direta entre os indivíduos e na visão de um destino coletivo para o povo ou a comunidade. No grau zero da política liberal, é a própria noção de comunidade concreta que se esgarça, restando, como afirmava Thatcher, apenas os indivíduos e suas famílias.

Esse mal estar vem à tona em momentos de crise, quando as contradições do capitalismo se explicitam e o grau zero da política mostra que as instituições liberais servem antes para preservar o capital e seus privilegiados (elites) e não para amparar a vida das pessoas concretas.

É aí que as críticas difusas sobre as instituições liberais começam a emergir de forma irresistível e poderosa, como, por exemplo, a opinião geral sobre o Poder Legislativo ser, na verdade, um balcão de negócios escusos que se passa por representante do povo. Ou sobre o Judiciário ser uma casta de funcionários muito bem pagos que não estão ali para aplicar as leis e fazer justiça, mas para beneficiar poderosos desonestos com bons advogados.

Então, a legitimação do estado de direito e as instituições que o promovem, que sempre foi problemática entre o povo, começa a se desmoronar. No lugar desse vazio político do liberalismo, de seu individualismo e seu grau zero da política, começa a se gestar outra vez as tendências espontâneas da condição humana de ressocialização e estabelecimento de um destino coletivo (uma comunidade) que abarque os indivíduos.

Ocorre, então o fenômeno da repolitização dos grupos sociais e seus indivíduos, que pode tomar vários rumos e significados. O mais conhecido é a repolitização de feição progressista que, quando radicalizada, pode tomar rumos revolucionários. Ela levou à social-democracia do Pós-Guerra e aos socialismos realmente existentes do Leste Europeu, URSS, China e Cuba.

Mas há também a repolitização conservadora ou reacionária, como a do Irã, que resultou na teocracia dos Aiatolás. E o Golpe de 1964 no Brasil (e no resto da América Latina) não deixa de ser consequência de uma certa repolitização reacionária de parcela da sociedade, que vence, pela força, as tendências progressistas que apoiavam Jango.

Mas ambas as repolitizações (progressistas e reacionárias) costumam ser fenômenos passageiros e não causam abalos nos princípios liberais de base, exceto no caso das revoluções socialistas. Mesmo a ruptura iraniana com o imperialismo norte-americano preservou os mercados, tanto internamente quanto a inserção do Irã no capitalismo global.

E tão logo a repolitização provoca a mudança social desejada (que, como vimos não é estrutural em relação ao capital), ela restabelece novamente a despolitização dos grupos sociais, integrando-os na nova ordem social e restituindo, de acordo com o contexto, o grau zero da política que possibilita a reprodução do capital.

A repolitização fascista

Além das repolitizações de feição progressista e reacionária, há outra, muito mais perigosa, inclusive para o próprio capitalismo, a fascista. Ela se assenta em percepções críticas difusas e, em geral, corretas sobre o sistema democrático, os políticos e suas instituições, ao notar que a política em geral, seja ela de caráter liberal ou progressista, é intrinsecamente corrupta e feita para beneficiar os poderosos.

Há então, por parte dos fascistas, uma revolta generalizada contra a política. Por isso, eles são qualificados como “negadores da política”, “analfabetos políticos” ou “pessoas despolitizadas”.

A verdade, porém, é que os fascistas são bastantes politizados, se entendermos este termos de acordo com a opinião corrente (doxa), pois dão importância à mobilização coletiva, que se sobrepõe ou se equilibra com o mérito pessoal, e possuem uma vontade utópica de promover a mudança social.

Destino coletivo e mudança social voltam à ordem do dia com as massas fascistas, inclusive com o ativismo de um pequeno contingente dessas massas, extremamente engajado, barulhento e muitas vezes violento. A despolitização neoliberal é confrontada, agora, com uma nova politização das massas, não mais progressista e nem mesmo reacionária, mas paranoica.

Politização paranoica porque a utopia fascista é, de todas, a mais inatingível e delirante de todas: manter o sociedade capitalista e extirpar a corrupção no plano econômico, político e principalmente moral, pois, no fim das contas, a causa da corrupção é moral, uma questão de pureza que, não raro, se reveste de purificação racial ou religiosa.

