15 dezembro, 2020

A trave dos olhos

Um alguém (zé-ninguém,
pessoa de bem, homem bom)
precisa comer, 
morar, 
vestir,

mas também
cantar, rir e dançar:
viver além do existir.
Pensar além...

                      Mas aqui

                      ninguém pensa
                      que não seja pelas grades

                      (ninguém vive
                      que não seja sob a lei

                      ninguém veste
                      que não seja a fantasia

                      ninguém sonha
                      que não seja sob as asas

                      ninguém come
                      que não seja pela mão)

do Espírito Santo do Deus

Mamon.


dança
Dança em torno do bezerro de ouro - Emile Nolde

20 outubro, 2020

As teorias da conspiração e suas meias verdades

Os tempos sombrios em que vivemos é um terreno fértil para o florescimento das teorias da conspiração, desde as suas versões mais delirantes da extrema direita até as que se assentam em dados da realidade, que costumam ser desenvolvidas à esquerda, inclusive nos meios acadêmicos. 

O marxismo globalista, o vírus chinês, o comunismo de Soros e Gates, a aliança dos progressistas e ativistas com o diabo são exemplos dos delírios conspiratórios dos neofascistas e cristofascistas atuais que infelizmente ganham cada vez mais adeptos no Brasil e no mundo.

As teorias conspiratórias elaboradas pela esquerda são mais inteligentes e baseadas em dados da realidade, tratando, geralmente, do estado profundo (deep state) norte-americano e do imperialismo dos países centrais do capitalismo (EUA, Europa Ocidental e Japão) e sua luta sem tréguas para manter seu domínio geopolítico mundial, estabelecido no Pós-Guerra, impedindo que as nações periféricas se desenvolvam e se tornem competidores poderosos.

As conspirações existem? Sim, existem

As conspirações imaginadas pela extrema direita obviamente não existem ou suas teorias se assentam muito fragilmente em bases reais. O caso do marxismo globalista, por exemplo, se funda no fato de Marx ser um teórico importante nas chamadas humanidades do meio acadêmico mundial. E no fato de Marx apregoar que o comunismo deveria ser um movimento mundial, mas só porque o capitalismo é global, o que torna ineficaz combatê-lo localmente. 

Ou seja, há no marxismo um detalhe da realidade (facilmente verificável) e um raciocínio lógico que são convenientemente esquecidos pelos delírios da conspiração do neofascimo atual: que o capitalismo é globalista desde seu início e, em consequência, a luta contra ele também deveria ser global. E há outro detalhe empírico ignorado pela extrema direita, também fácil de se verificar, que é a fragilidade e a falta de popularidade de todos os movimentos anticapitalistas na atualidade, sejam marxistas ou não. Se o progressismo e as esquerdas reformistas ganham força em alguns lugares, quase ninguém questiona o capitalismo em si. Mas cobrar tal percepção de quem acha que Soros e Gates são comunistas seria exigir demais.

Já as conspirações teorizadas pelo chamado campo progressista geralmente são mais factíveis. Não há como negar a existência do estado profundo norte-americano e da aliança imperialista do chamado Ocidente desenvolvido, capitaneada pelos EUA. Os golpes de 1964 e 2016 nos fizeram a nós, brasileiros, provar o veneno amargo das conspirações imperialistas dos EUA e seus aliados, em sua obstinada determinação de nos manter pobres e humilhados latino-americanos de Terceiro Mundo.

E devemos nos lembrar que China e Rússia, nossos supostos aliados do BRICs, não moveram uma palha a nosso favor em 2016. Sem falar que a primeira ainda apareceu depois para dividir o butim do golpe, comprando avidamente muitos ativos nacionais na bacia das almas. Para a China ascendente, tal como para o Primeiro Mundo, somos apenas fornecedores de matéria-prima. 

É uma ilusão das nossas elites achar que um dia seremos aliados-subordinados estratégicos de alguma potência mundial, como o Canadá e a Austrália são para os EUA. Para isso, seria preciso compartilhar cultura e carga genética com o povo do império e nós, mestiços de negros e latinos (estes considerados quase negros pelos loiros europeus) não temos “pedigree” cultural nem racial para a posição privilegiada de capataz do império, seja ele de olhos azuis ou de olhos puxados.

Em todo caso, o mundo capitalista se organiza por meios de uma competição ferrenha e desleal não apenas entre empresas e indivíduos, mas também entre estados e blocos de estados. A competição econômica se confunde com a competição geopolítica e as grandes empresas forjam, o tempo todo, alianças com as forças obscuras dos estados (serviços secretos, alta burocracia, judiciário, partidos políticos) em busca de mercados e, obviamente, lucro, que é a razão de ser das corporações no capitalismo. 

Nessa luta sangrenta por lucro e mercados há, obviamente, guerras surdas e conspirações de toda ordem, nas quais os estados tentam controlar e vencer seus adversários. Boa parte das conspirações capitaneadas pelos EUA tem como objetivo impedir que estados-colônias continentais, como Brasil, Rússia, Índia e China, se tornem potências e confrontem os países centrais. A China e, em menor grau, a Rússia, parecem estar conseguindo escapar das guerras híbridas e redes conspiratórias imperiais e ascender ao seleto panteão das nações realmente autodeterminadas.

Para isso, fizeram o que o Brasil e a Índia não quiseram ou não puderam realizar: burlaram a farsa das relações democráticas e republicanas e jogaram sujo a favor de seus respectivos nacionalismos, tanto internamente quanto externamente. Ou seja, aceitaram o jogo conspiratório como a política real e contra-atacaram sem piedade (e sem falsos moralismos ou republicanismos) os adversários internos e externos da autodeterminação nacional. 

Os governos petistas de Lula e Dilma, por exemplo, poderiam ter transformado o Brasil numa Alemanha da América Latina, uma potência industrial regional. Mas para isso teriam que construir um serviço secreto eficiente e fazer uma limpeza ideológica no Judiciário, no aparato policial e nas forças armadas, aposentando ou demitindo os aliados dos EUA e do neoliberalismo, incrustados no aparelho de estado. Lula, por exemplo, perdeu a chance de estatizar a Rede Globo, que estava quebrada em 2002, ano de sua posse. Com a Globo em suas mãos, ele poderia quebrar toda a grande mídia familiar, aliada de longa data do império norte-americano, e não haveria nem Lava-Jato nem o golpe de 2016. 

Pouco democrático? A democracia no capitalismo é sempre muito relativa e todos os países que se tornaram potências a burlaram constantemente em nome de seus projetos de poder, a começar pelos EUA, onde não faltam exemplos de conspirações muito pouco democráticas, como o macarthismo anticomunista, a aliança velada do deep estate com a grande mídia (explicitada com as mentiras sobre as armas químicas na guerra do Iraque) e o atual conluio das agências de espionagem com as grandes bigs techs norte-americanas.

Então, as conspirações descritas pelas esquerdas existem de fato. Negá-las seria negar a realidade imperialista do capitalismo mundial. E qual o resultado das guerras conspiratórias e disputas geopolíticas para as pessoas comuns, como nós? 

O capitalismo gera dois tipos de sofrimento para as pessoas. O primeiro decorre da transformação das pessoas em capital humano, em máquinas racionais de trabalhar e gerar lucro, cuja exigência de desempenho se acelera à medida que o capitalismo se desenvolve. O segundo tipo de sofrimento decorre da desigualdade inerente ao desenvolvimento capitalista e se traduz em massificação do desemprego/subemprego, da pobreza, miséria e fome.

Para os males da redução da pessoa a capital humano, as disputas geopolíticas e as guerras conspiratórias não fazem diferença: todas as pessoas de todas as nações são afetadas por este sofrimento. Talvez as pessoas dos países dos países ricos padeçam até mais das exigências do alto desempenho individual, que obrigam as pessoas a dedicarem quase toda sua vida ao mercado de trabalho e, em consequência, ao capital.

Em relação aos males da desigualdade, os países vencedores da guerra capitalista se tornam mais ricos e com mais condições de combater, senão a desigualdade, pelo menos o desemprego, a miséria e a fome. Estes três problemas, por exemplo, foram praticamente resolvidos na China, a partir dos anos 2000, quando começa sua ascensão meteórica como potência industrial. 

O dinamismo dos ganhadores gera emprego e renda e mesmo que não resolva o problema da distribuição e da pobreza, o sofrimento causado pela miséria e a fome cessam. Politicamente, o resultado é o apoio popular, o crescimento do sentimento nacionalista e o fortalecimento interno das forças políticas que promovem a ascensão da nação, que China (com o PCC) e Rússia (com Putin) souberam aproveitar muito bem, se projetando no cenário internacional e lutando contra as conspirações do Ocidente para frear sua autoafirmação como potências.

As conspirações imperiais e as lutas anti-imperialistas, portanto, são fundamentais para definirem os países vencedores e perdedores na encarniçada guerra capitalista mundial, redistribuindo o poder econômico e político entre as nações e seus habitantes. Os povos dos países perdedores estão sujeitos à expansão da miséria, da fome e do inevitável caos político e social decorrente de tal situação, como é o caso dos países da América Latina. 

As conspirações imperialistas e a resistência a elas  mudam o destino de alguns povos na disputa capitalista. Mas os teóricos da conspiração da esquerda, costumam acreditar que uma boa resistência das nações periféricas às escaramuças conspiratórias capitaneadas pelos EUA também podem mudar o destino do capitalismo em geral, e para melhor. Ou seja, eles creem que se entendermos bem os objetivos do império (se tivermos uma boa teoria da conspiração) e nos defendermos e contra-atacarmos de forma eficaz, podemos melhorar a vida de todos os povos do planeta. 

Poderíamos, por exemplo, apoiar a ascensão da China como próxima força imperial e negociar como ela um mundo multipolar, onde a autodeterminação dos povos seria concreta e não apenas formal. Um mundo forjado a partir da cooperação sul-sul, sonho dos idealizadores dos BRICs, poderia engendrar um capitalismo mais justo, geopoliticamente.

A resistência às conspirações imperiais podem alterar os rumos fundamentais do capitalismo? Não

A conversa de Trump sobre a China roubar empregos norte-americanos é uma meia-verdade, pois há uma parte dos empregos que foram `roubados" pela automação. Mas a China realmente tirou indústrias (e empregos) dos EUA, assim como tirou da Europa e do Brasil.

Não que os chineses sejam maus e tenham um plano diabólico de empobrecer os outros para se enriquecerem. É que eles entenderam as regras do jogo capitalista e passaram a jogá-lo de forma agressiva, que aliás é a única forma de se tornar um vencedor. E o capitalismo é um jogo de soma zero, que concentra a riqueza em poucas mãos - e países. Quem ganha, costuma levar tudo, ou quase tudo.

