28 setembro, 2020

Em defesa da antipolítica

Não é só o Brasil, é o mundo que está numa enrascada. Nem a política econômica keynesiana, nem a neoliberal e nem a combinação de ambas, como o PT tentou aqui com seu social-liberalismo (e Blair já havia tentado na Inglaterra com a terceira via) funcionaram para diminuir as desigualdades e retomar o crescimento vigoroso do capitalismo, sem o qual se torna impossível uma política de distribuição de renda de longo prazo.

Depois dos anos dourados do Pós-Guerra,o capitalismo entrou em decadência nos anos 1980, com a era neoliberal tentando recuperar a lucratividade em queda. E parece que o sistema entrou definitivamente na era do colapso a partir da crise de 2008, abrandada com injeções maciças de capital promovidas pelos Bancos Centrais do mundo que, longe de resolvê-la, apenas empurraram a bolha financeira com a barriga.

A grande esperança do mundo capitalista repousa na China (e seus parceiros orientais), que pode assumir a posição de império e, quem sabe, relançar o capitalismo numa nova era de crescimento. O Ocidente branco de olhos azuis certamente ficaria com seu orgulho ferido ao ser superado pelos amarelos de olhos puxados, mas engoliria seu orgulho e racismo e se sentiria aliviado e agradecido aos chineses por salvarem o capitalismo mundial e sua cultura pós-moderna.

Mas talvez isso não passe de esperança vã. Veremos se a China conseguirá ser a locomotiva de um mundo em que a taxa de lucro (o verdadeiro motor do capitalismo) não para de cair. Nós, ocidentais, olhamos para os orientais com um misto de fascínio, inveja e medo. Sua sabedoria e disciplina milenar os faz parecerem invencíveis diante dos desafios do capitalismo, mas também invencíveis para nós. A paranoia do vírus chinês é apenas uma atualização tosca que o neofascismo faz do misto de medo e admiração que nutrimos por eles.

Em todo caso, ver os orientais como infalíveis, é mais uma mistificação de um Ocidente amedrontado. O Japão, por exemplo, estagnou com toda a sua disciplina guerreira taoísta-budista e dificilmente a milenar obstinação confuncionista dos chineses vencerá a queda da taxa de lucro por mais que seus trabalhadores se sacrifiquem à superexploração do trabalho em graus cada vez mais desumanos. Mesmo porque o grande capital industrial sempre atinge uma fase em que é mais vantajoso substituir humanos por automação - e esse momento está chegando na China, cada vez mais automatizada. O problema é que essa vantagem para o industrial particular se transforma numa desvantagem para a economia em geral, pois acelera a queda da taxa de lucro, sem falar que provoca desemprego estrutural.

Então, é mais provável que nossa esperança (e medo) na invencibilidade oriental dos chineses seja frustrada, como os japoneses nos frustram atualmente. Não há cultura milenar que resista às demolições da dinâmica capitalista, na qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”, exceto o capital, é claro.

Desânimo, medo, raiva e antipolítica

O resultado “psíquico” de décadas de decadência (1980-2008), seguidas da última década de colapso (2010), é uma descrença geral com o mundo pós-moderno, sua política e suas instituições democráticas. As pessoas estão desanimadas, pois sabem que elas e seus descendentes terão uma vida cada vez mais dura e próxima da pobreza. A ascenção à classe média se torna uma miragem para poucos. Quem já “fez o pé de meia” luta para não cair e teme pelos filhos, mesmo que estes tenham uma boa formação.

Eu insisto na perspectiva desanimada do “homem médio” porque ela é generalizada, não apenas no país, mas no mundo. Sugiro, inclusive, que cada um faça sua “pesquisa qualitativa” de verificação do desânimo. Converse com pessoas aleatoriamente, de direita ou esquerda, bolsonarista ou não, evangélico ou católico, classe média ou pobre. Não fale de política imediatamente nem tente um confronto de posições. Pergunte sobre a vida, o ganha pão, os negócios, a carestia, o emprego...

As primeiras respostas serão padronizadas, recorrendo ao mérito pessoal, ao valor dos estudos e do esforço, e à dignidade do trabalho, não raro acompanhadas de um otimismo de quem será premiado por suas virtudes. Mas quando você começa a perguntar mais detidamente sobre o mercado de trabalho ou os negócios, sobre o estado e os serviços públicos, sobre as coisas básicas da vida, como alimentação, moradia, transporte, educação etc, o quadro se torna sombrio e as perspectivas se afunilam num abismo de desencanto que beira o desespero.

