21 março, 2021

lá entre nós

como ser louco dentro
se dentro está vazio
cheio somente de contas
bolsos e cifras no cio?

ah! mas há
um outro dentro
dentro do dentro
(ou ao lado sabe-se lá)
uma sombra cheia de monstros
que volta e assombra o centro
e arromba as portas do mundo

o poeta é um louco
                                   agora
                                              da boca
                                                            pra fora

cá entre nós

Decalcomania - René Magritte
os poetas são pessoas normais
carro cachorro supermercado
bom dia tudo bem como vai
só uns poucos
centímetros fora do centro
sensível alma que-
brada demais
o poeta é só
                 um desses
             loucos
       para
dentro



20 março, 2021

Capitalismo e (não) sentido

Vazio pós-moderno

O vazio psíquico pós-moderno, a sensação de que a vida que se vive não tem sentido humano, nada mais é que a plenitude do Capital, da alma adestrada como sujeito automático, voltada primariamente para a produção de valor. O vazio humano da pós-modernidade é a realização plena do Capital.

Certamente não há sentido no universo e a Terra é um escuro cisco esférico perdido em meio a bilhões de galáxias. Não há, tampouco sentido no interior deste pequeno cisco em que vivemos. A Natureza por acaso nos gerou e nos desconhece completamente.

Mas o ser humano é um ser de sentido. A consciência é um animal à caça de sentidos e, ao mesmo tempo, uma fábrica de significação. As pessoas inventaram os deuses para preencher o mundo de sentido, para fazer sua existência ser mais que um simples existir casual.

O capital talvez seja o primeiro Deus criado pelos homens que esvazia o mundo de sentido e converte homens e natureza em instrumentos para reproduzir sua forma quantitativa e abstrata.

A concretude da vida em comum é o único sentido que resta ao ser humano, desde sempre. E o avanço do Capital sobre todos os povos da Terra e esferas da vida corrói e, por fim, quebra esta frágil camada de sentido que sustenta a vida comunitária. Quebra as culturas do sentido pré-capitalistas e instaura a modernidade (e pós-modernidade), como cultura da forma vazia, que retira do humano o chão do sentido.

Sob o Capital, o ser humano se torna um autômato cujo cerne é a razão instrumental e a competitividade. Voltados para multiplicação da forma vazia do Deus, as pessoas se tornam também formas vazias indiferenciadas - forma sujeito cujo núcleo é o sujeito automático (Capital).

Não à toa, o fascismo emerge como reação destrutiva e autodestrutiva à retirada de sentido e concretude existencial que o capitalismo promove nas sociedades humanas.

O sentido é a comunidade

Se não há sentido fora do humano, tampouco o há no indivíduo que, de resto, é apenas um animal frágil muito mal aparelhado pelos instintos, uma continuidade débil da natureza.

O sentido da humanidade, portanto, está na unidade comunitária, na cultura de um povo, na sociedade como uma totalidade para além dos indivíduos que a compõem.

O capitalismo, por sua vez, funda uma cultura cujos laços sociais se fazem por meio da forma vazia da mercadoria, às expensas de qualquer sentido. A modernidade é uma cultura que fragmenta o humano em indivíduos isolados que se ligam entre si pela janela exclusiva da lógica da mercadoria.

De onde viemos? Para quê vivemos? Para onde vamos? Como devemos viver? A resposta verdadeira (e frustrante para os seres humanos) a todas estas questões fundamentais é simples na modernidade: somos filhos do Capital, vivemos e morremos por ele e devemos viver sob suas leis. Pois ele é o cimento de nossa sociedade, é o que dá sentido e unidade a ela. Mas se trata de um sentido vazio e de uma unidade fraturada.

A unidade do capital se funda na separação das pessoas tornadas partículas racionais e competitivas entre si, cujo modelo moderno é o individualismo burguês, e o pós-moderno é o narcisismo de classe média, massivo a ponto de estruturar, na atualidade, a psique dos pobres (que se vê como auto-empreendedor). A unidade do capital é, paradoxalmente, a da fragmentação indiferenciada dos sujeitos abstratos.

