25 fevereiro, 2020

O fascismo é o espelho sombrio do capitalismo


O que é o fascismo? O Governo Bolsonaro é fascista? As duas questões estão no ar e foram levantadas num artigo recente por André Mota Araújo, que não considera o governo brasileiro fascista e provavelmente não o considera os fenômenos Trump nos EUA, Salvini na Itália e Orbán na Hungria, para ficar apenas em alguns poucos exemplos de autoristarismos de extrema-direita atuais.

As características do fascismo que Araújo elencou (boa parte delas extensíveis ao nazismo) são, na maior parte, de feições administrativas e econômicas e muito próximas do receituário do keynesianismo e taylorismo. Resultam de medidas tomadas pelos governos fascistas após a tragédia econômica e social que o liberalismo extremado provocou em boa parte dos países europeus após a crise de 1929.

Os critérios de André Araújo para definir o fascismo são, portanto, políticos, administrativos e econômicos, além de bastante específicos. Por tais critérios, de fato, os governos conservadores e de extrema direita da atualidade não são fascistas e Araújo está correto. Aliás, se caracterizarmos o fascismo dessa maneira, dificilmente ele se repetirá nos dias de hoje ou no futuro, pois sua manifestação como fenômeno político estaria condicionado ao contexto histórico do entreguerras que certamente não se repetirá.

O fascismo eterno de Umberco Eco

Na contramão da restrição histórica de André Araújo, Umberto Eco, num texto muito conhecido, faz uma lista 14 de fenômenos culturais, psíquicos e políticos que, havendo um movimento político que tenha alguns deles como características, seria fascista.

Ao contrário de Araújo, a lista de Eco amplia o leque do fascismo no tempo e no espaço. Se  adotarmos sos critérios do italiano, o governo Bolsonaro seria fascista de carteirinha, assim como o de Trump, Orbán e Duterte, mas também a teocracia iraniana do aiatolás e grande parte dos governos autoritários de direita que assolaram o mundo no século XX. E é bem provável que encontraríamos traços fascistas em reinos medievais, liderados por tiranos loucos ou fanáticos. Nem por isso, Eco deixaria de ter razão, tendo em vista os critérios bastante amplos que ele utiliza para identificar o fascismo.

Uma outra forma de conceituar o fascismo

Quem está certo? André Araújo ou Umberto Eco? Na verdade, ambos estão, de acordo com seus critérios, e esta não creio que seja a melhor questão. Na verdade, é importante ter um conceito de fascismo que nos permita definir um governo ou um movimento político como tal, apenas na medida em que a classificação seja útil para entendermos nossa época em relação a outros períodos e possibilite-nos criarmos formas de resistência eficazes contra tendências autoritárias da sociedade, sejam fascistas ou não.

Proponho uma maneira diferente de entender o fascismo, mais próxima da que Moishe Postone tentou em outro artigo e que, ao invés de utilizar um método fenomenológico de enumerar características, procura entender as causas do fascismo e sua lógica interna.

Uma premissa fundamental de Moishe Postone é que o nazismo e o fascismo são, na verdade, revoltas contra o capitalismo, mas que contraditoriamente se expressam nos próprios termos capitalistas, ou seja, o fascista não sabe exatamente contra o que é sua revolta. Por isso ele projeta o seu objeto de ódio em grupos sociais específicos, que se tornam bodes expiatórios e fonte de todo o mal do mundo. No caso do fascismo italiano e do nazismo alemão, o povo demoníaco que corrompia o mundo era principalmente os judeus, mas também os comunistas, os homossexuais e os ciganos.

A corrupção é uma obsessão fascista e a identificação e punição (com prisões, linchamentos físicos ou morais, torturas e até a morte) dos corruptos, responsáveis pelo mal no mundo, é o ideal que mantém a malta em permanente estado de excitação e mobilização em favor das lideranças fascistas e contra os grupos sociais identificados com o mal. Esta interpretação moral dos problemas do mundo substitui, assim, a verdadeira causa do sofrimento do povo, que seria a lógica implacável da mercadoria, que mostra sua face mais excludente e desumana em momentos de crise aguda do capitalismo.

A crises capitalistas e a explosão do fascismo

Não vou tentar, neste texto, empreender uma compreensão mais detalhada do fascismo, que já fiz aqui e aqui. Meu intuito é mostrar como é possível construir um conceito mais fecundo de fascismo, que será útil para a compreensão do momento atual de crise ampla e global, em conexão com os momentos iniciais do fascismo, na década 1930.