Paranoica também porque a purgação da corrupção para o fascista só pode se dar pela punição e destruição e nunca encontra um fim, nunca é suficiente e sempre deve continuar, cada vez mais radical e violenta, até que renasça um homem e uma maioria adâmica, harmoniosa e livre das impurezas do homem liberal ou progressista/comunista.

Paranoica, ainda, porque ao eleger determinadas práticas e grupos sociais como corruptos, a massa fascista fecha os olhos para as piores barbaridades e atos claramente corruptos de seus próprios líderes e membros mais ativos: torturas, assassinatos, injustiças, roubos, mentiras etc. Exemplo claro disso é a cegueira dos bolsonaristas (hoje, um terço da população) em relação ao claro envolvimento de Bolsonaro com as milícias cariocas.

A luta contra a corrupção é apenas um engodo que os fascistas utilizam para encobrir, principalmente para si mesmos, sua real “utopia”, que é a destruição pela destruição. É por isso que a corrupção e sua purgação nunca terminam, pois a destruição não pode parar até que tudo seja ruína. E é por isso que fecham os olhos para sua própria corrupção: não é apenas por hipocrisia, mas porque o seu real objetivo, que eles mesmo não têm consciência, nunca foi acabar com a corrupção, mas com o mundo a sua volta. A Lava Jato é o exemplo mais claro desse desejo de destruição, neste caso do país e suas empresas mais modernas, sob o disfarce (na verdade o autoengano) de combate à corrupção.

A politização fascista, portanto, resgata para as massas o sentimento do destino coletivo do povo e a vontade de mudança. O problema é de conteúdo desse destino, que não se assenta em nenhuma espécie de racionalidade, nem mesmo regressiva. Não se trata de fundar uma nova coletividade baseada em valores arcaicos ou modernos, na fé, na arte ou na ciência, nem de propor uma nova forma de exercício de poder (nova política) para as próximas gerações. O destino do povo é resgatado como purgação coletiva cujo objetivo final é a destruição do inimigo e, por fim, a autodestruição coletiva.

O fascismo surge em sociedades fracassadas, cujos problemas provocados pelo desenvolvimento do capitalismo são projetados num outro, o inimigo que seria responsável pelo fracasso social (judeus, negros, ativistas, progressistas/comunistas, nordestinos, políticos etc). No fim das contas, o ódio do fascista é contra si mesmo, contra sua derrota na sociedade ultra-competitiva do capitalismo global.

O fascista sente uma enorme vergonha e raiva de si (o famoso espírito vira-latas) e no final do processo de purgação moral, quando os inimigos mais imediatos são derrotados, seu ódio acaba por se voltar inconscientemente contra si mesmo, na forma de auto-sabotagem. É quando a Alemanha abre duas frentes de guerra contra potências muito maiores que ela (URSS e EUA).

É quando, na atual conjuntura brasileira, os lavajateiros destroem a engenharia, petroquímica e a indústria naval nacional em parceria com o Departamento de Justiça dos EUA e o Governo Bolsonaro lambe as botas norte-americanas sem pedir nada em troca e não faz absolutamente nada para combater a pandemia do coronavírus, na frente sanitária ou econômica. O fascismo brasileiro é um duplo combate ao progressismo moderado do PT, taxado de comunista, e ao próprio país enquanto comunidade nacional, provocando a autodestruição de sua economia e de seu povo.

Os fascistas não são despolitizados, Ao contrário, a (re)politização fascista é efetiva e avassaladora. Ela entorpece e excita as massas que se veem como coletividade atuante e anseiam raivosamente a mudança. Seu delírio, no entanto, às guia para a destruição do outro e de si mesmo. Sua politização se manifesta pelo ódio e pela irracionalidade absoluta que solapa, inclusive, a racionalidade instrumental do capitalismo.

E quando o fascismo avança ele se torna um poder político revolucionário capaz de submeter inclusive o todo poderoso capital, que deixa de funcionar para o lucro e passa a servir ao desejo irracional de destruição pela destruição. É quando os liberais e conservadores aceitam, como diria Churchill, fazer alianças até com o diabo (progressistas e comunistas) para combater o fascismo. Parece que ainda não chegamos a este ponto no país.

