Em defesa da antipolítica

Não é só o Brasil, é o mundo que está numa enrascada. Nem a política econômica keynesiana, nem a neoliberal e nem a combinação de ambas, como o PT tentou aqui com seu social-liberalismo (e Blair já havia tentado na Inglaterra com a terceira via) funcionaram para diminuir as desigualdades e retomar o crescimento vigoroso do capitalismo, sem o qual se torna impossível uma política de distribuição de renda de longo prazo.

Depois dos anos dourados do Pós-Guerra,o capitalismo entrou em decadência nos anos 1980, com a era neoliberal tentando recuperar a lucratividade em queda. E parece que o sistema entrou definitivamente na era do colapso a partir da crise de 2008, abrandada com injeções maciças de capital promovidas pelos Bancos Centrais do mundo que, longe de resolvê-la, apenas empurraram a bolha financeira com a barriga.

A grande esperança do mundo capitalista repousa na China (e seus parceiros orientais), que pode assumir a posição de império e, quem sabe, relançar o capitalismo numa nova era de crescimento. O Ocidente branco de olhos azuis certamente ficaria com seu orgulho ferido ao ser superado pelos amarelos de olhos puxados, mas engoliria seu orgulho e racismo e se sentiria aliviado e agradecido aos chineses por salvarem o capitalismo mundial e sua cultura pós-moderna.

Mas talvez isso não passe de esperança vã. Veremos se a China conseguirá ser a locomotiva de um mundo em que a taxa de lucro (o verdadeiro motor do capitalismo) não para de cair. Nós, ocidentais, olhamos para os orientais com um misto de fascínio, inveja e medo. Sua sabedoria e disciplina milenar os faz parecerem invencíveis diante dos desafios do capitalismo, mas também invencíveis para nós. A paranoia do vírus chinês é apenas uma atualização tosca que o neofascismo faz do misto de medo e admiração que nutrimos por eles.

Em todo caso, ver os orientais como infalíveis, é mais uma mistificação de um Ocidente amedrontado. O Japão, por exemplo, estagnou com toda a sua disciplina guerreira taoísta-budista e dificilmente a milenar obstinação confuncionista dos chineses vencerá a queda da taxa de lucro por mais que seus trabalhadores se sacrifiquem à superexploração do trabalho em graus cada vez mais desumanos. Mesmo porque o grande capital industrial sempre atinge uma fase em que é mais vantajoso substituir humanos por automação - e esse momento está chegando na China, cada vez mais automatizada. O problema é que essa vantagem para o industrial particular se transforma numa desvantagem para a economia em geral, pois acelera a queda da taxa de lucro, sem falar que provoca desemprego estrutural.

Então, é mais provável que nossa esperança (e medo) na invencibilidade oriental dos chineses seja frustrada, como os japoneses nos frustram atualmente. Não há cultura milenar que resista às demolições da dinâmica capitalista, na qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”, exceto o capital, é claro.

Desânimo, medo, raiva e antipolítica

O resultado “psíquico” de décadas de decadência (1980-2008), seguidas da última década de colapso (2010), é uma descrença geral com o mundo pós-moderno, sua política e suas instituições democráticas. As pessoas estão desanimadas, pois sabem que elas e seus descendentes terão uma vida cada vez mais dura e próxima da pobreza. A ascenção à classe média se torna uma miragem para poucos. Quem já “fez o pé de meia” luta para não cair e teme pelos filhos, mesmo que estes tenham uma boa formação.

Eu insisto na perspectiva desanimada do “homem médio” porque ela é generalizada, não apenas no país, mas no mundo. Sugiro, inclusive, que cada um faça sua “pesquisa qualitativa” de verificação do desânimo. Converse com pessoas aleatoriamente, de direita ou esquerda, bolsonarista ou não, evangélico ou católico, classe média ou pobre. Não fale de política imediatamente nem tente um confronto de posições. Pergunte sobre a vida, o ganha pão, os negócios, a carestia, o emprego...

