“Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Sob o capitalismo o tempo histórico se acelera de tal forma que a mudança se torna rotina. Ciência, técnica, vida cotidiana, costumes, moral, visões de mundo, tudo se encontra em permanente transformação.
No campo do pensamento não é diferente, a começar pela filosofia que demoliu a teologia e, num processo de revolução interna permanente, demoliu todas as sua ontologias, criticando impiedosamente o pensamento do Ser, da Estrutura, da Razão, do Sujeito e da Ideia.
Nas esteira dos demolidores do Ser da filosofia, cujo maior representante é Nietzsche, todas as humanidades e ciências sociais recusaram o pensamento do Ser, seja ele anterior à modernidade, que se afirmava explicitamente como grande narrativa, sejam o que surgiu no seu decorrer, como o marxismo e a psicanálise, que se propunham escapar das armadilhas ontológicas do Ser.
Os intelectuais do pós-modernismo, auge da crítica e demolição do ser, reprovavam as ideias de Marx e Freud que, sob o disfarce relativístico da historicidade e do inconsciente, não passariam de grandes narrativas trans-históricas e etnocêntricas, fundas, portanto, no Ser.
O fato é que todas essas demolições em série, de demolidores que destroem os edifícios anteriores de outros demolidores, num processo contínuo (afinal Marx e Freud foram demolidores em seu tempo), prestou um grande serviço ao Capital, ao varrer as velhas concepções de mundo atreladas a suas fases obsoletas da modernidade, para o surgimento de novas estruturas de pensamento, necessárias aos constantes renascimentos do capitalismo.
A fúria contra o Ser, que marca o pensamento moderno, limpou incessantemente o terreno espiritual da modernidade de todos os Deuses: Jeová, Alá, Cristo, Razão, Trabalho, Eu, Sujeito etc.
A ironia é que (com a exceção da teoria do valor-trabalho de Marx) toda essa assepsia ontológica quase nunca desvendou e menos ainda criticou o Ser dominante da modernidade capitalista: o Capital. E ainda o reforçou, ao demolir seus incômodos concorrentes.
Todos os filósofos da morte de deus, da negação do ser e da superação das grandes narrativas se recusaram a olhar na face do Deus Capital para desconstruí-lo. Antes de Marx, nem sequer o imaginaram, como é o caso de Nietzsche. Depois de Marx, desdenharam de sua descoberta, como Freud, Heidegger e os pensadores do pós-modernismo, ou não deram o devido peso à sua teoria do valor-trabalho, que desvenda o capital como centro estrutural da vida moderna: é o caso do pós-estruturalismo francês, à exceção de Deleuze e Guattari (mas mesmo estes dois não partiram da teoria do valor-trabalho).
Essa cegueira, voluntária ou não, ao Deus de fato da modernidade (o Capital) transformou os demolidores de deuses ajudantes da construção do novo reino sagrado, o capitalismo. Ao limpar a terra dos deuses celestiais (Cristo, Jeová, Alá) e terrenos (Razão, Homem, Eu), abriram caminho para a ascensão do novo Deus.
28 fevereiro, 2021
Os iconoclastas modernos são crentes involuntários
14 fevereiro, 2021
Há um muro que à frente se amontoa (Por Álvaro Assis)
Há um muro que à frente se amontoa
Uma parede sem portas e janelas
Um sepulcro lacrado sem arestas
Contra isso, um homem pré-moldado
Sem vergalhões, embora a ferrugem
Deixou de imaginar o túnel, deixou de imaginar as trepadeiras, deixou...
Está lá e pronto, sem picareta, sem ponteiro
Não anseia desenhar com tijolo um ponto de fuga
Ou fazer corda de lençóis
Tem apenas uns poucos pregos no bolso e a testa como martelo
Quanto mais se aproxima, mais o muro cresce
Quanto mais se distancia, tanto mais as pernas se conformam
Primeira impressão
Uma imagem forte dá início ao poema. O muro se forma por si, como barreira intransponível, prisão-sepulcro do homem, cujas armas para superá-lo são uns poucos pregos e sua testa-martelo. Mas ele não tem armas por que é a realidade ou por que não deseja um "ponto de fuga" ou uma "corda de lençṍis"? É o muro da existência? A pedra no caminho? Barreiras sociais? Frustrações, desencantos, impotências do humano? O muro parece ter vida (quanto mais se aproxima mais o muro cresce), animada pela vivência do homem, que faz o muro crescer diante da possibilidade de sua liberdade, da aproximação dos limites autoimpostos. Quando se distancia do muro o homem se conforma, se acomoda em sua prisão-sepulcro. Pode até ser o muro do capitalismo, da sociedade da mercadoria... A linguagem é direta, mas onírica, atravessada por cortes semânticos e justaposições de imagens. Versos longos com uma bela sonoridade. Atentar para a aliteração em "r" em todo o poema e principalmente nos três primeiros versos: o amontoar da consoante (presente em "muro") ressoa o amontoar do muro de que os versos falam.
Poema recolhido no Mallarmargens.
13 fevereiro, 2021
Franklin (por Caio Resende)
O que sei? O que não sei?
O caminho é sempre breve.
Poucos olham ou sentem.
Isso é a vida: ser é uma pausa.
Trago a ruína de outras manhãs
e um precipício ancorado na língua.
A persistência inconsútil
do que é lida e distância,
do que não é a clériga calmaria
de domingos em família.
Ouço o crepitar dos anos
e procuro a minha face,
como se uma mão gestada na sombra
tocasse o útero de uma palavra.
Nunca fomos exatos.
O que nos orbita é vagaroso desapego.
Uma tarde – aquela. O conhaque,
o outono de um sorriso.
E me acho bem com os mortos –
calar é minha única ciência.
Nossa natureza ecoa das coisas.
Viver é ser vasto de ausência.
Primeira impressão:
Não conhecia o autor. No começo me pareceu poesia (à moda) de velho: quem usa, num mesmo poema, palavras como inconsútil, crepitar e clériga? O último verso me lembrou Fernando Pessoa, mas me parece um autor com voz própria. Ando muito desconfiado de poemas contemporâneos em primeira pessoa, que costumam ser auto-elogiosos e auto-afirmativos em demasia. O eu lírico pós-moderno parece narcísico demais, prefiro os eus drummondianos auto-corrosivos e desiludidos de si. Mas o eu lírico neste poema, embora não seja irônico nem decadente, é contido, sóbrio e grave, estóico-heróico. A linguagem simples e direta ressalta as boas imagens como "vasto de ausência" e "precipício ancorado na língua".
Recolhi o poema do Mallarmargens.
O engenheiro onírico
Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho. Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos, calçadas e ruas, tudo muito...

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Aura que bela palavra! Mística, aérea, etérea alvorada da vertigem d'alma. Mão, rosto... o corpo à esquerda me formiga. Fornicam na cabe...
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não queira que eu esteja aqui não queira que eu seja agora saber-me inteiro não queira coisa que nem mesmo eu quis há tantas metades minhas ...
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