21 junho, 2020

Singularidade

eu queria muito um poema-luz
leite explodindo sol
pela boca uma língua-céu
sorvendo o raiar do dia

a vida    infinita    manhã

o canto no entanto entorna
e entorta a boca em abismos

entranhas mudas     obscuras

estradas de nenhum lugar
a lugar algum me despencam
viagens despedaçadas

palavras-brumas do destino
me cuspindo a vazios e muros

é a voz que me abisma os caminhos
ou são os absintos
abissais que me habitam
precipitando sonoros voos

cegos no vácuo submerso?

a vida-verbo em mergulho
quase não se respira

meus versos têm um ritmo
de cavalgar os precipícios
só destoando consigo rimar

só    eu mudo    consigo cantar


15 junho, 2020

Vera Cruz


ilha minúscula de conforto

envolta
num mar de favelas

erguida
sobre corpos de índios
mulheres e negros

coberta
pela névoa eterna
de lágrimas das almas
dos desamparados

regida
pelo senhorio
das casas grandes
caiadas de sangue e fundadas
nos ossos da miséria

vaga alma

eu me divido em muitos

para a tristeza me errar

quando ela chega na alma

já estou em outro olhar


invento mundos e fados

para os meus estilhaços

e voo ao ritmo do acaso

à velocidade da luz


sou feito de mil metades

sala infinita de espelhos

labirinto de vontades

por onde a tristeza vaga 


vaga perdida na alma




10 junho, 2020

O repórter urubu



Fareja, ávido, o cheiro da morte.
Baixa sobre o corpo do morto
e faz a sensacional
necrofesta da TV local
ou em rede nacional.

Enquanto devora o morto
e chama os comerciais
derrama lágrimas de jacaré
sobre um fundo brega-musical...
Tão sentimental!

O repórter e sua luta heroica
pela liberdade sagrada da imprensa
de expor sem pudor
o espetáculo da violência,
a morte explícita,
o desespero e a dor
(para a satisfação sádica
do telespectador e o gozo
monetário da audiência).

O repórter urubu
acusa os parentes do morto (ao vivo)
de censurar o trabalho da imprensa:
"qualquer reação pode render BO,
processos, tribunais..."
Nas entrelinhas: engula
seu desespero e sua dor
e não enfrente o poder
da mídia e da grana.

O repórter se esbalda
nas necrofestas do asfalto:
bebe sangue, come corpos
e caga ouro.

O repórter urubu
é o verdadeiro alquimista
do século XXI.


04 junho, 2020

A utopia de uma sociedade classe média é uma ilusão

Tanto o ideário neoliberal quanto quanto o novo keynesianismo que está emergindo desta crise pandêmica e econômica têm um ideal de civilização, a ser atingido por meio de crescimento econômico e pela inclusão da maioria esmagadora da população no que chamamos de classe média.

Num aspecto, este ideal se tornou vitorioso: a estrutura psíquica das massas populacionais do planeta é de classe média ― ou tendem a se tornar. As pessoas, em geral, se vêem como capital individual auto-empreendedor, autônomas para atuar no mercado a ponto de não necessitarem de tutela ou proteção estatal nem de patrões que fiscalizem seu desempenho: são, em geral, patrões e empregadas de si-mesmas.

O ser humano atual, da pós-modernidade neoliberal é mentalmente um homem de classe média, o ápice evolutivo do homo economicus, cuja gérmen estrutural foi plantado na psique humana desde a aurora do capitalismo.

Se na prática muitos indivíduos não conseguem cumprir o imperativo moral de serem patrões e empregados de si mesmos, por não disporem da auto-disciplina necessária para se comportarem como empreendedores individuais, isto não significa que a disseminação da mentalidade “classe média” entre as massas tenha fracassado, mas sim que sua performance bem sucedida é muito difícil, como acontece com todas as exigências culturais excessivamente rígidas.

A consolidação da mentalidade meritocrática de classe média entre as massas, inclusive de pobres, se verifica na popularidade crescente da ideia de que os indivíduos vencedores ou perdedores (pobres) são responsáveis por seu sucesso ou fracasso socioeconômico. E, em geral, os perdedores aceitam esta auto-responsabilização, deixando de perceber as possíveis causas sociais de seu fracasso pessoal.