As primeiras respostas serão padronizadas, recorrendo ao mérito pessoal, ao valor dos estudos e do esforço, e à dignidade do trabalho, não raro acompanhadas de um otimismo de quem será premiado por suas virtudes. Mas quando você começa a perguntar mais detidamente sobre o mercado de trabalho ou os negócios, sobre o estado e os serviços públicos, sobre as coisas básicas da vida, como alimentação, moradia, transporte, educação etc, o quadro se torna sombrio e as perspectivas se afunilam num abismo de desencanto que beira o desespero.

Aí você perceberá que no fundo (no inconsciente, mas já quase emergindo para a consciência) as pessoas estão sem esperança com nossa sociedade, não veem futuro no mundo atual, estão com medo, se sentindo impotentes e raivosas. E a resultante disso tudo é uma profunda aversão à política, à democracia e às instituições liberais: eleições, poderes, partidos, sindicatos, estado de direito

O homem médio desconfia que o jogo democrático e o estado de direito, no fim das contas, apenas beneficiam os ricos e o grande capital, que o voto é inútil, que direita e esquerda são dois lados da mesma moeda e que o povo é apenas um espectador impotente no grande circo da democracia liberal - e também nos circos políticos dos regimes autoritários, que não escapam do desencanto com a política.

Ao se negar a política há que se negar o capitalismo

E como dizer que o homem médio está errado a respeito disso? O diagnóstico a que o povo está chegando em relação à democracia é o mesmo de Marx: apesar de sua máscara popular, o estado e a democracia servem apenas aos ricos, ao 1% e seus capatazes de classe média, muitos deles encastelados no estado: juízes, burocratas e políticos. Principalmente estes que, no fim das contas parecem ‘decidir’ os rumos do aparato estatal, e sempre contra os pequenos e a favor dos grandes, levando, não raro, uma pequena (mas escandalosa) parte do butim.

Na verdade, corrigiria Marx, a democracia e os políticos não servem aos ricos e sim ao capital, essa riqueza abstrata da qual o 1% é apenas seu representante. Essa diferença é muito importante e é isso que o “homem médio” não consegue ver, não por insuficiência intelectual, mas por conta do que eu chamaria de bloqueio psico-cultural.

O homem médio pensa que a sociedade capitalista está funcionando de forma anormal ao promover a concentração de riqueza e abandonar o povo à própria sorte. Ou, dito de outra forma, pensa que a sociedade foi corrompida por um ou vários grupos sociais poderosos e inescrupulosos, tais como judeus, petistas, ativistas, grandes empresários, globalistas, comunistas, banqueiros, políticos etc.

A verdade que o homem médio não consegue ver é que a concentração de riqueza, renda e poder nas mãos de poucos é o normal sistêmico do capitalismo e todo o seu aparato institucional (estado, democracia, partidos, leis, política etc) só tem razão de ser para favorecer esta concentração ou, no máximo, proporcionar emprego e distribuir alguma renda para o povo, a fim de prevenir o caos social.

O que conhecemos como política, com seus conteúdos e formas atuais, nasceu com a modernidade pré-capitalista, com os burgos e as cidades comerciais italianas ainda na Idade Média. Maquiavel foi talvez o seu primeiro teórico. Na verdade, até a consolidação do capitalismo, com as revoluções Industrial e Francesa, o que se tinha ainda era uma proto-política. A política como a conhecemos, fundada em instituições liberais e, depois, na democracia liberal, é recente e remonta ao fim do século XVIII - tem a idade do capitalismo e é uma instituição fundamental sua. Por isso, se rebelar contra a política implica em negar automaticamente o capitalismo, mesmo que de forma inconsciente.

A antipolítica que não é anticapitalismo se torna fascismo

Do desânimo geral para a revolta antipolítica é um pulo. O problema é que o homem médio não consegue ser coerente na sua lógica negativa. A negação da política, para ser consequente e racional, deve implicar um passo além e resultar na negação consciente do capitalismo como um todo sistêmico, para além do combate a certos grupos sociais (realmente ou imaginariamente) privilegiados.               

