As teorias da conspiração e suas meias verdades

Os tempos sombrios em que vivemos é um terreno fértil para o florescimento das teorias da conspiração, desde as suas versões mais delirantes da extrema direita até as que se assentam em dados da realidade, que costumam ser desenvolvidas à esquerda, inclusive nos meios acadêmicos. 

O marxismo globalista, o vírus chinês, o comunismo de Soros e Gates, a aliança dos progressistas e ativistas com o diabo são exemplos dos delírios conspiratórios dos neofascistas e cristofascistas atuais que infelizmente ganham cada vez mais adeptos no Brasil e no mundo.

As teorias conspiratórias elaboradas pela esquerda são mais inteligentes e baseadas em dados da realidade, tratando, geralmente, do estado profundo (deep state) norte-americano e do imperialismo dos países centrais do capitalismo (EUA, Europa Ocidental e Japão) e sua luta sem tréguas para manter seu domínio geopolítico mundial, estabelecido no Pós-Guerra, impedindo que as nações periféricas se desenvolvam e se tornem competidores poderosos.

As conspirações existem? Sim, existem

As conspirações imaginadas pela extrema direita obviamente não existem ou suas teorias se assentam muito fragilmente em bases reais. O caso do marxismo globalista, por exemplo, se funda no fato de Marx ser um teórico importante nas chamadas humanidades do meio acadêmico mundial. E no fato de Marx apregoar que o comunismo deveria ser um movimento mundial, mas só porque o capitalismo é global, o que torna ineficaz combatê-lo localmente. 

Ou seja, há no marxismo um detalhe da realidade (facilmente verificável) e um raciocínio lógico que são convenientemente esquecidos pelos delírios da conspiração do neofascimo atual: que o capitalismo é globalista desde seu início e, em consequência, a luta contra ele também deveria ser global. E há outro detalhe empírico ignorado pela extrema direita, também fácil de se verificar, que é a fragilidade e a falta de popularidade de todos os movimentos anticapitalistas na atualidade, sejam marxistas ou não. Se o progressismo e as esquerdas reformistas ganham força em alguns lugares, quase ninguém questiona o capitalismo em si. Mas cobrar tal percepção de quem acha que Soros e Gates são comunistas seria exigir demais.

Já as conspirações teorizadas pelo chamado campo progressista geralmente são mais factíveis. Não há como negar a existência do estado profundo norte-americano e da aliança imperialista do chamado Ocidente desenvolvido, capitaneada pelos EUA. Os golpes de 1964 e 2016 nos fizeram a nós, brasileiros, provar o veneno amargo das conspirações imperialistas dos EUA e seus aliados, em sua obstinada determinação de nos manter pobres e humilhados latino-americanos de Terceiro Mundo.

E devemos nos lembrar que China e Rússia, nossos supostos aliados do BRICs, não moveram uma palha a nosso favor em 2016. Sem falar que a primeira ainda apareceu depois para dividir o butim do golpe, comprando avidamente muitos ativos nacionais na bacia das almas. Para a China ascendente, tal como para o Primeiro Mundo, somos apenas fornecedores de matéria-prima. 

É uma ilusão das nossas elites achar que um dia seremos aliados-subordinados estratégicos de alguma potência mundial, como o Canadá e a Austrália são para os EUA. Para isso, seria preciso compartilhar cultura e carga genética com o povo do império e nós, mestiços de negros e latinos (estes considerados quase negros pelos loiros europeus) não temos “pedigree” cultural nem racial para a posição privilegiada de capataz do império, seja ele de olhos azuis ou de olhos puxados.

Em todo caso, o mundo capitalista se organiza por meios de uma competição ferrenha e desleal não apenas entre empresas e indivíduos, mas também entre estados e blocos de estados. A competição econômica se confunde com a competição geopolítica e as grandes empresas forjam, o tempo todo, alianças com as forças obscuras dos estados (serviços secretos, alta burocracia, judiciário, partidos políticos) em busca de mercados e, obviamente, lucro, que é a razão de ser das corporações no capitalismo. 

Nessa luta sangrenta por lucro e mercados há, obviamente, guerras surdas e conspirações de toda ordem, nas quais os estados tentam controlar e vencer seus adversários. Boa parte das conspirações capitaneadas pelos EUA tem como objetivo impedir que estados-colônias continentais, como Brasil, Rússia, Índia e China, se tornem potências e confrontem os países centrais. A China e, em menor grau, a Rússia, parecem estar conseguindo escapar das guerras híbridas e redes conspiratórias imperiais e ascender ao seleto panteão das nações realmente autodeterminadas.