Como exemplo, a corrida das classes populares às igrejas neopentecostais no Brasil dos últimos 30 anos significa, entre outras coisas, o reconhecimento de si mesmo como responsável por sua própria pobreza e a disposição de reforçar ou reeducar espiritualmente sua estrutura psíquica de “classe média”. Mas também, e principalmente, a disposição prática de se comportar como indivíduo de classe média, dedicando-se ardorosamente não apenas às orações e ao ascetismo moral, mas também ao trabalho, à disciplina monetária e aos estudos.

Os rigores espirituais do renascimento evangélico para Cristo são também os do renascimento mental para o mercado capitalista, principalmente na obsessão maquinal pelos estudos e trabalho. A visão neopentecostal é a de que, no fim das contas, a alma disciplinada e sua família serão agraciadas com a prosperidade, concebida, ao mesmo tempo, como riqueza espiritual e monetária, como prêmio ao mérito concedido por Deus ainda em vida. (Tratei deste assunto em um outro ensaio).

Hoje em dia, o discurso das esquerdas, de culpar o sistema capitalista ou o neoliberalismo pelo fracasso pessoal costuma ter muito pouca penetração nas massas populares do mundo todo. No Brasil, mesmo entre os não evangélicos, a mentalidade meritocrática e individualista se impôs de forma esmagadora.

Como já afirmei no ensaio anterior a este, creio que essa vitória da psique meritocrática de classe média não se trata de ideologia das classes dominantes imposta aos trabalhadores, como supõe o marxismo tradicional, mas sim de um desenvolvimento estrutural da subjetividade capitalista, que se consolida na sua fase neoliberal (1980 até agora), mas cujo gérmen foi “plantado” na psique moderna ainda no início do capitalismo, a partir das revoluções Industrial e Francesa. Em todo caso, essa questão da mentalidade de classe média como um desenvolvimento lógico da estrutura subjetiva do homem moderno não é um assunto para este ensaio.

A utopia de uma sociedade de classe média e a realidade da favelização do mundo 

A questão que eu quero colocar neste momento é que a consolidação do homo economicus de classe média e sua meritocracia individualista vem acompanhada, no caso dos pobres, do desejo de ser tornar efetivamente (economicamente) um indivíduo de classe média.

A utopia neoliberal, mas também do novo progressismo keynesiano, é a de uma civilização de classe média, na qual há alguns ricos, uma maioria esmagadora de classe média e uma pequena minoria de pobres. Estes últimos seriam os fracassados que não desempenharam bem o seu papel de homo economicus, a serem tratados com um misto de piedade e desprezo, mas que, em nome da civilização, deveriam ser amparados por políticas sociais e pela caridade.

O problema é que a realização dessa utopia é um ilusão cada vez mais distante da realidade do capitalismo atual, cuja tendência é a de empobrecer as classes médias e transformar os pobres em pessoas supérfluas, inúteis para a reprodução do capital e, portanto, para a sociedade mercantil. O capitalismo atual produz cada vez mais exclusão social, na contramão do sonho meritocrático da inclusão pelo aumento massivo da renda e do poder de consumo da população.

Todos os dados estatísticos, produzidos pela própria ciência econômica dominante, indicam um aprofundamento, nos últimos 40 anos, das desigualdades socioeconômicas entre indivíduos, classes sociais e nações, além de registrarem uma colossal concentração de riqueza (capital) nas mãos de pouquíssimas pessoas e corporações. E não há, no horizonte, perspectivas de que isso irá se modificar. Muito pelo contrário, todos os sinais são de um crescimento ainda mais acelerado das desigualdades e da concentração de renda e riqueza a nível mundial.

A desigualdade, provocada pelo que Marx chama de concentração e centralização do capital, é uma tendência de longo prazo do capitalismo, que nenhuma intervenção política pode reverter, como já comentei em outro artigo a respeito do determinismo econômico que impera no capitalismo. No máximo esta tendência pode ser mitigada ou freada por um tempo, como na Europa e EUA do estado do bem estar social (1945-1975) ou no Brasil da era petista (2002-2016).