Distribuir riqueza e, em consequência, o poder de forma desinteressada, a beneficiar todas as nações e, dentro delas, todas as pessoas, é contra a lógica do capital, cuja tendência mais eficiente (para o capital) é a acumulação de riqueza e poder. Quem ganha a guerra, pode até distribuir o butim, mas jamais da forma que consideraríamos justa e desinteressada: será sempre uma distribuição que considera a eficiência do capital e a preservação de seu poder econômico e político, exatamente como os EUA fazem atualmente. 

E sempre haverá muito mais nações (e pessoas) perdedoras que vencedoras. Não há vontade política nem boas intenções progressistas e anti-imperialistas que possam mudar este DETERMINISMO capitalista de concentração da riqueza criada e de geração de miséria e fome em meio à riqueza e abundância alimentar. Se a China desbancar os EUA, ela não vai se tornar um império do bem (uma contradição em termos) só porque já foi um país colonial, explorado pelo grande capital - os EUA também já foram, é bom lembrar. O jogo capitalista exige que os ganhadores se portem como ganhadores, que eliminem os potenciais competidores e evitem solidariedade desnecessária para com os perdedores. É assim com empresas e pessoas e também é assim com estados.

As guerras convencionais, assim como as guerras comerciais e híbridas, nas quais as conspirações são essenciais, mudam a riqueza e o poder no interior do capitalismo e definem os vencedores e perdedores do sistema. Estas mudanças de poder são imprevisíveis e dependem, em larga medida, da vontade política dos povos, de sua coesão interna e sua disposição em transformar sua coletividade numa máquina eficiente e competitiva para produzir capital humano, ciência, tecnologia e, por fim, mercadorias e lucro, que é a finalidade do capitalismo.

Mas as guerras e conspirações não alteram alguns desenvolvimentos fundamentais do capitalismo, que estão DETERMINADOS desde o início do sistema como um DESTINO LÓGICO seu, como por exemplo, a substituição de trabalho humano por automação, a queda tendencial da taxa de lucro, a necessidade de se aumentar constantemente o volume da produção de mercadorias para compensar a queda do lucro, o crescimento do desemprego tecnológico, a tendência à concentração de riqueza e a degradação ambiental decorrente da necessidade insana de aumentar a produção de mercadorias. Todas estas “leis” foram previstas por Marx e os marxistas a partir da lei do valor-trabalho e são verificáveis empiricamente ao longo do desenvolvimento do capitalismo, desde a Revolução Industrial.

Enquanto durar o capitalismo e sua lógica da mercadoria, estas “leis” podem, no máximo, terem suas consequências mitigadas, mas nunca poderão ser revogadas, pois não dependem da vontade política das pessoas, por mais bem intencionadas que sejam. A luta contra as conspirações imperiais dos EUA e seus aliados, mesmo se vitoriosa, não vai alterar esses desenvolvimentos pré-determinados do capital. 

Se o centro do sistema mudar para a China, mesmo que ela queira, não haverá meios para mudar os destinos lógicos do capitalismo, que não levam automaticamente ao socialismo, como muitos marxistas tradicionais pensaram, mas ao colapso do sistema e ao caos, que já se anuncia com as crises do neoliberalismo financeiro e a ascensão mundial dos neofascismo. 

As conspirações imperiais e lutas anti-imperialistas nada podem fazer a respeito dos destinos fundamentais do capitalismo, a não ser que as lutas contra o império se transformem, em algum momento, em lutas anticapitalistas, que busquem não apenas reformar o capitalismo ou mudar seus centros de poder, mas promover, de fato, alguma forma de transição emancipatória para fora do sistema.


01 outubro, 2020

“lâminas”, a poesia imprescindível de Dheyne de Souza

lâminas, o mais recente livro de poemas de Dheyne de Souza, foi lançado em junho pela Martelo Editorial, numa edição muito bem cuidada e com uma bela capa que faz juz aos poemas do livro. Trata-se do segundo livro impresso de Dheyne de Souza, cuja obra de estreia foi o ótimo Pequenos mundos caóticos, livro infelizmente muito mal divulgado. Além disso, a poeta tem outras publicações em formato de ebook, que ela disponibiliza gratuitamente para download em seu blog pessoal.

Além de apresentar o livro de Dheyne de Souza, este texto é a tentativa de abrir uma porta de entrada para a poesia da autora, para que o leitor possa, depois, construir suas próprias entradas e caminhos para explorar as várias possibilidades de sua obra poética, ao mesmo tempo densa e sutil, experimental e expressiva.
 
Uma corrente alternativa da poesia
 
De início, a poesia de Dheyne de Souza pode se apresentar como difícil, hermética, pouco afeita ao humor, à ironia, à discursividade e à fala coloquial, características que tanto marcaram a nossa tradição modernista e nos educaram como leitores de poesia pela pena de grandes poetas como Drummond, Bandeira, Mário e Oswald de Andrade, Cecília Meireles e Ferreira Gullar, entre outros. 
 
Dheyne de Souza se filia a uma outra tradição poética, alternativa a esta corrente principal e que passa pelo simbolismo, surrealismo (em sua vertente mais construtiva) e deságua numa linguagem que se costuma denominar como pós-moderna ou pós-modernista, feita de quebras sintáticas, sentidos obscuros e incompletos e metáforas violentas, cuja poesia é marcada pelo experimentalismo e polissemia exacerbados.

Sua filiação mais imediata é Manoel de Barros, com suas metáforas e construções poéticas inusitadas. Mas há diferenças significativas, pois a poesia do mato-grossense é alegre e marcada pela busca das origens, que se dá pela evocação e celebração da natureza (animal, vegetal e mineral) e dos restos inúteis da civilização, sejam eles coisas (objetos e espaços abandonados) ou pessoas (mendigos, bobinhos, aleijados etc). 

A criança e sua linguagem desajeitada de aprendiz, que descobre o mundo brincando com a língua, é o sustentáculo, tanto da linguagem experimental quanto da persona poética (eu lírico) de Manoel de Barros, marcada pelo lúdico e pela alegria da descoberta de um mundo inaugural, em fusão com a pré-subjetividade infantil, intrinsecamente poética e alternativa ao mundo urbano, cinza, pragmático e angustiante do homem moderno. Talvez, por conta de seu phatos celebratório e da exploração da linguagem lúdica da criança, Barros seja um poeta tão popular, apesar de seu experimentalismo.

Uma poesia feita com as sombras do agora

Experimentalismo que certamente foi uma das fontes de Dheyne de Souza, mas, ao contrário de Manoel de Barros, sua poesia não é celebrativa e nem fundada na linguagem e perspectiva da infância. Sua descoberta do mundo se dá pela persona de um adulto angustiado e não por uma regressão efusiva (e fusional) às origens da infância. Sua poesia se constrói não como fuga para a ancestralidade natural como em Manoel de Barros, mas como um mergulho sombrio (também fusional) na vivência urbana atual, fragmentada e agônica, como já anuncia o primeiro poema de lâminas:

quebrados de rua
bebidos de pressa
ladrilhos sem linha
(p. 9)

A sintaxe do primeiro verso remete às distorções sintáticas de Manoel de Barros e seus “erros” de regência, mas também às metáforas ferozes do surrealismo e ao hermetismo simbolista. Afinal a que sentidos podem nos levar a expressão “quebrados de rua”, que parece ser uma qualidade dos “ladrilhos sem linha”, que ainda são adjetivados como “bebidos de pressa”? 

O curto poema revela uma atenção meditativa da voz poética a elementos insignificantes e raramente percebidos da paisagem urbana, num procedimento comum à poesia moderna. O poema parece mergulhar no mundo mineral da rua, mais especificamente na estética não linear dos ladrilhos do que seria, talvez, uma rua pavimentada de paralelepípedos ou bloquetes desgastados, ou ainda uma velha calçada ladrilhada. Construída inadvertidamente pelo tráfego pesado que danifica o pavimento, a estética ruinosa da rua não pode ser fruída pelas pessoas, que bebem/usam os ladrilhos de forma apressada e meramente utilitária, sem tempo nem disposição para fruir sua beleza derruída e assimétrica. O que dá ao poema um tom de lamento e crítica em relação à vida pós-moderna, dedicada ao desempenho e à produtividade e que não permite às pessoas uma visão contemplativa, nem mesmo de seu próprio universo urbano.

Mas o poema nos possibilita ir mais longe em seus desdobramentos de sentido, pois a coletividade de ladrilhos desalinhados, além de se referir ao pavimento, pode muito bem ser uma metáfora que remete às pessoas: ladrilho-pessoa. Neste caso, o elemento humano passa do polo ativo, que usa/bebe apressadamente os ladrilhos, para a objetificação passiva, como peça a mais do pavimento das ruas, instrumentalizada para o funcionamento da cidade. A rua e a cidade, por sua vez, se tornam metáforas da própria coletividade urbana, anônima e utilitária (capitalista), cujo funcionamento consome (bebe) as pessoas de forma descuidada, restando, ao final, ladrilhos/pessoas alquebradas, exploradas. As ruínas da rua se tornam a expressão da ruína coletiva da sociedade do desempenho, um corpo coletivo fraturado e desalinhado, composto de vidas quebradiças, isoladas e destituídas de continuidade e sentido humano: ladrilhos sem linha.

O poema nos apresenta, portanto, duas esferas densas de sentido, em que o elemento humano oscila entre sujeito e objeto da instrumentalização que caracteriza a sociedade contemporânea, abrindo o livro com uma primeira lâmina de contemplação sombria, mas também de crítica afiada dos sujeitos e objetos da paisagem/engrenagem urbana.

Experimentalismo violento da linguagem

Além dessas duas esferas de sentido, o poema acima também pode ser lido ‘apenas’ como uma construção de imagens que cria, a partir das palavras ‘rua’ e ‘pressa’ , uma atmosfera urbana a ser re-vivida poeticamente. Esta, na verdade, seria a primeira interpretação deste e de muitos poemas de Dheyne de Souza, uma exímia construtora de imagens, como se pode observar no segundo poema do livro, em que o sofrimento íntimo se expressa como uma atmosfera tempestuosa, numa fusão, ao estilo surrealista, entre psique e paisagem:

coração nublado
abre as cortinas

essas veias
tempestam
(p. 11)

A poeta evita os conectivos de comparação e outros procedimentos prosaicos, truncando as frases e aproximando violentamente os elementos da subjetividade e da paisagem, provocando um choque entre o imaginário da intimidade e as imagens do clima. O impacto no leitor é, primeiramente, de estranhamento e, depois, de tentativa de reconstrução dessa colisão de imagens que expressam o dentro e o fora, tão inesperada quanto bela.