Aí você perceberá que no fundo (no inconsciente, mas já quase emergindo para a consciência) as pessoas estão sem esperança com nossa sociedade, não veem futuro no mundo atual, estão com medo, se sentindo impotentes e raivosas. E a resultante disso tudo é uma profunda aversão à política, à democracia e às instituições liberais: eleições, poderes, partidos, sindicatos, estado de direito

O homem médio desconfia que o jogo democrático e o estado de direito, no fim das contas, apenas beneficiam os ricos e o grande capital, que o voto é inútil, que direita e esquerda são dois lados da mesma moeda e que o povo é apenas um espectador impotente no grande circo da democracia liberal - e também nos circos políticos dos regimes autoritários, que não escapam do desencanto com a política.

Ao se negar a política há que se negar o capitalismo

E como dizer que o homem médio está errado a respeito disso? O diagnóstico a que o povo está chegando em relação à democracia é o mesmo de Marx: apesar de sua máscara popular, o estado e a democracia servem apenas aos ricos, ao 1% e seus capatazes de classe média, muitos deles encastelados no estado: juízes, burocratas e políticos. Principalmente estes que, no fim das contas parecem ‘decidir’ os rumos do aparato estatal, e sempre contra os pequenos e a favor dos grandes, levando, não raro, uma pequena (mas escandalosa) parte do butim.

Na verdade, corrigiria Marx, a democracia e os políticos não servem aos ricos e sim ao capital, essa riqueza abstrata da qual o 1% é apenas seu representante. Essa diferença é muito importante e é isso que o “homem médio” não consegue ver, não por insuficiência intelectual, mas por conta do que eu chamaria de bloqueio psico-cultural.

O homem médio pensa que a sociedade capitalista está funcionando de forma anormal ao promover a concentração de riqueza e abandonar o povo à própria sorte. Ou, dito de outra forma, pensa que a sociedade foi corrompida por um ou vários grupos sociais poderosos e inescrupulosos, tais como judeus, petistas, ativistas, grandes empresários, globalistas, comunistas, banqueiros, políticos etc.

A verdade que o homem médio não consegue ver é que a concentração de riqueza, renda e poder nas mãos de poucos é o normal sistêmico do capitalismo e todo o seu aparato institucional (estado, democracia, partidos, leis, política etc) só tem razão de ser para favorecer esta concentração ou, no máximo, proporcionar emprego e distribuir alguma renda para o povo, a fim de prevenir o caos social.

O que conhecemos como política, com seus conteúdos e formas atuais, nasceu com a modernidade pré-capitalista, com os burgos e as cidades comerciais italianas ainda na Idade Média. Maquiavel foi talvez o seu primeiro teórico. Na verdade, até a consolidação do capitalismo, com as revoluções Industrial e Francesa, o que se tinha ainda era uma proto-política. A política como a conhecemos, fundada em instituições liberais e, depois, na democracia liberal, é recente e remonta ao fim do século XVIII - tem a idade do capitalismo e é uma instituição fundamental sua. Por isso, se rebelar contra a política implica em negar automaticamente o capitalismo, mesmo que de forma inconsciente.

A antipolítica que não é anticapitalismo se torna fascismo

Do desânimo geral para a revolta antipolítica é um pulo. O problema é que o homem médio não consegue ser coerente na sua lógica negativa. A negação da política, para ser consequente e racional, deve implicar um passo além e resultar na negação consciente do capitalismo como um todo sistêmico, para além do combate a certos grupos sociais (realmente ou imaginariamente) privilegiados.               

A política liberal e suas instituições democráticas são umbilicalmente ligadas ao capitalismo, são o ‘estado de arte’ de seu sistema de poder e provavelmente o desenvolvimento mais refinado e simbiótico do capital com a coletividade humana moderna. Foi sob a democracia do chamado Primeiro Mundo (EUA, Europa e Japão) que o capital alcançou, no Pós-Guerra, um desenvolvimento jamais visto até então: na sua técnica e ciência sem paralelos na história humana; no desenvolvimento pleno da subjetividade do homo economicus com a emergência do indivíduo de “classe média”; na sua amplitude global ao absorver todas as culturas na modernidade capitalista; e em sua penetração em todas as esferas da vida (já na sua fase neoliberal).