No texto de Umberto Eco, a sexta característica do fascismo é que ele “provém da frustração individual ou social” e o autor ainda assevera, em tom profético, que “em nosso tempo, em que os velhos ‘proletários’ estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório”.

Eco está correto, a frustração e o ressentimento do "homem médio" são afetos essenciais ao fascismo. E o gatilho que faz estes afetos sombrios virem à tona é a crise, mas apenas quando ela se manifesta de forma aguda e ampla, abarcando a economia e a política, mas também a esfera moral das sociedades. Era o caso da década de 1930 pós-1929 e é o caso da atualidade pós-2008. Ao se sentirem em decadência ou à beira do abismo da pobreza, os extratos médios se revoltam explosivamente, não contra o capitalismo, mas contra grupos sociais específicos, supostamente responsáveis pelos males do mundo.

Na Alemanha de 1930, os bodes expiatórios eram o judeus, ciganos, gays… No Brasil atual, são os políticos progressistas (esquerdas/comunistas) e fisiológicos, os LGBTs, os ativistas, os "macumbeiros"… Tais grupos seriam portadores da corrupção da sociedade, que não é apenas política e econômica, mas também moral, ou seja, ela se alastra para a esfera dos costumes e atenta principalmente contra a virilidade e a superioridade da maioria, geralmente branca e masculina - e no caso brasileiro, cristã.

Uma característica básica de todo fascismo é a tentativa de imposição de um grupo social majoritário e dominante, considerado superior, em detrimento de grupos sociais que, ou são corruptos e que devem ser eliminados (judeus, gays, petistas, feministas, ecologistas); ou são inferiores, a serem dominados (mulheres, índios, negros).

Ora, essa formação de uma maioria pura e virtuosa, em oposição a minorias supostamente degeneradas e/ou corruptas decorre da necessidade de se encontrar um ou vários grupos sociais para se atribuir a culpa moral pelos problemas do capitalismo que, na verdade, não são morais e resultam funcionamento turbulento do próprio sistema.

A solidariedade doentia do fascismo contra a competitividade capitalista

O fascismo não se caracteriza tanto por seus conteúdos políticos, econômicos ou técnicos como, por exemplo, eficiência administrativa, política econômica keynesiana, aversão ao intelectualismo, frustração de classe etc. Alguns destes conteúdos até se repetem em vários fascismos, como os dois últimos, mas como decorrência de seu funcionamento intrínseco.

Em vez de tentar entender o fascismo por seus conteúdos, ou seja, descrevendo-o fenomenologicamente através de uma série de características, como fizeram Umberto Eco e André Araújo, quero entendê-lo procurando apreender sua forma e sua “gramática”, ou seja, sua lógica interna. Isso porque o fascismo, assim como o capitalismo, é extremamente plástico, podendo assumir várias máscaras de conteúdo.

Por exemplo, o fascismo e o nazismo clássicos se aliaram aos industriais italianos e alemães, adotando uma política econômica keynesiana, típica do progressismo. No Brasil de Bolsonaro, a aliança se deu com as elites rentistas e agropecuárias, adeptas do neoliberalismo mais extremado.

Mas se é assim, como saber se há um movimento fascista na sociedade ou mesmo se tal movimento chegou ao poder, constituindo um governo fascista? Ora, o fascismo se caracteriza como uma reação anticapitalista inconsciente contra os dois princípios fundantes do capitalismo e que constituem a “alma” de sua coletividade (sua esfera política) e de seus indivíduos (esfera subjetiva). Esses princípios fundantes são a competitividade e a racionalidade abstrata.

Ao estabelecer a competitividade como princípio geral da sociedade e de seus indivíduos, o capitalismo se afirma como uma guerra econômica de todos contra todos, não apenas entre empresas, mas também entre estados e indivíduos. Os aspectos solidários e compassivos do ser humanos ficam em segundo plano, subordinados ao império da concorrência. O significa que acabam por serem reprimidos no inconsciente individual e coletivo.

Os efeitos da competitividade desenfreada em momentos de crise, quando o cobertor da economia se torna curto e as classes médias se veem ameaçadas de cair na pobreza, é que o que detona a revolta fascista, na forma de mobilização de ódios e ressentimentos sociais contra grupos sociais historicamente discriminados, que se tornam bodes expiatórios: mulheres, ativistas, negros, comunistas/progressistas etc. É o que chamei de bomba atômica do fascismo.