Esse truncamento do discurso, construído com procedimentos que evita ou “erra” os conectivos, insiste em quebras sintáticas, desvios de regência e metáforas inusitadas (“veias tempestam”), que às vezes recorre a neologismos (“tempestam”), enfim que força experimentalmente a linguagem e sua lógica a se dobrar às exigências expressivas, é uma constante na poesia de Dheyne de Souza e resulta em metáforas e imagens surpreendentes, que conduzem ao estranhamento e à expressão do inconsciente (individual e coletivo). 

Tais características poéticas que levam à expressão do inconsciente nos permite inserir Dheyne de Souza nessa tradição subterrânea da poesia ocidental, que passa pelo Simbolismo e, mais recentemente, pelo Surrealismo. Não o Surrealismo da ‘escrita automática’ e do ‘jorro verbal’ em que o poeta ‘possuído’ deixa fluir a linguagem inconsciente, mas sua vertente construtiva, que busca atingir a ‘lógica’ do inconsciente por meio da experimentação verbal, da construção laboriosa e concisa da linguagem poética.

Erotismo e amor num só movimento

O amor é um tema constante na poesia de Dheyne de Souza. A temática de seu primeiro livro impresso,  Pequenos mundos caóticos, se divide entre o topos do amor e, na falta de um nome melhor, um existencialismo fluido e fraturado, que busca exprimir as angústias da vivência pós-moderna ― não raro, amor e existencialismo se misturam inextricavelmente. Em lâminas, a poeta estende sua temática ao fora social, com poemas críticos e que tratam do sombrio momento histórico em que vivemos, mas sem deixar de tratar dos abismos interiores da existência e do amor.

Um dos pontos altos de lâminas é justamente um poema de amor, que é também erótico, ao mesmo tempo espiritual e corpóreo, cujo título já faz o papel de um primeiro verso:

no limbo do teu olho mora

uma noite vestida de páginas
que leio
e sopro
na umidade do teu corpo dorme
uma pálpebra que acorda
e treme
porque tua pele guarda
esculturas movediças
e meus poros são feitos de cílios
(p.33)

Neste poema, um pouco mais longo que os dois que acabamos de ler, podemos notar outra qualidade da poeta, além de sua habilidade em criar imagens belas e inusitadas (“noite vestida de páginas”, “esculturas movediças”,“poros feitos de cílios”), que é sua perícia sonora. O texto vai se tecendo por versos livres de delicada melodia, que oscilam entre sete e nove sílabas, entrecortados de forma irregular por três versos curtos de duas sílabas, tornando todo o poema uma espécie correspondência simbolista, em que ritmo sonoro do todo espelha o ritmo irregular da cena erótica, na qual os amantes se contemplam (“leio”) e se excitam (“sopro”, “treme”) no mesmo movimento.

Cabe ressaltar ainda que o poema é atravessado por uma aliteração em r presente em quase todos os verbos (mora, sopro, dorme, acorda, treme, guarda) e que ressoa em três substantivos fundamentais para o sentido do texto: corpo esculturas e poro. A aliteração estabelece uma continuidade entre os amantes (corpo e poro) e suas ações (verbos), o que reforça o sentido de fusão erótico-amorosa e a correspondência entre som e sentido. A poeta cria, assim, um efeito encantatório em que o encontro amoroso é reverberado tanto pelas imagens quanto pelos sons do poema. 

Esta fusão erótica entre os desejos da carne e do espírito vai se construindo à medida que o poema de desenvolve. O título e os dois primeiros versos evocam uma imagem espiritualizada da pessoa amada, com a alusão ao olho (espelho da alma) e ao outro como um livro a ser lido. O quarto verso, no entanto, complementa a contemplação espiritual com um sopro erótico, apesar do verbo soprar evocar também sopro criador de Deus do Gênesis ― em todo caso o sopro bíblico já é uma metáfora erótica da fecundação que dá vida.

Nos três versos seguintes ‘acontece’ o que parece ser a reação ao sopro: uma acordar trêmulo do outro. E o que acorda é uma pálpebra que dorme “na umidade do corpo”, ou seja os olhos, ou a alma, que repousa no corpo, ou ainda, o espírito que dorme na carne e desperta junto com esta, em reação ao sopro do desejo do outro. Note-se que não há, no poema, a oposição entre sujeito ativo e objeto passivo do amor, pois o corpo que acorda é também pálpebra, olhar. É, ao mesmo tempo, objeto do desejo que se deixa ler e soprar e sujeito desejante que lê. 

Assim como anula a oposição entre polos ativo e passivo, o poema transcende os limites entre corpo e alma, amor espiritual e carnal, consumado na bela imagem da “pálpebra/corpo que acorda e treme”. É a alma que deseja e se excita junto com o corpo, fusão entre amor e sexo que vai se consumar nos três últimos versos, em que a poeta introduz uma metáfora mais sensorial do corpo, que antes era um livro a ser lido e que passa agora a “esculturas movediças”, a ser visto e tocado ao mesmo tempo.

O verso final retorna a perspectiva do eu e consagra a fusão entre corpo e alma com uma imagem desconcertante: “meus poros são feitos de cílios”. O olhar dos corpos é táctil, é o toque e o deslizar da pele que olha, lê, contempla. Ao mesmo tempo, cada poro do do corpo é um olho (“cílio”) que vê o outro com a pele, pelo contato erótico dos corpos. Este verso de arremate ainda cria um efeito de multiplicidade na unidade da fusão amorosa: são miríades de poros-olhos se acariciando e contemplado no entrelaçamento entre os desejos sensorial e espiritual. Mais à frente veremos que o tópos da multiplicidade (do rizoma) é recorrente na poesia de Dheyne de Souza.

O poema não fala sobre a fusão amorosa. Antes, suas imagens inusitadas, seu discurso truncado, sua construção sonora e sua metáforas abruptas, ao invés de representar o amor erótico, quer apresentá-lo ao leitor. Mais ainda, parece haver uma ambição ultrarrealista no texto, para além ou aquém do universo da linguagem, que é a de recorrer às rupturas do discurso para presentificar ou re-presentificar o amor, na esperança de recuperar com a poesia - essa abstração feita de palavras - a vivência concreta dos afetos, das razões e das sensações presentes experiência amorosa. 

Transubstanciação entre vida e poema: ambição e fracasso

Utilizar os artifícios da poesia feita de palavras para reviver a poesia espontânea do momento é a ambição deste poema em particular, mas de toda a poesia de Dheyne de Souza. Uma ambição romântica, sem dúvida, que a poeta sabe destinada ao fracasso desde o início, mas que ela não cansa de buscar, lutando contra a linguagem discursiva e representativa em busca da vivência concreta, inatingível para a vivência abstrata da arte. 

Ora, mas esta não seria a ambição quase toda a poesia, a partir do Romantismo, inclusive de sua tradição mais discursiva dos mestres modernistas, como Drummond e Bandeira? Sim, mas a tradição subterrânea a que Dheyne de Souza se filia, que vai do Simbolismo ao Surrealismo, parece não aceitar a linguagem como mediação encantada, forçando-a a encarnar o encantamento e transformando-a, de fato, na vivência poética. 

A diferença entre estas poéticas talvez seja análoga ao conflito religioso entre os defensores da transubstanciação e os da consubstanciação. Para os primeiros, o pão e o vinho se transformam, de fato, no corpo e sangue de Cristo, enquanto os segundos se contentam com a união simbólica entre as matérias terrenas e o espírito divino. Certo Romantismo, continuado pelas vertentes simbolista e surrealista, quer transmutar a palavra poética na própria vivência poética, na poesia que se experimenta na vida, abolindo a distância entre vida e poema. Já a corrente majoritária do modernismo e da poesia ocidental ‘se contenta’ em encantar a palavra poética, rememorando ou evocando a poesia da vida com as palavras do poema. 

Esta diferença de procedimentos e finalidades não implica numa diferença qualitativa, pois há boa poesia em ambos os campos, mas deve servir de baliza para entendermos a radicalidade experimental de poetas como Dheyne de Souza, que não se contenta em encantar as palavras, mas luta para transubstanciar a linguagem em vivência concreta, mesmo sabendo do fracasso inevitável dessa tentativa em fazer palavra poética e vida vivida se transubstanciarem uma na outra. Consciência angustiada do fracasso que aflora em alguns poemas metalinguísticos de lâminas, como nos dois últimos versos de um deles: 

é feita de poros a língua
à míngua de tatos 
(p. 47)

A porosidade da língua-linguagem não está à altura, ou melhor, está sempre alta demais, abstrata demais para chegar à baixeza sensorial do tato, ao rés do chão da existência concreta. Um anticlímax final para um poema em que a autora começa afirmando peremptoriamente que sua poesia se confunde (se transubstancia) com uma cumulação extasiante de coisas, afetos e sensações da vida:

são feitos de versos livres meus buracos
são leitos de rasgos amargos, bordôs, quinas da alma quitada, 
                 [muito bem riscadas, rasuras ranhuras alturas vesgas 
são feitos de esquinas meus verbos 

O sentido do tato, talvez o mais concreto do ser humano, que faz o indivíduo se sentir como um corpo material em meio aos outros corpos e matérias do mundo, é uma constante na poesia de Dheyne de Souza, que pudemos observar neste poema e no analisado anteriormente ― o título do livro, lâminas, remete ao corte e, portanto, ao contato, à sensação do tato. Essa obsessão pelo táctil, pelo sensorial expressa o desejo de se chegar à realidade concreta do mundo, não apenas o real das coisas materiais, mas principalmente o real das sensações, afetos e vivências por que passam os corpos, individuais e coletivos. 

O fluir da vida, individual e social, é inapreensível pela linguagem. E a poesia de Dheyne de Souza deseja não apenas apreendê-lo e representá-lo, mas entrar nele e apresentá-lo, presentificá-lo. Por isso, sua filiação ao simbolismo e ao surrealismo, cuja linguagem truncada, aparentemente absurda, irreal e próxima do sonho e da loucura, é, na verdade, uma tentativa de agarrar com o correr da letra o fluxo caótico da existência, com suas indeterminações, sua vastidão inconsciente e sua multiplicidade desconcertante.  

Uma poesia do inconsciente

É claro que a poesia que deseja apresentar hiper-realisticamente (su-realisticamente) o fluir da existência fracassa irremediavelmente e, como vimos, a poeta tem consciência desse fracasso. A potência da poesia com tal ambição não está, portanto, em seu "sucesso imitativo", mas na sua capacidade de criar para o leitor um universo poético que possa interagir, não raro de forma áspera e conflituosa, com o fluxo sensorial, afetivo e intelectual da existência concreta de todos nós. 