A revolta contra a política e, em especial, contra a democracia, significa a negação do capitalismo, pois a política, como a concebemos, é um jogo de poder estritamente capitalista. A questão é que o homem médio não pode ver que política e capitalismo são duas faces da mesma moeda, pois ele quer permanecer fiel ao capitalismo e seus valores (como o trabalho abstrato, por exemplo), mesmo negando a política. Então, ele nega a política sem negar o sistema mercantil, seu fundamento econômico e cultural, o que é uma contradição.

O homem médio cai nessa contradição porque negar o capitalismo seria negar a si mesmo e seus valores, sua identidade como homem (pós)moderno. Isso exigiria uma espécie de revolução antropológica da sociedade e seus indivíduos, algo comparável a uma mudança massiva da religião e do sagrado de toda uma coletividade.

Então, ao negar a política e permanecer fiel ao capitalismo e sua visão de mundo, o homem médio precisa encontrar outro culpado, que não o capital, pela corrupção de seu mundo. O alvo imediato são os políticos e as instituições democráticas, como o Congresso por exemplo. Mas pode se estender a outros grupos, como os judeus, os homossexuais, os comunistas, os empresários etc. A ideia é que, limpando a sociedade dos que a corromperam, ela se revitalizará em seu aspecto originário, saudável e natural, que seria, obviamente, de feição capitalista.

Mas inconscientemente o homem médio sabe (e não sabe ou quase não sabe, ou intui, pois o saber é inconsciente) que sua luta contra a política é também contra o capitalismo, que sua revolta é contra sua própria cultura que, para ele, constitui todo o mundo possível e o sustentáculo de sua identidade como homem. Então, a destruição da política implica na destruição do seu próprio mundo, primeiro, na forma de uma guerra contra o outro que, fatalmente se completa num processo de autodestruição coletivo. O fascismo é essa revolta inconsciente contra o capital que acaba por se tornar uma revolta contra si mesmo e sua coletividade. Nesse processo, os males do capital, que é um ‘ser’ amoral e impessoal, são moralizados e personalizados, ou seja, projetados num outro supostamente imoral/corrupto.

A destruição do mundo e, por fim, a autodestruição promovida pelo fascismo, embora seja absolutamente irracional do ponto de vista da vida humana, é uma consequência lógica da contradição inicial de se negar a política sem negar o capitalismo. Como política e capitalismo são inseparáveis, essa operação é impossível. Então passa-se a negar o capitalismo de forma inconsciente, com a potência destrutiva do que Freud chamara de id, cuja recusa ao prazer é respondida com violência e morte. No caso, a violência contra a civilização capitalista que é, no fim das contas, o sustentáculo identitário dos grupos e indivíduos fascistas ou não, se torna auto-violência contra sua própria sociedade - suicídio coletivo.

Todos os fascismos exacerbam fanaticamente os valores capitalistas (propriedade privada, trabalho, lucro etc), mas o resultado prático dos movimentos e governos fascistas é a destruição das bases de sustentação do capitalismo, a começar pelo estado burguês e suas instituições. O fascismo promove uma revolução inconsciente contra o capitalismo e seu desenvolvimento leva efetivamente a sua abolição. O problema é que ele não cessa a destruição, pois não pode conceber nem engendrar nenhum outro sistema social que não o capitalismo. O resultado é a guerra sem fim e uma revolução apocalíptica até que não reste nada do mundo, literalmente - ainda mais numa época em que dispomos de armas nucleares.

Para o fascista, o único mundo concebível é o capitalismo. O desejo inconsciente de destruição do capitalismo, então, se torna sinônimo de vontade de destruição do mundo. A única solução, portanto, é o apocalipse. 

As alternativas à antipolítica fascista

As alternativas à antipolítica, concebidas no interior do sistema capitalista e que visam salvar a democracia e o capitalismo de suas próprias contradições, estão fadadas ao fracasso por conta do colapso sistêmico do capital, cujas expressões mais evidentes são o desemprego estrutural e a queda tendencial da taxa de lucro, ambos provocados pela automação crescente da produção de mercadorias - uma tendência incontornável do capitalismo prevista por Marx e confirmada pela empiria.

Nem as políticas econômicas da direita neoliberal nem as da esquerda neokeynesiana podem ir muito além de administrar, e cada vez mais precariamente, o colapso do capitalismo, com o porrete no primeiro caso e programas sociais no segundo. Esquerda e direita se tornaram bombeiros das crises. Seu receituário político e econômico está esgotado e serve apenas para apagar os incêndios cada vez maiores das revoltas sociais que se alastram pelo mundo.