Como reação à competitividade capitalista, há a formação de uma maioria que se define menos pelo poder econômico do que por outras características mais concretas, como raça, gênero, sexualidade, religiosidade, nacionalidade etc. As características dessa maioria variam de acordo com o contexto histórico, o que demonstra a plasticidade do fascismo: se a religiosidade é secundária para definir a maioria ariana na Alemanha nazista, o cristianismo, principalmente evangélico, se torna importante para a identidade da maioria fascista no Brasil bolsonarista.

O importante é que sempre há a formação de uma maioria fascista. A coesão dessa maioria se funda numa solidariedade doentia, que se constitui a partir da irrupção dos conteúdos afetivos vinculados à solidariedade e à compaixão, reprimidos pela exigência de competitividade capitalista.

A solidariedade fascista é doentia porque se constrói a partir do ódio e do medo em relação ao outro, pois a maioria se torna uma comunidade  de iguais, apenas em contraposição a minorias que devem ser demonizadas: judeus, comunistas, gays e ciganos na Alemanha nazista; progressistas, gays, “macumbeiros” e criminosos comuns no Brasil bolsonarista. Trata-se, portanto, de uma solidariedade fundada na exclusão de outros grupos sociais demonizados, em relação aos quais seria justificável sentir medo e ódio.

Tal solidariedade é doentia também porque, além de excluir o outro, é paranoica em relação aos seus, pois se constrói por meio da desconfiança e vigilância constantes entre os indivíduos da maioria, tanto para evitar e reprimir comportamentos que caraterizem a pessoa como anormal (esquerdismo, homossexualismo, feminismo, “macumbaria” etc), quanto para não permitir que haja qualquer tipo de condescendência ou solidariedade para com os grupos minoritários que devem ser convertidos à maioria, proibidos de afirmarem como minoria ou, no limite, eliminados.

O caso da homofobia no Brasil é exemplar, pois os LGBTs são constantemente coagidos a se vestirem e se portarem como héteros (passarem despercebidos), “convidados” a optar pela cura gay e vivem ameaçados pela violência e até a morte. Com o fascismo bolsonarista, esta homofobia difusa da sociedade é assumida explicitamente por grupos conservadores  e se torna, primeiro, plataforma eleitoral e, agora, política de estado.

A solidariedade doentia da maioria, fundada no medo e no ódio do outro, e na desconfiança paranoica e vigilância permanente em relação aos seus, é uma reação inconsciente à competitividade desenfreada do capitalismo e, em geral, ela busca seus conteúdos ideológicos em velhos preconceitos, preservados pelos grupos conservadores do país.

A solidariedade doentia funciona como um cimento comunitário que tenta reconstituir o tecido social esgarçado pela desigualdade social provocada pela competição capitalista, que se agrava em tempos de crise aguda do capital. Essa reconstituição patológica da comunidade é patente no meio evangélico nacional, que reage à destruição do tecido social com a fundação de uma irmandade cuja identidade cristã se constitui por meio a demonização do outro e da vigilância militante entre seus membros.

A irracionalidade absoluta do fascismo contra a racionalidade instrumental do capitalismo

Mas a solidadriedade doentia, como reação ao princípio da competitividade, embora seja necessária para definir o fascismo, não é suficiente. Os regimes teocráticos do Oriente Médio, notadamente o Irã e a Arábia Saudita, se fundam na solidariedade doentia entre os muçulmanos (xiitas num caso e sunitas no outro) e nem por isso podem ser classificados como fascistas. Por mais que tais regimes sejam abomináveis, eles têm projetos nacionais de poder e pragmatismo político; além de se conformarem, de uma forma ou de outra, à racionalidade do capitalismo e ao jogo da geopolítica mundial.

A outra característica fundamental do fascismo é a irracionalidade absoluta. Como vimos, tanto a coletividade quanto o sujeito individual no capitalismo são constituídos por outro princípio basilar além da competitividade, que é a racionalidade instrumental. É contra esta última que o fascismo também se rebela, de forma inconsciente, não lhe contrapondo alguma racionalidade alternativa, mas liberando uma irracionalidade absoluta, explosiva e ávida por destruir a tudo e todos. Por isso, o fascismo é a manifestação politica mais perigosa da modernidade, pior do que qualquer ditadura ou totalitarismo, à esquerda ou à direita.