Por outras palavras, a poesia de Dheyne de Souza se propõe a oferecer pontas, fios, nervuras ou línguas que possam se reconectar ou se religar com a existência concreta de onde essa poesia emergiu. A ambição ritual da religação religiosa (religare) está presente, sem dúvida, embora o sagrado não, pois se trata mais de uma religação mágica com as ‘energias’ e potências invisíveis, e nem sempre benéficas, do mundo do que uma religação com o divino. Continuando a comparação, a poeta não seria a sacerdotisa a cultuar o sagrado e sim a feiticeira que fazendo suas magias.

Esse mundo mágico e invisível em que a poesia da autora mergulha e com o qual tenta dialogar e mobilizar, como se o poema fosse um rito ou um canto feito de palavras mágicas, é normalmente conhecido, no Ocidente, como inconsciente. Dheyne de Souza é, portanto, uma poeta do inconsciente, das zonas sombrias da alma, não apenas individual, mas também coletiva. 

A construção de imagens inusitadas, presente em toda sua poesia, é uma forma de acessar e apresentar o inconsciente, locus onde tempos, espaços, coisas e vivências diversas se misturam caoticamente e cuja “gramática” é muito diferente da representação lógica da vida real e bem mais próxima da linguagem aparentemente absurda dos sonhos e do delírio.

O mergulho no inconsciente e a tentativa de apresentá-lo é uma constante na poesia de Dheyne de Souza, que tende ao intimismo dos movimentos “interiores” da alma ― as aspas aqui são fundamentais e mais à frente veremos porque. É interessante notar que sua poesia evita avisar o leitor sobre o “tema” do inconsciente, contornando a armadilha da tematização da matéria poética e, em consequência, de sua representação. Pois se trata exatamente de apresentar o inconsciente, de tentar se imiscuir nele, se religar a ele com a linguagem poética.

O inconsciente como multiplicidade

A multiplicidade é outra presença recorrente na poesia de Dheyne de Souza. Sua poesia é perpassada por imagens que remetem imediatamente a coletividades, como poro(s) e ladrilho(s) espinho(s) pétala(s), dente(s); pelo uso abundante do plural; e pela insistência no artigo indeterminado “um”. Todos esses procedimentos poéticos remetem à indeterminação e ao múltiplo, em oposição à determinação e à unidade.

O inconsciente, portanto, com o qual sua poesia procura se religar, não é uma unidade, mas uma multiplicidade a-centrada ou, para usar uma expressão de Deleuze e Guattari, um rizoma. Segundo esses filósofos, o rizoma não opera pela redução ao um, como seria uma árvore binária, mas sim pela adição infinita de mais um, num processo que impede a organização em torno de um centro (ser) que comandaria a estrutura do inconsciente. 

Um procedimento muito comum na poesia de Dheyne de Souza é a anáfora, que reforça a constituição rizomática de sua poesia, em busca da apreensão do inconsciente também rizomático. A tendência anafórica à repetição de termos, inícios de frases e mesmo a simples enumeração de imagens é tão recorrente em sua obra que pode-se dizer que faz parte de seu estilo, de sua voz poética: 

memória

memória, essa lâmina que não vem só com corte mas o cheiro 
                     [dos móveis o vapor do olhar a temperatura do dolo
as horas em torno

memória, esse som
que escava
regurgita
apodrece
o urro mais largo
o vazio da prece

memória, essa língua dentada
esse punho tombado
essa voz sem assento

memória
esse eco sozinho
esse tempo sombrio

a saudade de cada

memória,
esse espólio de guerra
(p. 77)
 
O poema começa com uma enumeração de cinco atributos da memória/lâmina (corte, cheiro dos móveis, vapor do olhar, temperatura do dolo, horas em torno) que evocam os afetos, o espaço e tempo que “vêm junto” com uma lembrança não referida a uma pessoa ou circunstância, nem situada cronologicamente. Essa indeterminação pode indicar que o poema se refere a uma memória entre outras ou à memória em geral, tornando-se uma espécie de poesia filosófica. 

O poema se constrói pela técnica da anáfora, com a repetição da palavra memória (cinco vezes) e do demonstrativo esse/a (oito vezes), além da segunda estrofe continuar o procedimento enumerativo dos dois versos iniciais. A enumeração e a anáfora tem, ambos, o efeito da acumulação dos atributos da memória, que por sua vez, se exprimem como uma sequência de imagens, muitas delas forjadas com metáforas violentas e inventivas que, como vimos, é uma característica da autora. É difícil não se surpreender com imagens como “vapor do olhar”, “temperatura do dolo”, “língua dentada”, “punho tombado”, “voz sem assento”.

Essas imagens surreais (ou simbolistas) remetem ao inconsciente. Portanto, uma leitura que se pode fazer deste poema é que se trata de uma tentativa de exprimir uma memória ou a memória em geral com um mergulho no inconsciente. A sequência de imagens inusitadas quer iluminar com a linguagem as formas e movimentos da memória nas zonas de sombras da inconsciência. Para ‘ver’ os abismos da mente, esta ‘luz da linguagem’ precisa ser a língua do sonho e do delírio, própria das metáforas violentas e imagens surreais.

E o recurso à anáfora e enumeração revela uma característica importante desse poema, mas também da obra da poeta. Ao recorrer a acumulação de imagens, a memória e o inconsciente não são ‘investigados’ ou ‘explorados’ de modo a se chegar a sua ‘essência’ ou ‘ser’. Pelo contrário, o que o texto faz é evitar a essência ou princípio geral, sempre acrescentando um atributo (imagem) a mais da memória que, antes de ser definida ou representada, é explorada por uma sucessão de imagens que a percorrem desde o inconsciente. 

Inconsciente que, menos que um teatro ou ser representado, remete a uma fábrica em produção, para usar uma outra imagem cara a Deleuze e Guattari. O que o poema faz, então, é se tornar também produtivo, uma fábrica de imagens que ‘funciona’ a partir e ao lado do inconsciente e da memória, estabelecendo com ambos uma relação de reciprocidade. A partir da ‘inspiração’ da memória (e do inconsciente) como rizoma, o poema se torna ele mesmo um rizoma que persegue, interage e apresenta (mais que representa) a sua temática. 

A sucessão de imagens do inconsciente, proporcionada pela anáfora e enumeração faz com que a poesia de Dheyne de Souza tenda à multiplicidade, irredutível a centros e unidades. Ao proceder assim, a linguagem poética, o real e a relação entre ambos se transforma. A poesia se torna ela mesma um rizoma, assim como a realidade, e a relação entre eles deixa de ser a representação e passa a ser uma interação entre duas cadeias de multiplicidades, uma poética e outra cultural (real).

Este procedimento rizomático da poesia da autora têm algumas consequências. Uma delas é a impossibilidade de delimitação clara entre sujeito e objeto, dentro e fora. Mais acima, afirmamos que Dheyne de Souza é uma poeta intimista, e que sua poesia tende a mergulhar nos abismos do inconsciente. Mas este, ao ser explorado como rizoma, dificilmente pode ser considerado um ‘interior psíquico’ do sujeito, em oposição ao qual a sociedade e suas relações seriam um ‘fora social’. 

Embora sua poesia remeta aos mergulhos no inconsciente, sua estética da multiplicidade torna problemático definir a autora como poeta da subjetividade, por exemplo, pois quando achamos que estamos dentro do sujeito, já somos remetidos ao fora do inconsciente social.

Mesmo sua poesia amorosa ou erótica, pródiga em imagens da fusão e da indeterminação entre os corpos e subjetividades, menos que evocar a unidade da união amorosa, insiste na exploração da multiplicidade. Ou melhor, trata-se de uma fusão de multiplicidades, num encontro rizomático que envolve os dois corpos e sua situação existencial no mundo. 
 
Há sempre uma variedade de mundos, uma acumulação de imagens e cenas mundanas a se suceder na lírica amorosa da autora, transformando a união amorosa numa colisão de multiplicidades, como no choque entre duas galáxias que, ao invés de reduzir o duplo ao um, potencializa (para o bem e para o mal, o prazer e a dor, a alegria e a angústia) a multiplicidade de ambos os corpos, inseridos na multiplicidade ainda mais ampla do mundo.

Uma poeta que precisa ser lida

Nos dias de hoje, quase não se lê literatura, menos ainda poesia. E ainda menos uma poeta como Dheyne de Souza, autora introspectiva, pouco afeita à vida literária e seus círculos de autopromoção. Além dessas dificuldades externas ao texto, sua poesia, ao mesmo tempo experimental e densa de sentido, pode parecer difícil ao leitor desavisado. Mas, na verdade, sua escrita não é difícil nem hermética e seu experimentalismo não visa a novidade formal em si mesma. 

A convivência com sua poesia nos descortina um universo poético em que o aparente hermetismo se revela como construções de percepções alternativas do mundo, tão belas quanto ricas. E seu experimentalismo poético não são “firulas formais” que se esgotam em si mesmas, mas procedimentos de linguagem necessários à expressão desta outra percepção de mundo. Enfim, depois que conseguimos abrir uma porta de entrada para esse novo mundo poético-perceptivo da autora, sua poesia se torna comunicativa, fluente e prazerosa, mesmo em seus (muitos) momentos de angústia.

Haveria mais a dizer sobre lâminas, como a inflexão que Dheyne de Souza faz à crítica social, que não estava presente, pelo menos de forma explícita, em seus trabalhos anteriores; e sobre seus poemas em prosa muito peculiares e originais.  

Mas espero ter aberto ao leitor algumas entradas para a sua poesia que, em minha opinião, tem muito a nos dizer. Sobre nós e nosso tempo.

28 setembro, 2020

Em defesa da antipolítica

Não é só o Brasil, é o mundo que está numa enrascada. Nem a política econômica keynesiana, nem a neoliberal e nem a combinação de ambas, como o PT tentou aqui com seu social-liberalismo (e Blair já havia tentado na Inglaterra com a terceira via) funcionaram para diminuir as desigualdades e retomar o crescimento vigoroso do capitalismo, sem o qual se torna impossível uma política de distribuição de renda de longo prazo.

Depois dos anos dourados do Pós-Guerra,o capitalismo entrou em decadência nos anos 1980, com a era neoliberal tentando recuperar a lucratividade em queda. E parece que o sistema entrou definitivamente na era do colapso a partir da crise de 2008, abrandada com injeções maciças de capital promovidas pelos Bancos Centrais do mundo que, longe de resolvê-la, apenas empurraram a bolha financeira com a barriga.

A grande esperança do mundo capitalista repousa na China (e seus parceiros orientais), que pode assumir a posição de império e, quem sabe, relançar o capitalismo numa nova era de crescimento. O Ocidente branco de olhos azuis certamente ficaria com seu orgulho ferido ao ser superado pelos amarelos de olhos puxados, mas engoliria seu orgulho e racismo e se sentiria aliviado e agradecido aos chineses por salvarem o capitalismo mundial e sua cultura pós-moderna.