A política, portanto, não serve para nada mais. Todas as suas alternativas, à direita ou à esquerda, terceiras vias, centros etc. estão condenadas ao fracasso. A antipolítica do homem médio está coberta de razão (a voz do povo é a voz de Deus). A questão é que ao negar a política e não negar conscientemente o capitalismo, o homem médio cai inevitavelmente numa concepção moralista da sociedade que vê a corrupção se alastrando no mundo por força de inimigos imaginários. Por isso o povo deve eleger e apoiar um violento tirano fascista, que irá limpar o mundo do mal e dos malvados, e restaurar a ordem adâmica anterior (de boas intenções o inferno está cheio).

A única opção sensata é negar a política, como os fascistas. Nisto eles estão certos. A democracia liberal, que nunca fez jus ao termo grego ‘demo’ (povo), não serve mais. Mas para não cair no apocalipse fascista (sair da panela e cair o fogo) é preciso negar conscientemente o capitalismo, que é a base de sustentação da política, e começar a conceber e construir um outro sistema social, um outro modo de vida (comunitário, coletivistas, comunista), mais racional, distributivo e menos destrutivo, no qual as categorias capital, democracia, política, estado etc. já não fariam mais sentido. E no qual o fascismo e seu apocalipse também já não seriam desejáveis, nem mesmo inconscientemente.

Na quadra atual de colapso do capitalismo, a antipolítica é uma virtude. Mas para não degenerar no inferno fascista, ela precisa ser racional e se desdobrar, de forma consciente, num segundo momento de negação: a antipolítica só nos conduz à emancipação se for também um anticapitalismo.

08 setembro, 2020

Áureo alvorecer, por Franco Átila

você destruiu todos os sentidos pessoa
com seus labirintos infindáveis sem novelos sem meadas
mil minotauros se multiplicando derrubando a unidade do reino de si mesmo
quem sou eu desconhecido de mim mesmo
você derrubou as metafísicas matou os deuses nietzsche
há apenas a vontade de poder aquém de nossa vontade
nem mesmo o deus homem restou
a terra não está mais imóvel no centro do mundo
o homem não é mais o filho de deus seduzido pela serpente
o anticristo está a solta
as estrelas se movem os seres estão no continuum das transformações químicas
átomos se desintegrando e recompondo-se ao acaso das eras
genes se lançando na loteria das adaptações
como um vírus uma bactéria um mamífero um primata que se vê a si em abismo
em meio ao fluxo bioquímico em meio a deuses e mitos
caminhando rumo ao nada em meio ao bando à tribo à pólis
vocês que destruíram tanto     pessoa nietzsche galileu
em nome da dúvida eterna da ciência do niilismo
em nome dos abismos do ser     onde o ser não é
em nome da liberdade do homo sapiens transmutado em super homem
a utopia dos homens senhores de si perdidos de si
entregues a paixões incontroláveis que os lançam como tomates
esborrachados no muro sem sentido da vida que finda
na morte sem nenhum além
a coragem de caminhar na beira do abismo na vida sem crer
em aléns
ou aquéns
a coragem de ser indiferente a qualquer deus a coragem de matar
o deus a metafísica o todo o uno o eterno o sentido
os dadas os surrealistas os cubistas os concretistas
a morte do metro e da grandiloquência
o advento do coloquial e do discursivo na poesia
a quebra do discurso da fábula o fluxo de consciência
a ciência como abertura à refutação a incerteza é a regra
a virtude é a dúvida o macho adulto branco não é mais o centro
não há mais centros hierarquias estruturas derridas e deleuzes
adeus todos os deuses
mil derrubadas por segundo

as quebras
os desmanches
os ídolos derrubados
as críticas mais ferinas e corrosivas
tudo
para emergir do caos civilizacional
o Deus que de fato existe
independente de qualquer crença
Pai único e verdadeiro
a pairar sobre o asfalto e o cimento
o soberano cego frio e implacável
o Deus que nos ignora a nós
que O adoramos
o indestrutível porque incorpóreo
o inapreensível porque infinito
o incognoscível porque invisível
aquele por quem mudamos quebramos e destruímos
a nós e ao mundo
para que Ele possa permanecer uno e eterno consigo mesmo
Motor Imóvel que nos mói   (homens (pós)modernos   ápices da civilização)
na sua maquinaria implacável
o Ser em sua perfeição
Mamon