A política liberal e suas instituições democráticas são umbilicalmente ligadas ao capitalismo, são o ‘estado de arte’ de seu sistema de poder e provavelmente o desenvolvimento mais refinado e simbiótico do capital com a coletividade humana moderna. Foi sob a democracia do chamado Primeiro Mundo (EUA, Europa e Japão) que o capital alcançou, no Pós-Guerra, um desenvolvimento jamais visto até então: na sua técnica e ciência sem paralelos na história humana; no desenvolvimento pleno da subjetividade do homo economicus com a emergência do indivíduo de “classe média”; na sua amplitude global ao absorver todas as culturas na modernidade capitalista; e em sua penetração em todas as esferas da vida (já na sua fase neoliberal).

A revolta contra a política e, em especial, contra a democracia, significa a negação do capitalismo, pois a política, como a concebemos, é um jogo de poder estritamente capitalista. A questão é que o homem médio não pode ver que política e capitalismo são duas faces da mesma moeda, pois ele quer permanecer fiel ao capitalismo e seus valores (como o trabalho abstrato, por exemplo), mesmo negando a política. Então, ele nega a política sem negar o sistema mercantil, seu fundamento econômico e cultural, o que é uma contradição.

O homem médio cai nessa contradição porque negar o capitalismo seria negar a si mesmo e seus valores, sua identidade como homem (pós)moderno. Isso exigiria uma espécie de revolução antropológica da sociedade e seus indivíduos, algo comparável a uma mudança massiva da religião e do sagrado de toda uma coletividade.

Então, ao negar a política e permanecer fiel ao capitalismo e sua visão de mundo, o homem médio precisa encontrar outro culpado, que não o capital, pela corrupção de seu mundo. O alvo imediato são os políticos e as instituições democráticas, como o Congresso por exemplo. Mas pode se estender a outros grupos, como os judeus, os homossexuais, os comunistas, os empresários etc. A ideia é que, limpando a sociedade dos que a corromperam, ela se revitalizará em seu aspecto originário, saudável e natural, que seria, obviamente, de feição capitalista.

Mas inconscientemente o homem médio sabe (e não sabe ou quase não sabe, ou intui, pois o saber é inconsciente) que sua luta contra a política é também contra o capitalismo, que sua revolta é contra sua própria cultura que, para ele, constitui todo o mundo possível e o sustentáculo de sua identidade como homem. Então, a destruição da política implica na destruição do seu próprio mundo, primeiro, na forma de uma guerra contra o outro que, fatalmente se completa num processo de autodestruição coletivo. O fascismo é essa revolta inconsciente contra o capital que acaba por se tornar uma revolta contra si mesmo e sua coletividade. Nesse processo, os males do capital, que é um ‘ser’ amoral e impessoal, são moralizados e personalizados, ou seja, projetados num outro supostamente imoral/corrupto.

A destruição do mundo e, por fim, a autodestruição promovida pelo fascismo, embora seja absolutamente irracional do ponto de vista da vida humana, é uma consequência lógica da contradição inicial de se negar a política sem negar o capitalismo. Como política e capitalismo são inseparáveis, essa operação é impossível. Então passa-se a negar o capitalismo de forma inconsciente, com a potência destrutiva do que Freud chamara de id, cuja recusa ao prazer é respondida com violência e morte. No caso, a violência contra a civilização capitalista que é, no fim das contas, o sustentáculo identitário dos grupos e indivíduos fascistas ou não, se torna auto-violência contra sua própria sociedade - suicídio coletivo.

Todos os fascismos exacerbam fanaticamente os valores capitalistas (propriedade privada, trabalho, lucro etc), mas o resultado prático dos movimentos e governos fascistas é a destruição das bases de sustentação do capitalismo, a começar pelo estado burguês e suas instituições. O fascismo promove uma revolução inconsciente contra o capitalismo e seu desenvolvimento leva efetivamente a sua abolição. O problema é que ele não cessa a destruição, pois não pode conceber nem engendrar nenhum outro sistema social que não o capitalismo. O resultado é a guerra sem fim e uma revolução apocalíptica até que não reste nada do mundo, literalmente - ainda mais numa época em que dispomos de armas nucleares.

