As lutas de resistência dos uberizados

Uma coisa me intriga na resistência dos trabalhadores uberizados/precarizados à superexploração de seu trabalho. Esses grupos de resistência não formam uma coletividade como o sindicalismo tradicional, que propõe, pelo menos em teoria, a solidariedade como base da sociedade, com ideias coletivistas e ações políticas em favor de reformas (nem digo revolução) humanitárias do capitalismo, que beneficiam sua categoria, sim, mas também todo o conjunto da população. Essa visão universalista da solidariedade permitiu, no passado fordista, a união dos sindicatos com outros setores progressistas, inclusive industriais, na construção de um projeto social-democrata que tentava ao menos frear a dinâmica excludente e concentradora do capitalismo.

A resistência dos uberizados ao novo capitalismo digital pós-fordista, ao contrário, se baseia numa solidariedade restrita a seus próprios pares e visa quase que exclusivamente o ganho monetário: são raras as movimentações por direitos coletivos, como limites à jornada de trabalho, carteira assinada, previdência etc. Uma solidariedade que eu até classificaria como doentia, pois nutre, em relação a outras categorias mais bem remuneradas ou formalizadas um certo ressentimento que, não raro, extravasa para o ódio. Ódio que também é direcionado à política institucionalizada e aos políticos de carreira, inclusive os progressistas que, em sua visão, além de corruptos, pouco fazem pelo trabalhador e, quando fazem, é para os formalizados e funcionários públicos. 

Trata-se de uma resistência reacionária, baseada no individualismo e na visão de si como capital individual (auto-empreendedor) que não necessita da luta coletiva e nem mesmo da coletividade para viver, pois consideram que se os “corruptos” e “interesses ocultos” não atrapalhassem, poderiam viver por conta de seus próprios méritos e sua  vontade férrea de trabalhar. A revolta acaba por se tornar moralista (do empreendedor honesto contra os parasitas corruptos) e baseada em teorias da conspiração (os interesses ocultos de grupos sociais malvados), de caráter reacionário e, no limite, em casos de crises agudas como agora, se torna fascista.

O reacionarismo de longa data de grande parte dos taxistas e caminhoneiros (categoria que militou massivamente em prol da eleição de Bolsonaro e cuja greve no governo Temer foi marcada por posições fascistas), assim como o de profissionais liberais (por ex. médicos e advogados), o reacionarismo destas categorias tradicionais se espalhou, na era do capitalismo neoliberal e do trabalho precário, para todos os trabalhadores uberizados, que não apenas se veem, mas são subjetivamente constituídos, de fato, como capitais individuais. A visão de mundo dos antigos "autônomos" é, nos dias de hoje, a de todos os precarizados e, no limite, a de quase todo mundo, já que o destino de todas as profissões, inclusive de quase todas as carreiras de estado, é a precarização.

O sujeito assim constituído, como capital individual (auto-empreendedor), independente de sua profissão ou classe social, é o estado de arte da subjetividade capitalista, a última e mais evoluída fase da forma sujeito, cuja realidade psíquica atual finalmente coincide com o seu conceito inicial, posto pelo capitalismo desde sua aurora em fins do séc. XVIII: a subjetividade totalmente absorvida pelo sujeito automático (o próprio capital subjetivado) e inteiramente dedicada à razão instrumental e à competitividade, cujo objetivo maior é o ganho, ou seja, a reprodução do capital. 

A revolta da subjetividade uberizada (auto-empreendedora) não pode ser mais conscientemente contrassistêmica, nem mesmo em seu aspecto reformista, afinal, não há o que reformar ou humanizar nas regras de mercado, uma vez que a humanidade das pessoas no capitalismo neoliberal se define por estas regras e com elas coincide. A perspectiva crítica se torna impossível ao sujeito uberizado, pois sua visão de mundo é formada (constituída) pelo sistema desde as bases de sua psique, e é por suas grades de sentido que ele vê o mundo social e suas contradições. 

Na impossibilidade de criticar o sistema, mesmo de uma perspectiva reformista, sua revolta se torna, então, moralista, reacionária e, em momentos desesperadores, fascista, que é uma forma inconsciente, irracional e destrutiva de negar o capitalismo. Mas também de negar e destruir a si mesmo, já que o capital se consolidou como o núcleo da subjetividade de toda a gente.

***

O problema dessa rigidez psíquica do sujeito uberizado, cuja estrutura mental coincide, agora, com o capital, é que a realidade do capitalismo atual é a de desvalorização do valor, concomitante à desvalorização do trabalho produtivo de valor, cada vez mais substituído pela automação. A resultante dessa crise estrutural do sistema produtor de mercadorias é um choque entre, de um lado, a realidade social que marginaliza e torna supérflua a maior parte das pessoas, cujas capacidades laborativas não interessam mais ao mercado, e, de outro lado, a mentalidade ultracapitalista dos indivíduos, que idealizam o livre mercado como o um ambiente natural e amigável para as "pessoas de bem", que são as trabalham e empreendem nele de forma honesta e dedicada.

Esta contradição externa entre o interior psíquico e exterior social, ou seja, entre a mentalidade empreendedora constituída de forma a acreditar que o sucesso depende apenas do esforço honesto, e a realidade que exclui da vida social cada vez mais "pessoas de bem", esforças e honestas, esta contradição entre dentro e fora faz despertar uma outra, que se desenvolve no interior do psiquismo do homem moderno e pós-moderno. É a contradição interna entre o sujeito automático e os aspectos psíquicos que precisam ser reprimidos para  que ele seja o senhor da mente humana. 

No interior da subjetividade, o capital, ao capturar o psiquismo, agencia-o como sujeito automático, configurando e promovendo a centralidade de dois atributos essenciais para a pessoa se tornar um trabalhador (ou proprietário) útil, à reprodução do capital, que são a racionalidade instrumental e a competitividade. Todos os demais aspectos da psique humana, como a afetividade, a ludicidade, a empatia e as tendências comunitárias são subordinadas aos dois atributos centrais. Para isso, devem ser severamente restringidos em seu desenvolvimento, disciplinados e adestrados para servirem ao capital, causando um grande mal-estar psíquico, que se expressa na sociedade moderna como tédio, indiferença, ódio, angústia e/ou ansiedade, os quais, não raro, resultam em escapes individuais, como é o caso dos vícios de várias espécies, em compras, redes sociais, jogos de azar, videogames, drogas, comida etc. 

Ambas as contradições são em boa parte inconscientes, mas a contradição interna é praticamente imperceptível aos sujeitos e sua dinâmica de recalque se desenvolve de forma quase autônoma no inconsciente psíquico individual, mas também da coletividade, uma vez que a forma sujeito, embora implique na atomização dos indivíduos, é coletiva. O adestramento para o capital e a repressão de aspectos essenciais da psique humana, como a ludicidade e a empatia, por exemplo, empurra-os para o inconsciente, onde eles formam um "duplo sombrio" da psique consciente, cujo desenvolvimento se dá sob as rédeas do medo e do ódio, como costuma acontecer  com todos os conteúdos reprimidos. São esses "demônios interiores" do psiquismo individual e coletivo que emergem como fascismo nas crises existenciais do capitalismo, como a que estamos vivendo.

E são esses "duplos sombrios", esses "demônios interiores" que parecem irromper como solidariedade doentia (que necessita do ódio ao outro) e irracionalidade nas revoltas reacionárias dos uberizados e precarizados, sujeitos empreendedores cuja crítica consciente ao capitalismo como sistema é bloqueada por sua estruturação psíquica centrada no capital (sujeito automático).


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ultimato

Gaza - Palestina

Seção de Condicionamento Límbico