05 setembro, 2020

Vômito virulento

os corpos nos caixões
empilhados
na cova comum

os corpos nos cubículos
empilhados
nos prédios da cidade

os corpos nas casas
entre muros e concertinas
nas ruas da classe C

os corpos nos barracos
apinhados
nos morros e quebradas

os corpos espremidos
nos ônibus lotados
nas vias congestionadas
de carros gente
e vírus

o suor dos corpos
acumulado nas mercadorias
limpas
do fedor dos corpos
do cansaço e das dores dos corpos
das horas investidas
(perdidas)
nas rodas dentadas da vida

a vida inteira
transmutada
numa profusão de rodas dentadas desencarnadas
dos corpos
a vida sublimada em massas infinitas
de cifras

as almas nos cofres
empilhadas
no PIB mundial

a morte intubada
na companhia de plásticos
e eletrônica
no caixão lacrado
corpo
ao pó voltarás
sem nenhum adeus

foi Deus
foi Deus
foi Deus que quis
e daí?

um vírus não tem alma
e se apossa do corpo
para se alastrar neste corpo
e para outros corpos
um vírus não sabe de si
nem da dor do corpo que ele toma
ou da dor dos que o amam
um vírus não quer a dor
dos corpos um vírus quer
apenas virar mais vírus
(às custas das vísceras do corpo)
até o infinito da virulência

e daí? e daí?

um cifrão não tem coração
e se apossa da alma
para se alastrar nesta alma
e para as outras almas
um cifrão não sabe de si
nem da dor da alma que ele toma
ou da dor das que a amam
um cifrão não quer a dor
das almas um cifrão quer
apenas ser mais cifrões
(às custas das vísceras da alma)
até o infinito das cifras

e daí? e daí?

uma sede de morte não tem compaixão
e se apossa do povo
para se alastrar neste povo
e para os outros povos
a sede de morte mal sabe de si
ou da dor do povo possuído
ou da dor triste dos que lhe resistem
mas a sede fascista quer a dor
dos corpos e almas e quer
ser mais sofrimento e morte
(às custas das vísceras do povo)
até a devastação da vida

e daí? e daí?

eu não sou coveiro
apenas encomendo o presunto
às milícias virais e antecipo
o encontro das almas com Deus
por isso eu sou o Capitão
das hordas selvagens dos céus
e seus sacerdotes me abençoaram
e os pobres diabos velhos e doentes
(imprestáveis de cifrões)
que se vão não vão em vão
é higiene da vida
nessa lida dura e escassa
só fica o duro
da engrenagem e a graxa
e se descarta o bagaço
minha bíblia sagrada
é rato na vagina
e choque no pau
de arara e daí?
sinto muito!

os caixões empilhados
na cova comum

as engrenagens das ruas
não podem parar

a sede de combustível dos motores
a sede de amor e sangue dos corações
a sede de corpos e almas da engrenagem abstrata que engole suores
e defeca cifrões
de seu corporodadentada de circulações
sede de sangue e suor sede
de balcões e vitrines do povo
vitrificado na fúria das máquinas
desejantes de cifras suor e sangue

todo mundo quer funcionar!
um vírus bate suas bioengrenagens microscópicas
com as rodas dentadas dos cifrões
disputando o mercado carnespiritual dos corpos
e a sede de morte ri
um riso fascista
e infiltra sua sombra podre nas frinchas da carne da
alma esfarrapada de combates

três pragas se digladiando no mesmo palco-
corpoalma no mesmo parco corpo no mesmo
povo se dilacerando desde as entranhas
da carnealma se ex-
plodindo desde os abismos
infernais do corpo e do povo
corpo e povo    duas casas
possuídas pela sedentíssima trindade:
cifras, vírus e sede de morte

os suores
higienizados
nos cálculos dos ganhos

as novas covas
abertas em série
como carros
num estacionamento
números
num balancete

as novas mortes
em séries ex-
ponenciais
linhas
num gráfico de pixels

os caixões
empilhados
na cova
comum

Il Duce Der Führer O Capitão
as sombras podres da alma
metástases por todo o espírito
do tempo do povo infernal
o gozo da tortura do domínio
a humilhação o assassínio
dos fracos em nome d
O Cristo

o abismo do abismo do abismo
ódio e rancor ódio
e rancor ódio
e rancor

vamos orar irmãos
para Deus iluminar
a alma dos nossos governantes
com sua luz compassiva
de ódio e rancor

os doentes
e mortos
amontoados
na enfermaria

os caixões
empilhados
na cova comum
foi Deus que quis
vida que segue
nada
pode parar
as rodas dentadas da morte
engrenadas
na maquinaria dos cifrões
e daí? e daí? e daí?