Mas talvez isso não passe de esperança vã. Veremos se a China conseguirá ser a locomotiva de um mundo em que a taxa de lucro (o verdadeiro motor do capitalismo) não para de cair. Nós, ocidentais, olhamos para os orientais com um misto de fascínio, inveja e medo. Sua sabedoria e disciplina milenar os faz parecerem invencíveis diante dos desafios do capitalismo, mas também invencíveis para nós. A paranoia do vírus chinês é apenas uma atualização tosca que o neofascismo faz do misto de medo e admiração que nutrimos por eles.

Em todo caso, ver os orientais como infalíveis, é mais uma mistificação de um Ocidente amedrontado. O Japão, por exemplo, estagnou com toda a sua disciplina guerreira taoísta-budista e dificilmente a milenar obstinação confuncionista dos chineses vencerá a queda da taxa de lucro por mais que seus trabalhadores se sacrifiquem à superexploração do trabalho em graus cada vez mais desumanos. Mesmo porque o grande capital industrial sempre atinge uma fase em que é mais vantajoso substituir humanos por automação - e esse momento está chegando na China, cada vez mais automatizada. O problema é que essa vantagem para o industrial particular se transforma numa desvantagem para a economia em geral, pois acelera a queda da taxa de lucro, sem falar que provoca desemprego estrutural.

Então, é mais provável que nossa esperança (e medo) na invencibilidade oriental dos chineses seja frustrada, como os japoneses nos frustram atualmente. Não há cultura milenar que resista às demolições da dinâmica capitalista, na qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”, exceto o capital, é claro.

Desânimo, medo, raiva e antipolítica

O resultado “psíquico” de décadas de decadência (1980-2008), seguidas da última década de colapso (2010), é uma descrença geral com o mundo pós-moderno, sua política e suas instituições democráticas. As pessoas estão desanimadas, pois sabem que elas e seus descendentes terão uma vida cada vez mais dura e próxima da pobreza. A ascenção à classe média se torna uma miragem para poucos. Quem já “fez o pé de meia” luta para não cair e teme pelos filhos, mesmo que estes tenham uma boa formação.

Eu insisto na perspectiva desanimada do “homem médio” porque ela é generalizada, não apenas no país, mas no mundo. Sugiro, inclusive, que cada um faça sua “pesquisa qualitativa” de verificação do desânimo. Converse com pessoas aleatoriamente, de direita ou esquerda, bolsonarista ou não, evangélico ou católico, classe média ou pobre. Não fale de política imediatamente nem tente um confronto de posições. Pergunte sobre a vida, o ganha pão, os negócios, a carestia, o emprego...

As primeiras respostas serão padronizadas, recorrendo ao mérito pessoal, ao valor dos estudos e do esforço, e à dignidade do trabalho, não raro acompanhadas de um otimismo de quem será premiado por suas virtudes. Mas quando você começa a perguntar mais detidamente sobre o mercado de trabalho ou os negócios, sobre o estado e os serviços públicos, sobre as coisas básicas da vida, como alimentação, moradia, transporte, educação etc, o quadro se torna sombrio e as perspectivas se afunilam num abismo de desencanto que beira o desespero.

Aí você perceberá que no fundo (no inconsciente, mas já quase emergindo para a consciência) as pessoas estão sem esperança com nossa sociedade, não veem futuro no mundo atual, estão com medo, se sentindo impotentes e raivosas. E a resultante disso tudo é uma profunda aversão à política, à democracia e às instituições liberais: eleições, poderes, partidos, sindicatos, estado de direito

O homem médio desconfia que o jogo democrático e o estado de direito, no fim das contas, apenas beneficiam os ricos e o grande capital, que o voto é inútil, que direita e esquerda são dois lados da mesma moeda e que o povo é apenas um espectador impotente no grande circo da democracia liberal - e também nos circos políticos dos regimes autoritários, que não escapam do desencanto com a política.

Ao se negar a política há que se negar o capitalismo

E como dizer que o homem médio está errado a respeito disso? O diagnóstico a que o povo está chegando em relação à democracia é o mesmo de Marx: apesar de sua máscara popular, o estado e a democracia servem apenas aos ricos, ao 1% e seus capatazes de classe média, muitos deles encastelados no estado: juízes, burocratas e políticos. Principalmente estes que, no fim das contas parecem ‘decidir’ os rumos do aparato estatal, e sempre contra os pequenos e a favor dos grandes, levando, não raro, uma pequena (mas escandalosa) parte do butim.

Na verdade, corrigiria Marx, a democracia e os políticos não servem aos ricos e sim ao capital, essa riqueza abstrata da qual o 1% é apenas seu representante. Essa diferença é muito importante e é isso que o “homem médio” não consegue ver, não por insuficiência intelectual, mas por conta do que eu chamaria de bloqueio psico-cultural.

O homem médio pensa que a sociedade capitalista está funcionando de forma anormal ao promover a concentração de riqueza e abandonar o povo à própria sorte. Ou, dito de outra forma, pensa que a sociedade foi corrompida por um ou vários grupos sociais poderosos e inescrupulosos, tais como judeus, petistas, ativistas, grandes empresários, globalistas, comunistas, banqueiros, políticos etc.

A verdade que o homem médio não consegue ver é que a concentração de riqueza, renda e poder nas mãos de poucos é o normal sistêmico do capitalismo e todo o seu aparato institucional (estado, democracia, partidos, leis, política etc) só tem razão de ser para favorecer esta concentração ou, no máximo, proporcionar emprego e distribuir alguma renda para o povo, a fim de prevenir o caos social.

O que conhecemos como política, com seus conteúdos e formas atuais, nasceu com a modernidade pré-capitalista, com os burgos e as cidades comerciais italianas ainda na Idade Média. Maquiavel foi talvez o seu primeiro teórico. Na verdade, até a consolidação do capitalismo, com as revoluções Industrial e Francesa, o que se tinha ainda era uma proto-política. A política como a conhecemos, fundada em instituições liberais e, depois, na democracia liberal, é recente e remonta ao fim do século XVIII - tem a idade do capitalismo e é uma instituição fundamental sua. Por isso, se rebelar contra a política implica em negar automaticamente o capitalismo, mesmo que de forma inconsciente.

A antipolítica que não é anticapitalismo se torna fascismo

Do desânimo geral para a revolta antipolítica é um pulo. O problema é que o homem médio não consegue ser coerente na sua lógica negativa. A negação da política, para ser consequente e racional, deve implicar um passo além e resultar na negação consciente do capitalismo como um todo sistêmico, para além do combate a certos grupos sociais (realmente ou imaginariamente) privilegiados.               

A política liberal e suas instituições democráticas são umbilicalmente ligadas ao capitalismo, são o ‘estado de arte’ de seu sistema de poder e provavelmente o desenvolvimento mais refinado e simbiótico do capital com a coletividade humana moderna. Foi sob a democracia do chamado Primeiro Mundo (EUA, Europa e Japão) que o capital alcançou, no Pós-Guerra, um desenvolvimento jamais visto até então: na sua técnica e ciência sem paralelos na história humana; no desenvolvimento pleno da subjetividade do homo economicus com a emergência do indivíduo de “classe média”; na sua amplitude global ao absorver todas as culturas na modernidade capitalista; e em sua penetração em todas as esferas da vida (já na sua fase neoliberal).

A revolta contra a política e, em especial, contra a democracia, significa a negação do capitalismo, pois a política, como a concebemos, é um jogo de poder estritamente capitalista. A questão é que o homem médio não pode ver que política e capitalismo são duas faces da mesma moeda, pois ele quer permanecer fiel ao capitalismo e seus valores (como o trabalho abstrato, por exemplo), mesmo negando a política. Então, ele nega a política sem negar o sistema mercantil, seu fundamento econômico e cultural, o que é uma contradição.

O homem médio cai nessa contradição porque negar o capitalismo seria negar a si mesmo e seus valores, sua identidade como homem (pós)moderno. Isso exigiria uma espécie de revolução antropológica da sociedade e seus indivíduos, algo comparável a uma mudança massiva da religião e do sagrado de toda uma coletividade.

Então, ao negar a política e permanecer fiel ao capitalismo e sua visão de mundo, o homem médio precisa encontrar outro culpado, que não o capital, pela corrupção de seu mundo. O alvo imediato são os políticos e as instituições democráticas, como o Congresso por exemplo. Mas pode se estender a outros grupos, como os judeus, os homossexuais, os comunistas, os empresários etc. A ideia é que, limpando a sociedade dos que a corromperam, ela se revitalizará em seu aspecto originário, saudável e natural, que seria, obviamente, de feição capitalista.

Mas inconscientemente o homem médio sabe (e não sabe ou quase não sabe, ou intui, pois o saber é inconsciente) que sua luta contra a política é também contra o capitalismo, que sua revolta é contra sua própria cultura que, para ele, constitui todo o mundo possível e o sustentáculo de sua identidade como homem. Então, a destruição da política implica na destruição do seu próprio mundo, primeiro, na forma de uma guerra contra o outro que, fatalmente se completa num processo de autodestruição coletivo. O fascismo é essa revolta inconsciente contra o capital que acaba por se tornar uma revolta contra si mesmo e sua coletividade. Nesse processo, os males do capital, que é um ‘ser’ amoral e impessoal, são moralizados e personalizados, ou seja, projetados num outro supostamente imoral/corrupto.

A destruição do mundo e, por fim, a autodestruição promovida pelo fascismo, embora seja absolutamente irracional do ponto de vista da vida humana, é uma consequência lógica da contradição inicial de se negar a política sem negar o capitalismo. Como política e capitalismo são inseparáveis, essa operação é impossível. Então passa-se a negar o capitalismo de forma inconsciente, com a potência destrutiva do que Freud chamara de id, cuja recusa ao prazer é respondida com violência e morte. No caso, a violência contra a civilização capitalista que é, no fim das contas, o sustentáculo identitário dos grupos e indivíduos fascistas ou não, se torna auto-violência contra sua própria sociedade - suicídio coletivo.

Todos os fascismos exacerbam fanaticamente os valores capitalistas (propriedade privada, trabalho, lucro etc), mas o resultado prático dos movimentos e governos fascistas é a destruição das bases de sustentação do capitalismo, a começar pelo estado burguês e suas instituições. O fascismo promove uma revolução inconsciente contra o capitalismo e seu desenvolvimento leva efetivamente a sua abolição. O problema é que ele não cessa a destruição, pois não pode conceber nem engendrar nenhum outro sistema social que não o capitalismo. O resultado é a guerra sem fim e uma revolução apocalíptica até que não reste nada do mundo, literalmente - ainda mais numa época em que dispomos de armas nucleares.