Para isso, fizeram o que o Brasil e a Índia não quiseram ou não puderam realizar: burlaram a farsa das relações democráticas e republicanas e jogaram sujo a favor de seus respectivos nacionalismos, tanto internamente quanto externamente. Ou seja, aceitaram o jogo conspiratório como a política real e contra-atacaram sem piedade (e sem falsos moralismos ou republicanismos) os adversários internos e externos da autodeterminação nacional. 

Os governos petistas de Lula e Dilma, por exemplo, poderiam ter transformado o Brasil numa Alemanha da América Latina, uma potência industrial regional. Mas para isso teriam que construir um serviço secreto eficiente e fazer uma limpeza ideológica no Judiciário, no aparato policial e nas forças armadas, aposentando ou demitindo os aliados dos EUA e do neoliberalismo, incrustados no aparelho de estado. Lula, por exemplo, perdeu a chance de estatizar a Rede Globo, que estava quebrada em 2002, ano de sua posse. Com a Globo em suas mãos, ele poderia quebrar toda a grande mídia familiar, aliada de longa data do império norte-americano, e não haveria nem Lava-Jato nem o golpe de 2016. 

Pouco democrático? A democracia no capitalismo é sempre muito relativa e todos os países que se tornaram potências a burlaram constantemente em nome de seus projetos de poder, a começar pelos EUA, onde não faltam exemplos de conspirações muito pouco democráticas, como o macarthismo anticomunista, a aliança velada do deep estate com a grande mídia (explicitada com as mentiras sobre as armas químicas na guerra do Iraque) e o atual conluio das agências de espionagem com as grandes bigs techs norte-americanas.

Então, as conspirações descritas pelas esquerdas existem de fato. Negá-las seria negar a realidade imperialista do capitalismo mundial. E qual o resultado das guerras conspiratórias e disputas geopolíticas para as pessoas comuns, como nós? 

O capitalismo gera dois tipos de sofrimento para as pessoas. O primeiro decorre da transformação das pessoas em capital humano, em máquinas racionais de trabalhar e gerar lucro, cuja exigência de desempenho se acelera à medida que o capitalismo se desenvolve. O segundo tipo de sofrimento decorre da desigualdade inerente ao desenvolvimento capitalista e se traduz em massificação do desemprego/subemprego, da pobreza, miséria e fome.

Para os males da redução da pessoa a capital humano, as disputas geopolíticas e as guerras conspiratórias não fazem diferença: todas as pessoas de todas as nações são afetadas por este sofrimento. Talvez as pessoas dos países dos países ricos padeçam até mais das exigências do alto desempenho individual, que obrigam as pessoas a dedicarem quase toda sua vida ao mercado de trabalho e, em consequência, ao capital.

Em relação aos males da desigualdade, os países vencedores da guerra capitalista se tornam mais ricos e com mais condições de combater, senão a desigualdade, pelo menos o desemprego, a miséria e a fome. Estes três problemas, por exemplo, foram praticamente resolvidos na China, a partir dos anos 2000, quando começa sua ascensão meteórica como potência industrial. 

O dinamismo dos ganhadores gera emprego e renda e mesmo que não resolva o problema da distribuição e da pobreza, o sofrimento causado pela miséria e a fome cessam. Politicamente, o resultado é o apoio popular, o crescimento do sentimento nacionalista e o fortalecimento interno das forças políticas que promovem a ascensão da nação, que China (com o PCC) e Rússia (com Putin) souberam aproveitar muito bem, se projetando no cenário internacional e lutando contra as conspirações do Ocidente para frear sua autoafirmação como potências.

As conspirações imperiais e as lutas anti-imperialistas, portanto, são fundamentais para definirem os países vencedores e perdedores na encarniçada guerra capitalista mundial, redistribuindo o poder econômico e político entre as nações e seus habitantes. Os povos dos países perdedores estão sujeitos à expansão da miséria, da fome e do inevitável caos político e social decorrente de tal situação, como é o caso dos países da América Latina. 

As conspirações imperialistas e a resistência a elas  mudam o destino de alguns povos na disputa capitalista. Mas os teóricos da conspiração da esquerda, costumam acreditar que uma boa resistência das nações periféricas às escaramuças conspiratórias capitaneadas pelos EUA também podem mudar o destino do capitalismo em geral, e para melhor. Ou seja, eles creem que se entendermos bem os objetivos do império (se tivermos uma boa teoria da conspiração) e nos defendermos e contra-atacarmos de forma eficaz, podemos melhorar a vida de todos os povos do planeta. 

Poderíamos, por exemplo, apoiar a ascensão da China como próxima força imperial e negociar como ela um mundo multipolar, onde a autodeterminação dos povos seria concreta e não apenas formal. Um mundo forjado a partir da cooperação sul-sul, sonho dos idealizadores dos BRICs, poderia engendrar um capitalismo mais justo, geopoliticamente.