Isso porque o capitalismo, uma vez posto em movimento se torna um sistema autônomo e determinista, cujo fim último é a acumulação de capital e não o bem estar humano. E a concentração de renda e riqueza é um resultado lógico do desenvolvimento dos mercados, em que os capitais maiores tendem a absorver os menores e o trabalho tende a ser superexplorado, resultando na realidade atual da “flexibilização” que, na prática, significa mais tempo de trabalho, menos remuneração e menos direitos para a imensa maioria da população mundial, isso quando há trabalho.

Ou seja, o capitalismo é um sistema com lógica própria que se torna autônomo em relação às vontades e necessidades das pessoas e que, no fim das contas, ameaça a própria vida humana e a natureza ao instrumentalizá-las para acumulação do capital. E, a não ser provisoriamente e pontualmente, o desenvolvimento do capitalismo não pode ser humanizado ou controlado a partir de sua própria lógica (do lucro), como acreditam os keynesianos. A única possibilidade de frear seu processo destrutivo é a emancipação da sociedade mercantil, com a fundação de uma outra sociedade não capitalista, igualitária e ecológica.

A utopia de uma civilização humana majoritariamente de classe média se choca, portanto, com a lógica irreversível do sistema mercantil, cujo resultado é a barbárie de um mundo favelizado. Mundo que já se anuncia na atualidade, com a brutal concentração da riqueza nas mãos de uma reduzidíssima elite mundial, secundada por uma pequena (e numericamente decrescente) classe média, ambas envoltas por um mar de pobreza e miséria crescente. Além disso, os pobres tendem a se tornam cada vez mais supérfluos para o capital, não constituindo nem mesmo um exército industrial de reserva, ainda mais em tempos de automação massiva da produção de capital, com as máquinas substituindo o trabalho humano.

A realidade dos últimos 40 anos de neoliberalismo comprova o acerto da ideias de Marx, ao prever que a tendência de longo prazo do capitalismo é o aumento da desigualdade e da pobreza. Após o breve suspiro distributivista dos anos dourados europeu e norte-americano (1945-75), o capitalismo retornou a seu “fluxo normal” de aumento da pobreza em meio à abundância.

A frustração do desejo de ser classe média e a explosão do fascismo

Diante dessa realidade de aumento da pobreza, o sonho individual de subir na vida pelo aumento da renda e do poder de consumo e a utopia coletiva de uma sociedade massivamente de classe média serão inevitavelmente frustrados. Nem a direita neoliberal, nem a esquerda progressista podem realizar este desejo das massas de ascender ao “paraíso na terra” do homo economicus, de trabalho, renda, consumo e conforto abundantes para todos.

O resultado desse fracasso são os sentimentos de frustração e impotência, que acometem tanto os indivíduos quanto vários grupos sociais e que logo se transmutam em medo (de empobrecimento ou de se continuar eternamente pobre), revolta difusa, ódio, inveja e ressentimento. Estes afetos sombrios, por sua vez, são um solo fértil para o surgimento do fascismo, a pior praga que se desenvolve nas profundezas psíquicas e políticas capitalismo.

Nas terras fertilizadas pelo medo e o ódio, o fascismo floresce vigoroso, com seus líderes moralistas de “pulso firme”, seus delírios de grandeza e virilidade para compensar o sentimento de impotência (“Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”), seus bodes expiatórios a serem perseguidos e eliminados (judeus, negros, gays, comunistas, políticos corruptos, imigrantes etc) e seu desejo por morte e destruição sem fim.

A psique de classe média da massas, individualista, meritocrática e que age e se vê como capital humano auto-empreendedor é incapaz de perceber que seu fracasso econômico (efetivo ou iminente) como resultado da lógica fria, abstrata e impessoal do capitalismo. Isso porque sua visão visão de mundo é condicionada pela própria lógica do capital, sem que o sujeito saiba que seus princípios mais elementares, como a meritocracia individualista, a dignidade do trabalho, a competitividade e a racionalidade instrumental, são, na verdade, estruturas psíquicas inconscientes, desenvolvidas para atender as necessidades do capital (de mais lucro) e não as humanas.

Diante dessa impossibilidade de perceber o capitalismo como responsável pelo seu fracasso, os indivíduos (de classe média, mas também os pobres) oscilam entre culpar a si mesmo, como convém à consciência a-política neoliberal, ou culpar um grupo social responsável pela corrupção (moral, econômica, política) do mundo e que resultou no seu fracasso individual.