Para o fascista, o único mundo concebível é o capitalismo. O desejo inconsciente de destruição do capitalismo, então, se torna sinônimo de vontade de destruição do mundo. A única solução, portanto, é o apocalipse. 

As alternativas à antipolítica fascista

As alternativas à antipolítica, concebidas no interior do sistema capitalista e que visam salvar a democracia e o capitalismo de suas próprias contradições, estão fadadas ao fracasso por conta do colapso sistêmico do capital, cujas expressões mais evidentes são o desemprego estrutural e a queda tendencial da taxa de lucro, ambos provocados pela automação crescente da produção de mercadorias - uma tendência incontornável do capitalismo prevista por Marx e confirmada pela empiria.

Nem as políticas econômicas da direita neoliberal nem as da esquerda neokeynesiana podem ir muito além de administrar, e cada vez mais precariamente, o colapso do capitalismo, com o porrete no primeiro caso e programas sociais no segundo. Esquerda e direita se tornaram bombeiros das crises. Seu receituário político e econômico está esgotado e serve apenas para apagar os incêndios cada vez maiores das revoltas sociais que se alastram pelo mundo.

A política, portanto, não serve para nada mais. Todas as suas alternativas, à direita ou à esquerda, terceiras vias, centros etc. estão condenadas ao fracasso. A antipolítica do homem médio está coberta de razão (a voz do povo é a voz de Deus). A questão é que ao negar a política e não negar conscientemente o capitalismo, o homem médio cai inevitavelmente numa concepção moralista da sociedade que vê a corrupção se alastrando no mundo por força de inimigos imaginários. Por isso o povo deve eleger e apoiar um violento tirano fascista, que irá limpar o mundo do mal e dos malvados, e restaurar a ordem adâmica anterior (de boas intenções o inferno está cheio).

A única opção sensata é negar a política, como os fascistas. Nisto eles estão certos. A democracia liberal, que nunca fez jus ao termo grego ‘demo’ (povo), não serve mais. Mas para não cair no apocalipse fascista (sair da panela e cair o fogo) é preciso negar conscientemente o capitalismo, que é a base de sustentação da política, e começar a conceber e construir um outro sistema social, um outro modo de vida (comunitário, coletivistas, comunista), mais racional, distributivo e menos destrutivo, no qual as categorias capital, democracia, política, estado etc. já não fariam mais sentido. E no qual o fascismo e seu apocalipse também já não seriam desejáveis, nem mesmo inconscientemente.

Na quadra atual de colapso do capitalismo, a antipolítica é uma virtude. Mas para não degenerar no inferno fascista, ela precisa ser racional e se desdobrar, de forma consciente, num segundo momento de negação: a antipolítica só nos conduz à emancipação se for também um anticapitalismo.

08 setembro, 2020

Áureo alvorecer, por Franco Átila

você destruiu todos os sentidos pessoa
com seus labirintos infindáveis sem novelos sem meadas
mil minotauros se multiplicando derrubando a unidade do reino de si mesmo
quem sou eu desconhecido de mim mesmo
você derrubou as metafísicas matou os deuses nietzsche
há apenas a vontade de poder aquém de nossa vontade
nem mesmo o deus homem restou
a terra não está mais imóvel no centro do mundo
o homem não é mais o filho de deus seduzido pela serpente
o anticristo está a solta
as estrelas se movem os seres estão no continuum das transformações químicas
átomos se desintegrando e recompondo-se ao acaso das eras
genes se lançando na loteria das adaptações
como um vírus uma bactéria um mamífero um primata que se vê a si em abismo
em meio ao fluxo bioquímico em meio a deuses e mitos
caminhando rumo ao nada em meio ao bando à tribo à pólis
vocês que destruíram tanto     pessoa nietzsche galileu
em nome da dúvida eterna da ciência do niilismo
em nome dos abismos do ser     onde o ser não é
em nome da liberdade do homo sapiens transmutado em super homem
a utopia dos homens senhores de si perdidos de si
entregues a paixões incontroláveis que os lançam como tomates
esborrachados no muro sem sentido da vida que finda
na morte sem nenhum além
a coragem de caminhar na beira do abismo na vida sem crer
em aléns
ou aquéns
a coragem de ser indiferente a qualquer deus a coragem de matar
o deus a metafísica o todo o uno o eterno o sentido
os dadas os surrealistas os cubistas os concretistas
a morte do metro e da grandiloquência
o advento do coloquial e do discursivo na poesia
a quebra do discurso da fábula o fluxo de consciência
a ciência como abertura à refutação a incerteza é a regra
a virtude é a dúvida o macho adulto branco não é mais o centro
não há mais centros hierarquias estruturas derridas e deleuzes
adeus todos os deuses
mil derrubadas por segundo

as quebras
os desmanches
os ídolos derrubados
as críticas mais ferinas e corrosivas
tudo
para emergir do caos civilizacional
o Deus que de fato existe
independente de qualquer crença
Pai único e verdadeiro
a pairar sobre o asfalto e o cimento
o soberano cego frio e implacável
o Deus que nos ignora a nós
que O adoramos
o indestrutível porque incorpóreo
o inapreensível porque infinito
o incognoscível porque invisível
aquele por quem mudamos quebramos e destruímos
a nós e ao mundo
para que Ele possa permanecer uno e eterno consigo mesmo
Motor Imóvel que nos mói   (homens (pós)modernos   ápices da civilização)
na sua maquinaria implacável
o Ser em sua perfeição
Mamon



05 setembro, 2020

Vômito virulento

os corpos nos caixões
empilhados
na cova comum

os corpos nos cubículos
empilhados
nos prédios da cidade

os corpos nas casas
entre muros e concertinas
nas ruas da classe C

os corpos nos barracos
apinhados
nos morros e quebradas

os corpos espremidos
nos ônibus lotados
nas vias congestionadas
de carros gente
e vírus

o suor dos corpos
acumulado nas mercadorias
limpas
do fedor dos corpos
do cansaço e das dores dos corpos
das horas investidas
(perdidas)
nas rodas dentadas da vida

a vida inteira
transmutada
numa profusão de rodas dentadas desencarnadas
dos corpos
a vida sublimada em massas infinitas
de cifras

as almas nos cofres
empilhadas
no PIB mundial

a morte intubada
na companhia de plásticos
e eletrônica
no caixão lacrado
corpo
ao pó voltarás
sem nenhum adeus

foi Deus
foi Deus
foi Deus que quis
e daí?

um vírus não tem alma
e se apossa do corpo
para se alastrar neste corpo
e para outros corpos
um vírus não sabe de si
nem da dor do corpo que ele toma
ou da dor dos que o amam
um vírus não quer a dor
dos corpos um vírus quer
apenas virar mais vírus
(às custas das vísceras do corpo)
até o infinito da virulência

e daí? e daí?

um cifrão não tem coração
e se apossa da alma
para se alastrar nesta alma
e para as outras almas
um cifrão não sabe de si
nem da dor da alma que ele toma
ou da dor das que a amam
um cifrão não quer a dor
das almas um cifrão quer
apenas ser mais cifrões
(às custas das vísceras da alma)
até o infinito das cifras

e daí? e daí?

uma sede de morte não tem compaixão
e se apossa do povo
para se alastrar neste povo
e para os outros povos
a sede de morte mal sabe de si
ou da dor do povo possuído
ou da dor triste dos que lhe resistem
mas a sede fascista quer a dor
dos corpos e almas e quer
ser mais sofrimento e morte
(às custas das vísceras do povo)
até a devastação da vida

e daí? e daí?

eu não sou coveiro
apenas encomendo o presunto
às milícias virais e antecipo
o encontro das almas com Deus
por isso eu sou o Capitão
das hordas selvagens dos céus
e seus sacerdotes me abençoaram
e os pobres diabos velhos e doentes
(imprestáveis de cifrões)
que se vão não vão em vão
é higiene da vida
nessa lida dura e escassa
só fica o duro
da engrenagem e a graxa
e se descarta o bagaço
minha bíblia sagrada
é rato na vagina
e choque no pau
de arara e daí?
sinto muito!

os caixões empilhados
na cova comum

as engrenagens das ruas
não podem parar

a sede de combustível dos motores
a sede de amor e sangue dos corações
a sede de corpos e almas da engrenagem abstrata que engole suores
e defeca cifrões
de seu corporodadentada de circulações
sede de sangue e suor sede
de balcões e vitrines do povo
vitrificado na fúria das máquinas
desejantes de cifras suor e sangue

todo mundo quer funcionar!
um vírus bate suas bioengrenagens microscópicas
com as rodas dentadas dos cifrões
disputando o mercado carnespiritual dos corpos
e a sede de morte ri
um riso fascista
e infiltra sua sombra podre nas frinchas da carne da
alma esfarrapada de combates

três pragas se digladiando no mesmo palco-
corpoalma no mesmo parco corpo no mesmo
povo se dilacerando desde as entranhas
da carnealma se ex-
plodindo desde os abismos
infernais do corpo e do povo
corpo e povo    duas casas
possuídas pela sedentíssima trindade:
cifras, vírus e sede de morte

os suores
higienizados
nos cálculos dos ganhos

as novas covas
abertas em série
como carros
num estacionamento
números
num balancete

as novas mortes
em séries ex-
ponenciais
linhas
num gráfico de pixels

os caixões
empilhados
na cova
comum

Il Duce Der Führer O Capitão
as sombras podres da alma
metástases por todo o espírito
do tempo do povo infernal
o gozo da tortura do domínio
a humilhação o assassínio
dos fracos em nome d
O Cristo

o abismo do abismo do abismo
ódio e rancor ódio
e rancor ódio
e rancor

vamos orar irmãos
para Deus iluminar
a alma dos nossos governantes
com sua luz compassiva
de ódio e rancor

os doentes
e mortos
amontoados
na enfermaria

os caixões
empilhados
na cova comum
foi Deus que quis
vida que segue
nada
pode parar
as rodas dentadas da morte
engrenadas
na maquinaria dos cifrões
e daí? e daí? e daí?