A sociedade capitalista que se relaciona apenas pela lógica mercantil é, em sua concretude, essencialmente fraturada e se constitui como coletividade apenas no nível abstrato do Capital, pois os vínculos e relações sociais que a regem são constituídos pelo valor, o trabalho abstrato e a mercadoria. Estas categorias são essencialmente formais e vazias de sentido, ou melhor, podem ser preenchidas com quaisquer sentidos que não questionem a centralidade do capital.

Mas esta plasticidade extrema do sentido, que permite à cultura capitalista absorver todas as outras e (re)formá-las segundo a lógica formal da mercadoria, relativizando as tradições e conteúdos dos povos, coincide, afinal, com a ausência de sentido. Por conta dessa hegemonia da forma, da abstração e da quantidade (pois o Capital é também uma grandeza quantitativa), o capitalismo é incapaz de se constituir como uma comunidade concreta e, portanto, de construir sentidos para si.

Obs.: E novamente o fascismo reage ao vazio de sentido e à quebra comunitária do capitalismo, erguendo suas comunidades cimentadas pelo ódio, medo e ressentimento, cujo sentido (como significado, mas também como rumo, objetivo) passa a ser a insanidade da guerra e do morticínio, a destruição pela destruição e, por fim, o auto-aniquilamento.


In: Política e sujeito no capitalismo em colapso

11 março, 2021

os mortos se amontoam

o fascismo fascina
contagia as gentes
e a pátria apática
não decifra as cifras
das frias telas
do agora em trevas:

píxeis piscam
milhares de olhos
tolhidos de brilho

gráficos gritam
as vozes pálidas
agora apátridas

a
pátria
o logro do ogro
um campo de corpos
onde os mortos se amontoam
os mortos se amontoam os mortos
se amontoam os mortos se amontoam os
mortos se amontoam os mortos se amontoam
os mortos se amontoam numa montanha de mortos

04 março, 2021

O Deus-Natura, a Dádiva e o Capital

Da consciência do Deus

É preciso acabar com alguns preconceitos acerca dos deuses. Um Deus não precisa saber do outro e de si. Não é necessário que tenha consciência, que seja piedoso ou perverso, moral ou imoral, como Espinoza já demostrou.

Um Deus não deixa de sê-lo por ser inconsciente, como é o caso do Capital. Consequentemente, esse Deus é  amoral, indiferente e frio ao devorar seus filhos (nós) para se reproduzir, isto é, para permanecer idêntico a si.

Da eternidade do Deus

Um Deus também não precisa ser eterno, ou melhor, ele precisa ser “eterno enquanto dure”, como diria o poeta. A estrutura a que chamamos capitalismo é histórica. Ela emerge, como proto-capitalismo no fim da Idade Média e se consolida como estrutura acabada na Inglaterra da Revolução Industrial, para se expandir e tomar o mundo todo nos próximos séculos, graças a superioridade técnico-militar dos povos mercantilistas e capitalistas em relação aos outros, não capitalistas.

O Capital é um Deus recente, cujo nascimento se deu no fim do século XVIII, após uma gestação de séculos. Mas depois de seu nascimento, enquanto houver capitalismo, ele será sempre o Mesmo, idêntico a si, ou seja, eterno.

O Deus-Natura, a Dádiva e o Capital

Talvez o Capital seja um Deus da categoria do Deus-Natura de Espinoza e da Dádiva do famoso ensaio de Marcel Mauss: um Ser (natural ou social) inconsciente e onipresente que constitui e governa o mundo com suas leis férreas. No caso do Deus espinozista, trata-se do governo geral do cosmo. No caso da Dádiva e do Capital, trata-se do governo do mundo social, ou cultural - para usar o termo dos antropólogos.

A Dádiva e o Capital são formas sociais construídas de forma coletiva e inconsciente pelas sociedades, mas que acabam por se autonomizar e governar o mundo social e psíquico dos seres humanos. Mauss sugere que, antes do capitalismo, a “economia” da Dádiva era a forma social que governava as mais variadas culturas, principalmente as chamadas primitivas, que não conheciam o estado. A Dádiva seria, no dizer de Mauss, um fato social total, que fundava e guiava os comportamentos, a organização social, as mentalidades, os afetos, as crenças, os meios de produção, as trocas etc.