O fascismo emerge quando uma parte massiva dos indivíduos deixam de culpar a si-mesmos por seu fracasso em se tornar ou se manter na classe média e encontram um bode expiatório (um grupo social corrupto) para a crise capitalista que os empobrece ou os ameaça de caírem na pobreza.

O nascimento do fascismo, portanto, é um processo de repolitização e de retomada de uma visão coletiva do destino dos indivíduos e grupos sociais, que recusa a culpabilização de si pelo fracasso social. Trata-se, portanto, de uma revolta (revolucionária) contra a mentalidade despolitizada, individualista e meritocrática que estrutura o sujeito pós-moderno neoliberal, mas sem consciência disso, como já abordei com mais detalhes em outro artigo.

Por conta dessa inconsciência, a maior parte da mentalidade do homo economicus capitalista, assim como o desejo de se tornar (ou se manter na) classe média será mantida e até reforçada pelo fascismo. Assim, o fascismo aparenta ser, inclusive aos próprios fascistas, uma forma de capitalismo, pois valoriza e dignifica, não raro de forma fanática, as categorias capitalistas, como o trabalho, a competição, a mercadoria e o lucro.

Mas, no fundo, o homem fascista recém politizado instrumentaliza o homo economicus a-político, assim como o fascismo, ao se consolidar, instrumentaliza o capitalismo, cuja lógica da produção pela produção passa a servir ao ideal fascista de destruição pela destruição. A partir da consolidação do fascismo todas as potências técnicas e materiais do capitalismo, em vez de servir ao lucro (reprodução do capital), passam a servir, em última instância, à produção da morte, da guerra e da destruição ilimitadas, até culminar na autodestruição, destino suicidário de todos os fascismos.

A volta da politização e mobilização social do fascismo assume ares revolucionários e, de fato, ela provoca uma subversão na sociedade capitalista, ao subordinar sua lógica da mercadoria ao desejo de destruição pela destruição. A revolução fascista, portanto, não se dá em nome de uma nova racionalidade que substitua a razão instrumental do capital, mas em favor da irrupção da irracionalidade absoluta que deseja apenas o aniquilamento e o morticínio.

A nova política revolucionária da massa fascista passa a ser, então, a necropolítica da eliminação dos inimigos e dos fracos. Deixar os velhos e vulneráveis morrerem por covid é deixar a “natureza” selecionar os mais fortes e funcionais. Assim como a matança dos negros favelados, a criminalização e opressão dos progressistas e manifestantes antifascistas significam purificar o mundo dos criminosos e terroristas.

Que fazer?

A solução para o impasse do fascismo não passa, portanto, pela utopia inatingível de construção de uma sociedade de massas de classe média, seja pela via neoliberal ou progressista (keynesiana). Insistir nessa utopia de democratização da renda e do consumo significa arremessar o desejo (de ser classe média) contra o muro da realidade capitalista (de favelização do mundo) que frustra a realização desse desejo. Este “choque de realidade“ irá aumentar a frustração e o sentimento de impotência, tanto a nível individual quanto coletivo, desaguando fatalmente no fortalecimento do fascismo.

A solução para este impasse é a conscientização de que o capitalismo e sua lógica abstrata e impessoal são os verdadeiros responsáveis pelo fracasso coletivo da sociedade da mercadoria. Enquanto tal conscientização não ocorre, o homo economicus continuará a culpar o indivíduo pelo “seu fracasso pessoal”.

E nos momentos de agudização das crises capitalistas, como agora, quando o sofrimento psíquico e social se tornam insuportáveis, o homo economicus despolitizado se transmuta no sujeito paranoico do fascismo, repolitizado de forma delirante. Então, a culpa pelo fracasso pessoa deixará de ser individual e passará a ser atribuída a algum grupo social eleito como bode expiatório a ser odiado, reprimido e eliminado, alimentando a espiral fascista de ódio, medo e irracionalidade.

A conscientização de que o sistema capitalista e a lógica da mercadoria são os verdadeiros responsáveis pela exclusão social é um processo difícil. Como humanos, tendemos a personalizar os culpados. Mesmo as revoltas das esquerdas são ávidas por encontrar e culpar as elites responsáveis pelo sofrimento do povo, como o 1%, a banca neoliberal, os especuladores e CEOs que administram as grandes corporações etc. Esta culpabilização das elites corruptas  feita pelos pelos progressistas está há um passo das teorias conspiratórias dos donos do mundo, dos desejos de purificação moral e, finalmente, da emergência dos delírios fascistas de destruição e morte.