a oficina sagrada de Deus
e suas engrenagens de milagres
o milagre da multiplicação das cifras
o milagre da proliferação dos pobres
o milagre da disseminação do vírus
o milagre da virulência do desejo de
morte que se alastra nas massas ressentidas do Messias

as almas gangrenadas
as almas purulentas
as almas virulentas
untando as frias engrenagens
da maquinaria dos cifrões
com o fogo ardente do cristofascita
ódio e rancor

o ar pútrido de vírus
o vento gelado de cifras
o fogo de ódio e rancor
                                        soprados
num só bafor
pelo Deus-
Desejo-de-Morte
no pasto
seco da alma
do gado em agonia
              em carne viva
e alegre
     de sua sina suicida

o desconhecido da noite
caminha
entre a solidão e o abismo
uma pátria no punhal do ódio
     os caixões empilhados na cova comum
as sombras avançam no poço de lama
céu de sal chuva de punhais
nos corações coroados de alarmes
    os pulmões inflamados nos leitos lotados
as almas se aninham em grades
mentes-concertinas no concerto do medo
    as portas fechadas dos hospitais
o desconcerto dos céus
cavalga nuvens de mentiras
o bafo das bocas de fé
    a falta de ar até o último suspiro
a multidão de mendigos
do outro lado da rua
o enxame de zumbis infectados
da fé dos homens de bem
fecundados do espírito santo
    um corpo um número a mais

os motoboys e ubers atravessam o asfalto dos confins das cidades da patriamada entre as engrenagens de aço dos cifrões moendo almas e pulmões o deus infecta as vísceras do espírito de ódio e rancor um pastor vomita a sede de morte e cifras na boca abençoada de sombras dos fiéis nas engrenagens do morticínio moendo corpos e suores cagando um fluxo contínuo de cifrões ao infinito abstrato das cifras e o suor e o sangue e os corpos e os caixões caindo na cova comum das almas supérfluas flutuando entre o céu e os sete círculos emaranhados do inferno de ruas muros edifícios fios circuitos neurônios motores e chips

a roleta russa de vírus o funil das cifras a vida e a fortuna por um golpe de sorte um fio de acaso mas no coração de mãe do desejo-de-morte sempre cabe mais um milhares milhões de corpos fascistas contagiados da fúria das sombras da putrefação da alma em gozo do espírito das massas ejaculando a gosmavômitomerdaurinaepus da pestilência de ódio e rancor em nome de cristo da pureza do mundo da luta do bem contra o mal da punição do imoral se levanta um líder um guia um capitão-messias e sua boca-de-ânus nos convocando em massa nos transmutando em massa a chafurdar na sua divina massa de merda abençoada por santos sacerdotes missionários auxiliando o messias a tocar o berrante do apocalipse o rebanho ao abismo no pastoreio da morte

o ovo da serpente está sempre se gestando no útero da maquinaria abstrata das cifras na moenda de suores e sonhos nas rodas dentadas da alma transmutada em cálculos reluzentes o ovo do desejo-de-morte está sempre no útero de mamon o ovo de ódio e rancor o mesmo ovo fascista de sempre mais que estar o ovo é o ovo ser o gérmen do novo deus da morte uma engrenagem de trevas se fabricando a si mesma por entre as engrenagens das cifras uma engrenagem podre oculta na máquina reluzente das fortunas um monstro pronto para se parir-explodir de dentro do corpodentado das cifras um filho bastardo do cristomamon com a serpente de ódio e rancor

tudo começa num rio subterrâneo de merda num urro de raiva travestido num canto de amor a pedra fundamental a peça primordial da máquina de assassínio em massa é um canto de amor evocando a pureza imaculada das eras o paraíso perdido ofendido pela serpente infernal do pecado de morte morte aos pecadores morte às bichas morte aos macumbeiros morte aos comunistas morte aos políticos morte aos ativistas fogo na carne dos imorais fogo na face corrupta da terra em nome da inocência adâmica do mundo das almas alvas e viris dos filhos de deus do homem trabalhador puro e honesto pai de família das pessoas de bem amém




26 julho, 2020

Domínio abstrato do capital, o ponto cego do capitalismo

Sem dúvida, quando um povo entra em colapso; quando sente esvair-se para sempre a fé no futuro, a sua esperança na liberdade; quando a submissão se lhe afigura de primeira utilidade e as virtudes dos servos se insinuam na consciência como condições de sobrevivência, então há também que mudar o seu Deus.
(Nietzsche, O Anticristo)

O capitalismo caminha para o colapso inevitável

O capitalismo é uma totalidade direcional, uma estrutura que instaura uma evolução determinista em meio ao real indeterminado. Por isso, é impossível “moderar os mercados”, a não ser provisoriamente, como foi o caso dos 30 anos dourados do Primeiro Mundo do Pós-Guerra e seu estado do bem-estar social.

Por conta de sua lógica determinista, as leis tendenciais do capitalismo são inevitáveis e irreversíveis, como a tendência da substituição do trabalho humano pela automação, que baixa os custo e, em consequência, provoca a queda da taxa de lucro por unidade de mercadoria. Daí a necessidade de se compensar essa queda produzindo um volume sempre maior de mercadorias, conjugada com uma maior exploração do trabalho. Isso, por sua vez, deságua em dois problemas: a devastação do meio ambiente e as crises de superprodução, agravadas pelo desemprego estrutural e o baixo rendimento dos trabalhadores superexplorados, que comprimem o mercado de consumo.

A saída encontrada para esta enrascada produtiva foi fabricar, a partir da década de 1980, montanhas de capital fictício, alavancando a economia por meio de dívidas e bolhas. Ou seja, a financeirização não provocou a crise atual do capitalismo, mas foi uma tentativa de administrá-la, relativamente bem sucedida até 2008, quando ela se explicita como uma crise existencial do capital e se espraia das finanças para a economia ‘real’ e daí para as esferas política, moral e subjetiva da sociedade capitalista.

Diante desse quadro de crise estrutural e incontornável do capital, não será o retorno a um Keynes renovado, invenções progressistas como a Moderna Teoria da Moeda (MMT), nem a busca da restauração do estado do bem-estar que vão solucionar o problema. O capitalismo entrou em colapso definitivamente, pois a tendência à automação e superexploração do trabalho se aceleram e as taxas de lucro seguem diminuindo para próximo de zero em todos os setores. Não há capitalismo sem lucro e, por isso, ele vai colapsar como sistema, provavelmente de forma lenta, em décadas.

A incapacidade dos sujeitos perceberem a dominação indireta do capital

E as pessoas, no fundo (no inconsciente), sabem que sua sociedade caminha para o colapso. Do ponto de vista psíquico, o século XXI é marcado pela desilusão, cansaço e falta de perspectivas em relação ao futuro. Mesmo nos países centrais, as pessoas sabem que a tendência é a queda do padrão de vida, os filhos ganharem menos que os pais, o estado oferecer menos proteção social, diminuírem os bons empregos e cada um ter que se virar como pode no mercado de trabalho massivamente precarizado, uberizado e bazarizado. Esta desesperança difusa desperta nos indivíduos, como defesa psíquica, seus sentimentos mais sombrios, como a angústia, a ansiedade, o medo, o ressentimento e o ódio.

A causa dessa crise existencial do capitalismo são suas pŕoprias contradições sistêmicas e a esperança de Marx e dos marxistas era que os trabalhadores e marginalizados, que são a imensa maioria da população, tomasse consciência dessa situação e promovesse a revolução comunista, que iria instaurar uma comunidade concreta, não hierárquica e autogerida, substituindo a razão instrumental pela razão humanitária, que organizaria uma produção material e simbólica voltada para as necessidades humanas, e não para a reprodução do capital.

O que eles não previram é que a quase totalidade das pessoas, exploradas (perdedores) ou exploradoras (ganhadores),  poderiam não ter condições de tomar consciência de que a verdadeira causa da crise é o sistema capitalista, com suas contradições internas derivadas da substituição de trabalho por automação e sua socialização abstrata, concorrencial e individualista.

As pessoas, em geral não compreendem que o sistema mercantil, sua lógica da mercadoria e sua forma sujeito impessoal, vazia e abstrata são a causa de grande parte de seu sofrimento. Esta incapacidade de crítica radical, de ‘ver’ o capital como a raiz da crise existencial de nossa sociedade, decorre da natureza complexa e abstrata da dominação no capitalismo, que não é exercida de forma direta por um grupo social sobre o outro. A dominação, ao contrário, é indireta, exercida por meio da lógica da mercadoria, a lei do valor-trabalho que tem a força quase objetiva de uma “lei natural” (uma segunda natureza) embora seja uma construção social.

As pessoas, em geral, tendem a atribuir a causa dos problemas sociais a indivíduos ou grupos sociais dominantes ou supostamente dominantes. E, de fato, durante toda a história imperial da humanidade, podia-se atribuir o sofrimento do povo a relações concretas entre grupos sociais dominantes e dominados. No capitalismo, porém, a dominação é indireta, pois é exercida pelo capital, um ‘ser’ inumano, cego, impessoal e abstrato. Se na idade média fazia sentido sentir raiva e exigir a expiação moral do clero e da nobreza, que exploravam diretamente o povo, tais reações se tornam inócuas atualmente, pois o capital não é um grupo social (embora as elites o representem) nem uma pessoa, não tem rosto nem moralidade, sentimentos ou caprichos, e é insensível aos afetos humanos.

A primeira dificuldade para as pessoas ‘verem’ a dominação do capital é, portanto, a forma inusitada e inédita (na história humana) em que ela se manifesta, como dominação indireta e abstrata exercida pelo capital/dinheiro, um meio criado pelos humanos que se autonomiza e se torna um fim em si mesmo. Numa reviravolta irônica, o dinheiro, criado pelas pessoas para servi-las, acaba por se servir delas para se multiplicar como mais dinheiro (lucro). Esse modo de dominação, impessoal, complexo, sutil e indireto, vai contra o senso comum das pessoas, que acabam não o compreendendo em sua intrincada totalidade.

A incapacidade dos sujeitos se perceberem como estruturados a partir do capital

Mas há um outro motivo para a dificuldade da tomada de consciência das pessoas em relação ao capital. Um motivo, ao mesmo tempo cultural (coletivo) e psíquico (individual), pouco explorado pelos marxistas em geral e é consequência do capitalismo não ser apenas um sistema econômico, embora se estruture de forma a reduzir a sociedade à economia, e o humano ao valor-trabalho e sua lógica. O capitalismo se constitui, na verdade, como um regime social que abrange todas as esferas da existência humana, inclusive a psíquica. Mais que um sistema econômico, e mais que um sistema social, o capitalismo é uma cultura, no sentido antropológico do termo, em que a esfera da economia (na forma de capital) se torna central e passa a regular as demais, inclusive a esfera subjetiva (psique) dos indivíduos.

Este arranjo em que o coletivo estrutura as individualidades (o homem) de uma cultura não é novidade para a antropologia ou a sociologia. Grande parte das “leis” e “formas” compartilhadas pelos indivíduos de um cultura são, em qualquer sociedade, construídas de forma tácita e coletiva; e permanecem inconscientes para os indivíduos, que costumam entender essas forças desconhecidas do mundo social como pertencentes ao território do sagrado e/ou da natureza, que lhes são impostas a partir de fora do mundo dos homens e sobre às quais sua vontade e ação, individual ou coletiva, têm alcance limitado.

