27 março, 2023

A vida e a poesia

Se enveredam num caminho
que se enrosca morro acima
dando voltas e mais voltas
e não se volta

Às vezes há desvios
com promessas de atalhos
e nos devolvem ao mesmo 
repisado caminho

Veredas urdidas com o tempo
não se para ou se desatam
os nós cegos que nos atam

Nada ensinam nem nos salvam
às vezes vislumbramos
o silêncio perfumado
de um jardim na nuvem alta
antes de escorregarmos
no cascalho da estrada 

e darmos com os burros n'água
ou cairmos de cara no chão
se dermos sorte e não
nos despencarmos do paredão






22 março, 2023

Um livro de ontem

Ando lendo poetas estaduais
de uns tempos atrás... Agora, 
por exemplo, tenho um livro à mão
escrito por um concidadão
(sem nomes, por favor!).
Ó Deus! Tantos clichês!
Não é que ele seja um poeta
muito ruim, percebe-se
ecos e sombras de algum
grande lírico. Bom leitor,
esse meu conterrâneo de outrora,
mas seus sons e imagens não 
me cheiram tão bem.
Há exagero quando caberia rigor
e vazios onde cairia melhor
um desatino. Um descompasso 
de tempo e espaço, alguma coisa que não
se encaixa. Apenas um mediano
artesão, niilista e pagão,
medíocre epígono provinciano,
um entre tantos...
Ó Deus! Quanta tinta
em vão!

Naldo Goyazes, Goiânia, 
22 de março do ano da graça de 2063.

NOTA HISTORIOGRÁFICA sobre o livro a que se refere o poema acima.

Este humilde historiografista apurou que o poema "Um livro de ontem" se refere, sem nomear milagre nem santo, à obra intitulado Um dia de segundos, da lavra de um infiel cujo nome ou alcunha era Wilton Cardoso ou, talvez, Franco Átila -- Deus tenha piedade de sua alma! --, que viveu nos alvores do século XXI em Goiânia, cidade meridional da extinta megalópole de Gynsília. Os registros exactos deste obscuro autor e de sua vida inglória perderam-se na Grande Tormenta Climática ou, depois, na Water War que assolaram as eras profanas -- ao tocar em tais desgraças, recordemos, por ordem do Sancto Pryncipe e com o ficto de nos mantermos rectos e não mais sofrermos a ira do Senhor, que nas eras profanas somávamos biliões de almas desviadas do Estreito Caminho pela ambição, vaidade e lascívia desmedidas, e se no mundo restamos nós, poucos miliões de almas viventes no Hemisfério Austral, devemo-lo à infinita misericórdia de Deus -- louvado seja!.

O profano Um dia de segundos -- maldito seja! -- veio a lume no ano de N.Sr.J.C. de 2024 e dele restou apenas o alfarrábio encontrado no ano de N.Sr.J.C. de 2128 numa destroçada Goiânia. O exemplar quedava em mau estado de conservação, misturado a vários outros, num porão sob a casa em ruínas onde vivera o glorioso poeta e erudito Naldo Goyases, no que parecia ser um bunker para onde foi transferida sua biblioteca. O poema acima trata-se de um perspicaz comentário sobre o infeliz livro e seu autor, e estava anotado à mão num guardanapo dentro do exemplar. A se crer no juízo de valor de Goyazes, e motivos não há para se duvidar de sua argúcia exegética e elevado senso moral, este Wilton Cardoso e seus escritos infames prestam-se apenas para registro historiográfico. Trata-se de lírica menor, não raro obscena e francamente anticristã, desprovida de engenho e virtude que possam lumiar nossa Nova Era Cristã purificada no fogo atómico. Inda pesa, em desfavor de malfadada obra, o facto de a divulgação primeira de seus poemas ter se dado por meio da internet, engenho demoníaco e para sempre banido pela I Convenção Austral dos Pryncipados. Não se recomenda, portanto, a sua reimpressão, devendo o exemplar remanescente quedar mudo na Sala-índex da Biblioteca Real. 

NOTA DE ESCLARECIMENTO sobre o poema "Um livro de ontem", da lavra do glorioso poeta cristão Naldo Goyazes, chamado junto ao seio de Nosso Senhor Jesus Cristo no fatídico ano de 2095, na megalópole de Gynsília, por ocasião da guerra que para sempre a arruinou: ESCLAREÇO-VOS que o poema é anterior ao advento do Principado e à promulgação da Sacra Súmula Poética que proibiu, dentre outras coisas, tons irônicos, humor corrosivo, linguagem vulgar, versos sem metro ou iniciados com minúsculas, rimas irregulares e gêneros líricos não chancelados. Por ser o ilustre poeta Naldo Goyazes um reconhecido e devoto cristão, e levando em conta que o poema foi escrito antes da Sacra Súmula, o estilo relativamente licencioso de seus versos não configuram, em nossa humildae opinião, heresia

Firmo e confirmo, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que os factos acima narrados são verazes e exactos. Que a ira de Deus caia sobre minha cabeça se vos falto com a verdade! Encaminho esta nota impressa, com graves cumprimentos, à chancela real. Vida longa ao Sancto Príncipe, nomeado e ungido por Deus Nosso Senhor como Protetor Supremo de nosso Pryncipado!

Jeosafá do Ermo Interior, Grão-Mestre Historiográfico, Deserto Central da Sulamérica Brasiliana, no décimo nono dia do sétimo mês do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2171.



19 março, 2023

O emissário do caos II

há um abismo
sem sentido
e por assim dizer
natural
que nos leva a crer 
nos deuses que criamos

eu trago a palavra
e o silêncio
desse abismo ancestral
que nos traga
 
há um outro abismo
cavado à força
de cavalos mecânicos
com almas mercantes
que nós mesmos criamos
como se tirássemos o chão
já frágil
do sentido e da vida
com as nossas próprias mãos

na palavra que falo
e na pausa que me cala
eu trago também 
esse abismo de cifras
que nos traga

eu sou a voz
dos dois abismos

ninguém
quer ouvir o que eu digo

fecha os olhos
e ouvidos

Homem face a face com o abismo (Susano Correia)



17 março, 2023

O emissário do caos

 

Fecha os olhos
E ouvidos
Ninguém
Quer ouvir o que eu digo

Pois por dentro e por fora
Sou fea figura
E a minha voz impura
É de ator canastrão

Talvez
Haja algo que valha
Na palavra que trago

Não 
Eu sou a voz do abismo

O abismo 
Sem sentido
Que nos traga

Fecha os olhos
E ouvidos

12 março, 2023

grito

há um silêncio que dorme
sob as águas do poema
                                               e grita
ao ruído surdo das ruas
                                             uns raros
mergulham e beijam
sua boca repleta
de palavras que clamam
                                             em silêncio
                 despertam
loucos
(loucos de poesia)
vislumbram a loucura
         da vida
normal que se leva
                   e nos leva
                                      ao abismo
(sem água ou
       grito)                                   da morte
                    de tudo o que é
humano

 

O Grito (Edvard Munch)
 

02 março, 2023

tempo-sal

por que
 
você sente sau
 
dades do tempo perdido
 
que você acha
 
que foi fel
 
iz
 
?
 
 

 

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...