Para o fascista, o único mundo concebível é o capitalismo. O desejo inconsciente de destruição do capitalismo, então, se torna sinônimo de vontade de destruição do mundo. A única solução, portanto, é o apocalipse. 

As alternativas à antipolítica fascista

As alternativas à antipolítica, concebidas no interior do sistema capitalista e que visam salvar a democracia e o capitalismo de suas próprias contradições, estão fadadas ao fracasso por conta do colapso sistêmico do capital, cujas expressões mais evidentes são o desemprego estrutural e a queda tendencial da taxa de lucro, ambos provocados pela automação crescente da produção de mercadorias - uma tendência incontornável do capitalismo prevista por Marx e confirmada pela empiria.

Nem as políticas econômicas da direita neoliberal nem as da esquerda neokeynesiana podem ir muito além de administrar, e cada vez mais precariamente, o colapso do capitalismo, com o porrete no primeiro caso e programas sociais no segundo. Esquerda e direita se tornaram bombeiros das crises. Seu receituário político e econômico está esgotado e serve apenas para apagar os incêndios cada vez maiores das revoltas sociais que se alastram pelo mundo.

A política, portanto, não serve para nada mais. Todas as suas alternativas, à direita ou à esquerda, terceiras vias, centros etc. estão condenadas ao fracasso. A antipolítica do homem médio está coberta de razão (a voz do povo é a voz de Deus). A questão é que ao negar a política e não negar conscientemente o capitalismo, o homem médio cai inevitavelmente numa concepção moralista da sociedade que vê a corrupção se alastrando no mundo por força de inimigos imaginários. Por isso o povo deve eleger e apoiar um violento tirano fascista, que irá limpar o mundo do mal e dos malvados, e restaurar a ordem adâmica anterior (de boas intenções o inferno está cheio).

A única opção sensata é negar a política, como os fascistas. Nisto eles estão certos. A democracia liberal, que nunca fez jus ao termo grego ‘demo’ (povo), não serve mais. Mas para não cair no apocalipse fascista (sair da panela e cair o fogo) é preciso negar conscientemente o capitalismo, que é a base de sustentação da política, e começar a conceber e construir um outro sistema social, um outro modo de vida (comunitário, coletivistas, comunista), mais racional, distributivo e menos destrutivo, no qual as categorias capital, democracia, política, estado etc. já não fariam mais sentido. E no qual o fascismo e seu apocalipse também já não seriam desejáveis, nem mesmo inconscientemente.

Na quadra atual de colapso do capitalismo, a antipolítica é uma virtude. Mas para não degenerar no inferno fascista, ela precisa ser racional e se desdobrar, de forma consciente, num segundo momento de negação: a antipolítica só nos conduz à emancipação se for também um anticapitalismo.

Comentários

  1. Parte do patadoxo bem descrito por você entre a pulsão da morte e o desejo do objeto capitalista, em Freud, tem uma abirdagem interessanre em Slavoj Zizeck no livro Vivendo no Fim dos Tempos. Na obra há outros pontos que convergem à sua narrativa, como a necessidade de uma revolta "religiosa" e "fundamentalista" que negue a política e o capitalismo. Também está ali descrito, como o título informa, o apocalipse ao qual nos dirigimos.

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    1. Obrigado pela dica, vou ler o livro do Zizeck.

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    2. Na verdade, o livro dele aborda as várias abordagens deste tópico, e os conflitos entre Freud, Jung e Lacan acerca desta pulsão (pelo), desejo e gozo do objeto, introduzindo estas variáveis dentro de sua narrativa acerca do "fim dos tempos" e da nossa relação com o capitalismo, sempre paradoxal. E se pegarmos a Crítica do Valor e associarmos ao Zizeck, raspando em Harvey (David) as coisas ficam bem mais claras, embora bem mais deprimentes.

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