Com o capitalismo não é diferente e para as pessoas, em geral, a centralidade do capital na estruturação da coletividade e da subjetividade foi construída de forma inconsciente e assim permanece, em grande medida. Na verdade, seu grau de inconsciência, se é que se possa falar assim, é até maior na modernidade do que nas culturas pré-capitalistas, uma vez que a principal dominação social no capitalismo é indireta, exercida pelo capital sobre as pessoas e não por um grupo social sobre outro.

A centralidade do capital (que muitos antropólogos chamariam de ‘fato social total’) se espraia por todas as esferas da vida, inclusive a vida íntima, estruturando, desde o cerne, a psique do indivíduo. Este, em geral, tem pouca consciência de que sua identidade como “homem moderno” é constituída, desde suas bases mais fundas, pelo capital. Ser um homem moderno é ser um homo economicus ― sujeito automático, capital subjetivado ― delimitado e regulado pelos atributos masculinos da racionalidade instrumental e da competitividade, abstraídos do homem concreto das sociedades patriarcais pŕe-capitalistas. Por isso o termo preciso e correto é ‘homem’ moderno (ou pós-moderno), mesmo quando se fala da mulher e sua incorporação (que se luta para ser) igualitária no mundo do trabalho e dos negócios da sociedade mercantil.(Cf. "O capital é masculino" in Gênero, política e sujeito no capitalismo).

A primazia da razão instrumental e da competitividade, abstraídas dos sujeitos concretos (uma mulher ou um negro podem ser racionais e competitivos) e que que reduz o humano a caracteres abstratos estritamente necessários à reprodução do capital é o ponto fulcral (o centro) a partir do qual é regida todo o resto da psique moderna. Esta redução da alma à racionalidade instrumental e à competitividade abstratas é a maneira como o capital estrutura a psique desde suas bases, de acordo com suas necessidades

Então, o maior empecilho para se criticar o capital  e suas categorias (trabalho, valor, mercadoria) como causa principal do mal estar moderno e pós-moderno vai além da dificuldade das pessoas em compreender a complexidade e o contra-senso de uma dominação abstrata e impessoal, sem poder culpar grupos sociais específicos. A dificuldade de crítica reside também, e principalmente, no fato de que o cerne da estrutura psíquica das pessoas é o capital, ou seja, a própria subjetividade é formada, desde a raiz, a partir do sujeito automático e seus imperativos abstratos de racionalidade abstrata e competitividade.

Ponto cego: a dificuldade de se criticar o que molda a própria crítica

É a partir do sujeito automático (capital) como base apriorística, como pré-formação naturalizada da psique que molda de antemão os modos de ver e ser do homem moderno, que este vai interpretar e criticar o mundo. É o capital, como centro estrutural ao mesmo tempo coletivo e individual, que pré-determina as subjetividades de modo a delimitar o que elas podem ver e criticar e, principalmente, o que não se pode ver: o próprio capital subjetivado como fonte das perspectivas modernas, como fôrma que pré-molda o homem desde a raiz mas cujo acesso a suas formas e conteúdos são proibidos, ou melhor esquecidos, mergulhados no inconsciente.

Este esquecimento das perspectivas e razões pré-formadas transforma a centralidade, subjetiva e social, do capital num ponto cego para o sujeito, cuja capacidade de compreender e criticar o mundo é moldada a priori a partir do próprio capital. Por outras palavras, a visão de mundo, valores, modo de ser, agir e sentir se desenvolvem no interior dos limites estruturais da forma sujeito, cujo centro (que tudo organiza e dá o sentido inicial e final aos movimentos da psique) é o sujeito automático/capital. Para o sujeito, criticar o capital e sua dominação abstrata significa, portanto, negar sua própria identidade de “homem moderno” e, ao mesmo tempo, renegar sua cultura e seu povo - a modernidade e sua civilização.

As categorias básicas do capital, como trabalho, valor e mercadoria, bem como os imperativos do sujeito automático instaurados a partir da razão instrumental e da competitividade se tornam tabus na sociedade mercantil. A crítica radical (da raiz, do núcleo causal) do capital não é proibida de forma explícita, mas é silenciada por um interdito ainda mais eficaz e poderoso que a proibição ao se tornar impensável e absurda para os sujeitos, destituída de qualquer bom senso e razoabilidade. Quem ousa chamar atenção para a historicidade e as contradições da forma sujeito abstrata, do trabalho, do valor e da mercadoria, criticando as bases apriorísticas do sujeito e da sociedade capitalistas é sumariamente ignorado como um delirante/utopista fora da realidade, não apenas pelas “pessoas comuns”, mas inclusive no meio intelectual e acadêmico, cujos limites permitidos para a contestação da modernidade liberal é o conservadorismo de direita, de um lado, e o progressismo de esquerda, de outro.

Um exemplo desta cegueira é a insistência dos economistas de diversos matizes ideológicos (inclusive os marxistas tradicionais) em confundir as atividades voltadas para satisfazer as necessidades humanas das sociedades pré-capitalistas com a categoria trabalho, uma invenção da modernidade capitalista. As pesquisas historiográficas e antropológicas mostram de forma recorrente a inviabilidade de se reunir as diversas atividades humanas dos povos pré-capitalistas e abstraí-las no conceito de trabalho, operação possível apenas na gramática estrutural da sociedade mercantil regida pela lei do valor-trabalho.

Decorre daí a impossibilidade das culturas pré-capitalistas terem uma economia tal como a entendemos, e muito menos serem regidas por ela. Mercados, estados, trocas, moedas, tudo isso existiu de fato nas sociedades imperiais e cidades-estado, mas seu significado e função eram completamente diferentes até o advento do capitalismo, que fez o mundo girar em torno dos imperativos do valor-trabalho, da mais-valia e da lucratividade, do dinheiro enfim. O que dizer então dos chamados povos primitivos, sem escrita, moeda ou estado, cuja organização e reprodução social apenas com muita imaginação podem ser interpretadas a partir das categorias e conceitos capitalistas como trabalho, mercado e economia?

Ao negar a historicidade das categorias e instituições da sociedadade capitalista,  como trabalho, mercado, economia, estado nacional, caipital/dinheiro e forma sujeito (que se consolidaram apenas em meados do século XVIII), os sábios enganam a si mesmos e à sociedade, afirmando que tais categorias são inevitáveis como forma de organização das sociedades humanas em geral. Mesmo nas sociedades primitiva os economistas enxengam um proto-mercado de escambo, teoria que tenta projetar a ordem capitalista no humano em geral e desmentida por várias pesquisas de campo antropológicas. Enxergar a historicidade do capitalismo e suas categorias é (auto)vedada à maioria dos intelectuais acadêmicos e midiáticos, pois vê-la implicaria em questionar as bases liberais (capitalistas) de seus próprio pensamento, constituídas a partir da tradição iluminista.

Apesar de tudo, a crítica radical é possível. E necessária

O capital e suas categorias, a forma sujeito e o sujeito automático são o tabu da sociedade capitalista. São o ponto cego do sujeito moderno e pós-moderno, a face de Deus que nem o homem comum nem o sábio podem olhar de frente, sob pena de enlouquecer. Os que se atrevem a olhar e tentar compreender a face do Ser/Capital e seu mundo/estrutura são tidos como utopistas fora da realidade ou críticos radicais guiados por falsas convicções, mesmo que sua argumentação seja racional e comprovada pelos fatos.

Este ponto cego do capitalismo, que é o próprio capital em sua essência imutável (pelo menos enquanto houver capitalismo) não deixa de gerar contradições no sistema capitalista. Como motor imóvel que movimenta a estrutura, o capital, para se reproduzir e permanecer idêntico a si mesmos (preservar-se como Ser), necessita acelerar a história e a promoção de rupturas técnicas, científicas, políticas, de valores morais, de mentalidades e da vida cotidiana. E como o capital é tempo de trabalho acumulado, ele necessita também servir-se do humano como instrumento para sua reprodução. Esta instrumentalização das pessoas, conjugada com um mundo voltado para o futuro, que nunca repousa e em estado acelerado de mudanças (a tradição da ruptura de Octavio Paz), provoca uma síndrome de Sísifo nos sujeitos, que passam a vida realizando um trabalho intenso e perpétuo sem sair do lugar, sem se realizarem como seres humanos, pois, no fim das contas, o trabalho humano serve à realização do capital.

A esta crise permanente dos sujeitos da sociedade mercantil se somam as crises periódicas da economia capitalista, que provocam carências materiais e explicitam o sofrimento psíquico das pessoas. É por estas frinchas abertas pelas contradições da subjetividade e da sociedade capitalistas, que surge a possibilidade de se ‘ver’ e compreender e, a partir daí, criticar o capital como núcleo comum da psique e da cultura modernas. Muitos artistas, com sua recusa em enquadrar sua atividade estética na categoria trabalho, já vislumbraram o capital e as perspectivas decorrentes da lógica da mercadoria como pontos cegos de nossa sociedade.

Da mesma forma, o Marx da crítica do valor-trabalho fundou toda uma tradição de desconfiança e abalo das estruturas culturais do capitalismo. Tradição que passa por vários marxismos não ortodoxos, como o da Escola de Frankfurt; por um certo pensamento ecológico, como o de André Gorz; por alguns filósofos pós-estruturalistas, como Deleuze e Foucault; e deságua na crítica radical (da raiz, do núcleo) de Moishe Postone e da Nova Crítica do Valor.

Agora que o capital parece se chocar com seus limites internos (desvalorização do valor) e externos (ecológicos) de reprodução, entrando numa fase de colapso, aumentando exponencialmente o sofrimento humano, torna-se mais necessário do que nunca a quebra do verdadeiro tabu do capitalismo, que é o questionamento do capital e sua lógica, em busca de uma outra racionalidade, realmente voltada para as necessidades humanas.

Até mesmo o homem comum, de forma inconsciente, já perde a fé no capital e é tomado pela revolta fascista e seu desejo de destruição sem fim. É preciso encontrar uma alternativa anticapitalista que não sejam o ódio e a irracionalidade suicidas do fascismo, trazendo o domínio abstrato do capital para a consciência e desafiando suas coerções e formas sociais à luz do dia. Está na hora de criticar e, depois, abolir o trabalho, a mercadoria, o dinheiro, lucro, o estado e a forma sujeito, para darem lugar a outras formas e relações sociais, sobre as quais se possa erguer uma sociedade fundada numa razão comunitária (ou comunista). Uma sociedade que satisfaça igualmente as necessidades materiais e simbólicas de todos sem solapar o suporte natural da vida.

É a hora da visão humana dar um salto evolutivo e superar seu ponto cego. A hora de ‘ver’ a face do Deus-Pai decadente e renegá-Lo.

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...