As pessoas não sabem do seu Deus

As pessoas não sabem do seu Deus

Não há evidências de que existam deuses sobrenaturais e os que neles creem se fiam na fé para afirmarem sua existência e poder.

Marx, no entanto, provou a existência do Capital como motor imóvel (Deus) do capitalismo, descobrindo, inclusive suas leis tendenciais que a história não cessa de confirmar. Descobriu, portanto, a estrutura (capitalismo), seu centro (Capital) e sua gramática (leis). Mas quase ninguém, principalmente os economistas  do sistema, sabe ou quer saber da verdade sobre Capital, essa forma social que funciona efetivamente como um Deus cego, abstrato, quantitativo e voluptuoso. Quase ninguém quer ver esse sujeito automático que nos moldou à sua imagem e semelhança e nos move desde o fundo da alma.

Um Deus inventado por nós, como todos os deuses, mas que, mais que os outros, efetivamente dá forma e movimenta o nosso mundo de acordo com sua vontade. O primeiro Deus que existe objetivamente e de forma autônoma dos seres humanos e que, por isso, não necessita de crença, templos ou sacerdotes-vigias instituídos.

O capital não necessita nem mesmo que se saiba dele. Aliás, ele existe e se reproduz melhor quando as pessoas não sabem dele e de sua onipotência. Assim podem fantasiar que creem e se guiam por deuses e crenças mais afetivos ou úteis à humanidade, como Cristo, Alá, Razão, Ciência e outros. Fantasiam servirem a outros deuses quando suas ações, afetos, moral e visão de mundo são constituídos e mobilizados, de fato, pelo Capital: Ser indiferente às pessoas e suas angústias e que as instrumentaliza para sua reprodução.

O Capital é um Deus?

Moishe Postone, em Tempo, trabalho e dominação social, mostra que há duas temporalidades do capitalismo: o tempo abstrato do capital e o tempo histórico do mundo. O primeiro, assentado no tempo cronológico do relógio, não muda nunca e é o fundamento do valor, que se define como a quantidade de tempo de trabalho necessário para produzir uma mercadoria qualquer. O tempo histórico, por sua vez, se acelera sem parar, pois quanto menos tempo de trabalho for necessário para se produzir uma mercadoria (quanto maior a produtividade do capital), mais barata ela se torna e o primeiro capital particular que conseguir a proeza tende a dominar o mercado. E para isso acontecer é necessário avançar a técnica de produção e a ciência constantemente, substituindo trabalho vivo por máquinas.

Esta revolução técnico-científica permanente do capitalismo acelera o tempo histórico para que o tempo abstrato do valor continue o mesmo. Moishe Postone denomina o capitalismo de totalidade direcional. Talvez fosse mais correto dizer que se trate de uma estrutura, cujo centro é o Capital e seu tempo abstrato, sempre idênticos a si mesmos, enquanto a periferia é o mundo (humanos, técnica, máquinas, natureza) que se  organiza e se desenvolve segundo as leis do Capital, o qual, para permanecer idêntico a si (atemporal), necessita que o tempo histórico do mundo avance de forma acelerada.

A estrutura pressupõe um centro, um ser, um motor imóvel sempre idêntico a si e que produz a gramática (lei) que governa o movimento estrutural. No capitalismo, o Capital é este centro atemporal, onipotente e onipresente.

Se isso não for um Deus, o que seria?

In: Política e sujeito no capitalismo em colapso

Comentários

  1. Interessante paralelo. Lembra-me de uma passagem do Capital que gosto bastante, no capítulo no qual Marx descreve a passagem do proto-capialismo ao capitalismo (no período de supremacia do capital comercial), no qual diz que surge um ""deus estrangeiro" que subiu ao altar onde se encontravam os velhos ídolos da Europa e, um belo dia, com um empurrão, joga todos eles por terra. Proclamou a produção da mais-valia o último e único objetivo da humanidade."
    Para além da ironia, acho que é possível estabelecer um paralelo conceitual, sim. A teleologia do progresso, penso, pode ser vista como uma espécie de teologia. A forma-mercadoria mesma é uma espécie de não-lugar (utopia) com uma temporalidade peculiar, dissociada do tempo histórico, que nos diz que caminhamos para um paraíso de prosperidade, "o melhor dos mundos possíveis", mas que no terreno da história pode se revelar como seu oposto.
    Só não sei até onde esse paralelo pode ser feito. De certo modo, o Deus-capital também tem sacerdotes, ainda que estes não saibam que obedecem a Sua vontade. A ideia da neutralidade atesta isto. Os sacerdotes se identificavam como portadores de uma força que estava para além das paixões , vontades e consciência humana ou mundana, portadores de uma voz extra-mundana e por isso neutra. A teologia do progresso também é marcada por essa ideia de neutralidade (que penso advir do universal abstrato), ainda que seus portadores não estejam plenamente cientes disto, e carrega essa noção de maneira descontinua em relação aos exemplos anteriores.
    Isto é, se a divinidade antiga, como a cristã ou alguma outra, renegava o corpo e paixões, pelo menos ainda era uma projeção dos poderes emocionais humanos numa unidade extra-mundana maior (e o paraíso como neutralização e sublimação, salvação destes poderes mundanos), enquanto que para o Deus-capital mesmo os poderes emocionais precisam ser neutralizados, e não num extra-mundo, mas de maneira imanente aqui na terra, afim de funcionalizar todos/as como instrumentos para sua auto-expansão - como conjunto de poderes mundanos alienados de maneira "supra-sensível", instrumentalizando desde a esfera dos sentidos e da sensibilidade até a da consciência e do intelecto. Não sei até onde esta comparação pode ser levada, estou apenas colocando aqui alguns pensamentos que estavam circulando na minha cabeça a algum tempo, com base nas minhas últimas leituras sobre a questão da pré-história (Kurz, Karatani e outros), como pré-história de dominação, patriarcal e sacrifical - pelo que entendi até agora estudando este ponto - e se alguns destes pontos contribuírem para sua escrita, ótimo.
    De qualquer maneira, não penso ser necessário ser ateu para questionar o Deus-capital. Na verdade, acho que os religiosos estariam sendo mais francos se perdessem menos tempo tentando deslegitimar os deuses uns dos outros e gastassem mais tempo em reconhecer esse deus banal, o Deus-capital, como ilegítimo - na medida em que também consideram os seus deuses como legítimos.
    Não sei se fui claro, e pode ser que alguns desses pontos precisem de correção. Não faz muito tempo que venho tentando elaborar esses conceitos.
    De qualquer modo, parabéns pela página e pela escrita, que embora não concorde com todos os pontos, considero que além de conceitualmente interessante é também uma leitura divertida, boa ler.

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    1. Obrigado pela leitura atenciosa. Sem dúvida ela será útil para a reflexão que tenho feito. Estes 2 textos são uma pequena parte do capítulo intitulado "Ensaios mínimos", que faz parte de um trabalho sobre política e subjetividade, ainda em andamento e, portanto, sujeito a muitas alterações. O trabalho, com os "Ensaios mínimos" pode ser acessado no link abaixo:
      https://docs.google.com/document/d/e/2PACX-1vTlQwzk5i3BeuYmvlYN5gS8ipkW4q313kTQFBQUOz3JtJrdtq4l6e5fPw9YebS1w0HQisTskI6WKtAX/pub
      Abraço!

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