A Dádiva variava de cultura para cultura e Lévi-Strauss certamente ambicionou, com seu estruturalismo, achar-lhe a forma geral, o Deus-Dádiva universal por detrás dos mitos particulares. Em todo caso, a Dádiva, como fato social total, constituiria o fundamento de muitas (talvez todas) culturas pré-capitalistas, segundo a hipótese de Mauss.

In: Política e sujeito no capitalismo em colapso

01 março, 2021

As pessoas não sabem do seu Deus

As pessoas não sabem do seu Deus

Não há evidências de que existam deuses sobrenaturais e os que neles creem se fiam na fé para afirmarem sua existência e poder.

Marx, no entanto, provou a existência do Capital como motor imóvel (Deus) do capitalismo, descobrindo, inclusive suas leis tendenciais que a história não cessa de confirmar. Descobriu, portanto, a estrutura (capitalismo), seu centro (Capital) e sua gramática (leis). Mas quase ninguém, principalmente os economistas  do sistema, sabe ou quer saber da verdade sobre Capital, essa forma social que funciona efetivamente como um Deus cego, abstrato, quantitativo e voluptuoso. Quase ninguém quer ver esse sujeito automático que nos moldou à sua imagem e semelhança e nos move desde o fundo da alma.

Um Deus inventado por nós, como todos os deuses, mas que, mais que os outros, efetivamente dá forma e movimenta o nosso mundo de acordo com sua vontade. O primeiro Deus que existe objetivamente e de forma autônoma dos seres humanos e que, por isso, não necessita de crença, templos ou sacerdotes-vigias instituídos.

O capital não necessita nem mesmo que se saiba dele. Aliás, ele existe e se reproduz melhor quando as pessoas não sabem dele e de sua onipotência. Assim podem fantasiar que creem e se guiam por deuses e crenças mais afetivos ou úteis à humanidade, como Cristo, Alá, Razão, Ciência e outros. Fantasiam servirem a outros deuses quando suas ações, afetos, moral e visão de mundo são constituídos e mobilizados, de fato, pelo Capital: Ser indiferente às pessoas e suas angústias e que as instrumentaliza para sua reprodução.

O Capital é um Deus?

Moishe Postone, em Tempo, trabalho e dominação social, mostra que há duas temporalidades do capitalismo: o tempo abstrato do capital e o tempo histórico do mundo. O primeiro, assentado no tempo cronológico do relógio, não muda nunca e é o fundamento do valor, que se define como a quantidade de tempo de trabalho necessário para produzir uma mercadoria qualquer. O tempo histórico, por sua vez, se acelera sem parar, pois quanto menos tempo de trabalho for necessário para se produzir uma mercadoria (quanto maior a produtividade do capital), mais barata ela se torna e o primeiro capital particular que conseguir a proeza tende a dominar o mercado. E para isso acontecer é necessário avançar a técnica de produção e a ciência constantemente, substituindo trabalho vivo por máquinas.

Esta revolução técnico-científica permanente do capitalismo acelera o tempo histórico para que o tempo abstrato do valor continue o mesmo. Moishe Postone denomina o capitalismo de totalidade direcional. Talvez fosse mais correto dizer que se trate de uma estrutura, cujo centro é o Capital e seu tempo abstrato, sempre idênticos a si mesmos, enquanto a periferia é o mundo (humanos, técnica, máquinas, natureza) que se  organiza e se desenvolve segundo as leis do Capital, o qual, para permanecer idêntico a si (atemporal), necessita que o tempo histórico do mundo avance de forma acelerada.

A estrutura pressupõe um centro, um ser, um motor imóvel sempre idêntico a si e que produz a gramática (lei) que governa o movimento estrutural. No capitalismo, o Capital é este centro atemporal, onipotente e onipresente.

Se isso não for um Deus, o que seria?

In: Política e sujeito no capitalismo em colapso

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...