É mais fácil projetar o mal em indivíduos ou grupos sociais (sujeitos coletivos) do que admitir que o nosso problema é o capital, um “ser social”, inconsciente, amoral (nem bom nem mau) abstrato e puramente quantitativo, inventado por nós e que agora nos domina.

Mais difícil ainda reconhecer a “culpa” do capital porque este “ser” se encarnou em cada um de nós e estrutura nossa psique desde suas bases mais profundas. Pensamos, sentimos, vemos o mundo e a nós mesmo a partir da lógica da mercadoria. E principalmente agimos de acordo com esta lógica. Uma prova de nosso condicionamento pelo capital é considerarmos natural e digno o fato de trabalharmos e recebermos por nosso trabalho. Por outras palavras, naturalizamos e dignificamos o ato de nos vendermos no mercado como mercadoria.

Criticar o capital significa, portanto, questionar a nós mesmos, autocriticar nossa formação psíquica de base, sobre a qual nos constituímos como seres humanos. Significa questionar nossa identidade como sujeito moderno ou pós-moderno e abalar nossas verdades e convicções (éticas, científicas, políticas, pessoais) mais profundas, como, por exemplo, nossa fé democrática, nosso conceito de liberdade individual, os direitos civis, a dignidade do trabalho, a necessidade do dinheiro e do estado, a legitimidade da propriedade privada, a centralidade da economia, a neutralidade da técnica e da ciência etc.

O capital nos habita e nos estrutura como subjetividade. Portanto, são o capital, a sua lógica da mercadoria e o capitalismo (sistema abstrato e impessoal regido pelo capital) as causas principais de nosso fracasso como coletividade humana. Reconhecer essa isso significa perceber que nosso destino individual passa, antes, pela forma social que nos constitui e nos antecede como indivíduos. Significa tomar consciência que o destino de cada um de nós passa, antes, pelo destino coletivo de todos nós, de como nos organizamos (muitas vezes de forma inconsciente) como sociedade.

Significa, por outro lado, assumir que somos nós mesmos (pobres, de classe média ou ricos) os artífices e, portanto, os“culpados” por nosso próprio fracasso como sociedade. Mas não se trata de uma culpa individual ou decorrente do mau uso do livre arbítrio e de nossas capacidades racionais, como quer o cristianismo, o iluminismo ou o neoliberalismo.

Melhor que usar o termo culpa é falar sobre responsabilidade. Somos responsáveis, como coletividade e de forma inconsciente, por chegar a tal situação histórica de sermos instrumentalizados pelo capital que nós mesmos criamos. Este reconhecimento do capitalismo como nosso destino coletivo arquitetado de forma cega por nós mesmos e incrustado na psique individual de cada um de nós, constitui a necessária tomada de consciência que possibilitará a ação emancipatória.

Embora esse processo de conscientização seja difícil, ele é possível, principalmente em momentos de crise aguda capitalista, como agora, quando a o desenvolvimento da lógica da mercadoria explicita todas as suas contradições sistêmicas. É por essas brechas contraditórias que a rebelião fascista questiona o capital de forma inconsciente e irracional, instaurando sua revolução destrutiva e sua necropolítica.

E por essas mesmas brechas do capital é possível, e mais que isso, urgente e necessário, que as pessoas tomem consciência de que a causa real de seu “fracasso” e seu sofrimento não são grupos sociais específicos a serem odiados, mas sim a dominação abstrata do capital, que nos coage duplamente: a partir do fora social e suas regras de mercado; e a partir de nossa própria interioridade subjetiva constituída como homo economicus.

A conscientização é um processo doloroso, mas libertador, de perceber esta esta situação de dominação abstrata do capital. A partir daí teremos a possibilidade e, mais que isso, a responsabilidade de construir, de forma consciente, uma outra sociedade realmente solidária e comunitária, livre a da lógica expansiva e desumanizadora do capital. E livre, em consequência, dos perigos da rebelião irracional do fascismo.

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...