a oficina sagrada de Deus
e suas engrenagens de milagres
o milagre da multiplicação das cifras
o milagre da proliferação dos pobres
o milagre da disseminação do vírus
o milagre da virulência do desejo de
morte que se alastra nas massas ressentidas do Messias

as almas gangrenadas
as almas purulentas
as almas virulentas
untando as frias engrenagens
da maquinaria dos cifrões
com o fogo ardente do cristofascita
ódio e rancor

o ar pútrido de vírus
o vento gelado de cifras
o fogo de ódio e rancor
                                        soprados
num só bafor
pelo Deus-
Desejo-de-Morte
no pasto
seco da alma
do gado em agonia
              em carne viva
e alegre
     de sua sina suicida

o desconhecido da noite
caminha
entre a solidão e o abismo
uma pátria no punhal do ódio
     os caixões empilhados na cova comum
as sombras avançam no poço de lama
céu de sal chuva de punhais
nos corações coroados de alarmes
    os pulmões inflamados nos leitos lotados
as almas se aninham em grades
mentes-concertinas no concerto do medo
    as portas fechadas dos hospitais
o desconcerto dos céus
cavalga nuvens de mentiras
o bafo das bocas de fé
    a falta de ar até o último suspiro
a multidão de mendigos
do outro lado da rua
o enxame de zumbis infectados
da fé dos homens de bem
fecundados do espírito santo
    um corpo um número a mais

os motoboys e ubers atravessam o asfalto dos confins das cidades da patriamada entre as engrenagens de aço dos cifrões moendo almas e pulmões o deus infecta as vísceras do espírito de ódio e rancor um pastor vomita a sede de morte e cifras na boca abençoada de sombras dos fiéis nas engrenagens do morticínio moendo corpos e suores cagando um fluxo contínuo de cifrões ao infinito abstrato das cifras e o suor e o sangue e os corpos e os caixões caindo na cova comum das almas supérfluas flutuando entre o céu e os sete círculos emaranhados do inferno de ruas muros edifícios fios circuitos neurônios motores e chips

a roleta russa de vírus o funil das cifras a vida e a fortuna por um golpe de sorte um fio de acaso mas no coração de mãe do desejo-de-morte sempre cabe mais um milhares milhões de corpos fascistas contagiados da fúria das sombras da putrefação da alma em gozo do espírito das massas ejaculando a gosmavômitomerdaurinaepus da pestilência de ódio e rancor em nome de cristo da pureza do mundo da luta do bem contra o mal da punição do imoral se levanta um líder um guia um capitão-messias e sua boca-de-ânus nos convocando em massa nos transmutando em massa a chafurdar na sua divina massa de merda abençoada por santos sacerdotes missionários auxiliando o messias a tocar o berrante do apocalipse o rebanho ao abismo no pastoreio da morte

o ovo da serpente está sempre se gestando no útero da maquinaria abstrata das cifras na moenda de suores e sonhos nas rodas dentadas da alma transmutada em cálculos reluzentes o ovo do desejo-de-morte está sempre no útero de mamon o ovo de ódio e rancor o mesmo ovo fascista de sempre mais que estar o ovo é o ovo ser o gérmen do novo deus da morte uma engrenagem de trevas se fabricando a si mesma por entre as engrenagens das cifras uma engrenagem podre oculta na máquina reluzente das fortunas um monstro pronto para se parir-explodir de dentro do corpodentado das cifras um filho bastardo do cristomamon com a serpente de ódio e rancor

tudo começa num rio subterrâneo de merda num urro de raiva travestido num canto de amor a pedra fundamental a peça primordial da máquina de assassínio em massa é um canto de amor evocando a pureza imaculada das eras o paraíso perdido ofendido pela serpente infernal do pecado de morte morte aos pecadores morte às bichas morte aos macumbeiros morte aos comunistas morte aos políticos morte aos ativistas fogo na carne dos imorais fogo na face corrupta da terra em nome da inocência adâmica do mundo das almas alvas e viris dos filhos de deus do homem trabalhador puro e honesto pai de família das pessoas de bem amém




O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...