A resistência às conspirações imperiais podem alterar os rumos fundamentais do capitalismo? Não

A conversa de Trump sobre a China roubar empregos norte-americanos é uma meia-verdade, pois há uma parte dos empregos que foram `roubados" pela automação. Mas a China realmente tirou indústrias (e empregos) dos EUA, assim como tirou da Europa e do Brasil.

Não que os chineses sejam maus e tenham um plano diabólico de empobrecer os outros para se enriquecerem. É que eles entenderam as regras do jogo capitalista e passaram a jogá-lo de forma agressiva, que aliás é a única forma de se tornar um vencedor. E o capitalismo é um jogo de soma zero, que concentra a riqueza em poucas mãos - e países. Quem ganha, costuma levar tudo, ou quase tudo.

Distribuir riqueza e, em consequência, o poder de forma desinteressada, a beneficiar todas as nações e, dentro delas, todas as pessoas, é contra a lógica do capital, cuja tendência mais eficiente (para o capital) é a acumulação de riqueza e poder. Quem ganha a guerra, pode até distribuir o butim, mas jamais da forma que consideraríamos justa e desinteressada: será sempre uma distribuição que considera a eficiência do capital e a preservação de seu poder econômico e político, exatamente como os EUA fazem atualmente. 

E sempre haverá muito mais nações (e pessoas) perdedoras que vencedoras. Não há vontade política nem boas intenções progressistas e anti-imperialistas que possam mudar este DETERMINISMO capitalista de concentração da riqueza criada e de geração de miséria e fome em meio à riqueza e abundância alimentar. Se a China desbancar os EUA, ela não vai se tornar um império do bem (uma contradição em termos) só porque já foi um país colonial, explorado pelo grande capital - os EUA também já foram, é bom lembrar. O jogo capitalista exige que os ganhadores se portem como ganhadores, que eliminem os potenciais competidores e evitem solidariedade desnecessária para com os perdedores. É assim com empresas e pessoas e também é assim com estados.

As guerras convencionais, assim como as guerras comerciais e híbridas, nas quais as conspirações são essenciais, mudam a riqueza e o poder no interior do capitalismo e definem os vencedores e perdedores do sistema. Estas mudanças de poder são imprevisíveis e dependem, em larga medida, da vontade política dos povos, de sua coesão interna e sua disposição em transformar sua coletividade numa máquina eficiente e competitiva para produzir capital humano, ciência, tecnologia e, por fim, mercadorias e lucro, que é a finalidade do capitalismo.

Mas as guerras e conspirações não alteram alguns desenvolvimentos fundamentais do capitalismo, que estão DETERMINADOS desde o início do sistema como um DESTINO LÓGICO seu, como por exemplo, a substituição de trabalho humano por automação, a queda tendencial da taxa de lucro, a necessidade de se aumentar constantemente o volume da produção de mercadorias para compensar a queda do lucro, o crescimento do desemprego tecnológico, a tendência à concentração de riqueza e a degradação ambiental decorrente da necessidade insana de aumentar a produção de mercadorias. Todas estas “leis” foram previstas por Marx e os marxistas a partir da lei do valor-trabalho e são verificáveis empiricamente ao longo do desenvolvimento do capitalismo, desde a Revolução Industrial.

Enquanto durar o capitalismo e sua lógica da mercadoria, estas “leis” podem, no máximo, terem suas consequências mitigadas, mas nunca poderão ser revogadas, pois não dependem da vontade política das pessoas, por mais bem intencionadas que sejam. A luta contra as conspirações imperiais dos EUA e seus aliados, mesmo se vitoriosa, não vai alterar esses desenvolvimentos pré-determinados do capital. 

Se o centro do sistema mudar para a China, mesmo que ela queira, não haverá meios para mudar os destinos lógicos do capitalismo, que não levam automaticamente ao socialismo, como muitos marxistas tradicionais pensaram, mas ao colapso do sistema e ao caos, que já se anuncia com as crises do neoliberalismo financeiro e a ascensão mundial dos neofascismo. 

As conspirações imperiais e lutas anti-imperialistas nada podem fazer a respeito dos destinos fundamentais do capitalismo, a não ser que as lutas contra o império se transformem, em algum momento, em lutas anticapitalistas, que busquem não apenas reformar o capitalismo ou mudar seus centros de poder, mas promover, de fato, alguma forma de transição emancipatória para fora do sistema.


Comentários

  1. Excelente texto, como sempre. Consegue transmitir muito conhecimento utilizando uma linguagem simples, o que é bem difícil em se tratando de marxismo e sistemas econômicos. Como pequena contribuição, alerto que a grafia da palavra "ascensão" está incorreta em dois momentos do texto, com "ç" ao invés de "s". Parabéns, sorte ter encontrando seus textos para acompanhar! Espero que continue produzindo-os por um bom tempo.

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