Por mais que os regimes fascistas se apoiem em alguma racionalidade capitalista, como o keynesianismo da Alemanha nazista ou o neoliberalismo do Brasil bolsonarista, o governo não tem um rumo definido nem uma estratégia de poder que instrumentalize os ódios e medos sociais mobilizados pela solidariedade doentia. Sua única finalidade é a guerra permanente, seja ela contra o crime comum, contras as minorias ou contra inimigos externos, inclusive a guerra interna entre suas hostes, pois todos os fascismos são marcados pela dissenção constante entre aliados e sua precária unidade se dá apenas em contraposição ao inimigo, seja ele quem for.

Um governo fascista, para se sustentar, necessita do caos e do confronto, de estar em permanente excitação combativa: é um governo em estado de guerra cujo objetivo é a destruição pela destruição.

A redução do humano à razão instrumental e à competitividade

Ora, se o fascismo fosse apenas um ressentimento de classe que assume o aspecto de uma luta moral contra a corrupção. Por outras palavras, se se caracterizasse como uma revolta contra o empobrecimento (em curso ou iminente) causado pela competição capitalista e que suscita a a formação de uma maioria reacionária fundada na solidariedade doentia, o fascismo se resumiria às classes médias e não se alastraria a todos os extratos e grupos sociais, incluindo os pobres e as elites.

Mas não é o que se verifica. A origem e base de sustentação do fascismo é o homem médio, mas, uma vez detonado, ele se dissemina como uma metástase por todo o tecido social, inclusive entre as classes abastadas, que não teriam motivos para ressentimentos econômicos e sociais, já que são vencedoras da competição capitalista.

Como vimos, além da competição, outro princípio fundante do capitalismo é a racionalidade instrumental, voltada para a eficiência e a produtividade que, por sua vez, tem como objetivo o lucro. Ela se utiliza das capacidades racionais do ser humano como instrumento para a reprodução do capital (lucro). O ser humano nascido na cultura capitalista tem o núcleo de sua psique constituído, desde o berço, pela racionalidade instrumental e a competitividade.

Desempenhar bem, no mundo do trabalho, dos negócios e até na vida pessoal, o papel de pessoa racional e competitiva (recebendo o adjetivo elogioso de “profissional”) é condição fundamental para a sobrevivência de qualquer um na sociedade capitalista – inclusive e principalmente das pessoas da elite, para manterem ou aumentarem sua riqueza.

Na prática, o que ocorre é que todos os desejos, faculdades e necessidades humanos acabam por se subordinar à razão instrumental e à competitividade. As pessoas concretas, em sua infindável riqueza existencial, acabam por se reduzirem a essas duas disposições abstratas, universais e destituídas de conteúdos concretos, como que transformadas em autômatos voltados para a eficiência e a produtividade.

Como a irracionalidade absoluta se gesta no inconsciente

A racionalidade instrumental reduz o humano a um mecanismo lógico de produção de mercadorias, ou seja, produção de dinheiro e lucro (valor e mais valor). Todo o resto da humanidade da pessoa, como afetos, desejos, imaginação, erotismo, sensibilidade etc, são submetidos à razão instrumental ou simplesmente suprimidos, seja ela trabalhadora, gerente ou proprietária.

Os contrapesos sociais que amenizam essa violenta redução do humano à razão instrumental para servir o valor são religião, a arte e a vida íntima. Mas são apenas paliativos para os efeitos devastadores que a “redução ao Um abstrato” do valor promove na psique e na política.

O resultado da redução da alma à razão instrumental é o recalque de todas as outras potências humanas no inconsciente, onde elas passam a existir como conteúdo reprimido. Como tais, elas têm uma existência semi-autônoma, regida pelo medo, ódio e ressentimento, configurando-se como verdadeiras criaturas do submundo psíquico, compartilhadas entre todas as pessoas da sociedade capitalista. São os demônios do capital. A palavra demônio não é descabida, pois é assim que as religiões denominam as zonas sombrias da psique individual e coletiva dos povos.

Esses conteúdos reprimidos pela razão instrumental, que se desenvolvem no inconsciente capitalista (ao mesmo tempo individual e coletivo) constituem o fascismo potencial que existe democraticamente em cada classe social, na verdade, em cada indivíduo da sociedade capitalista – a qual abarca todos os povos da terra, hoje em dia. Cada um de nós, portanto, é um fascista em potência, um revoltado inconsciente com a redução de nossa alma à unidimensionalidade da racionalidade instrumental a serviço da reprodução do capital

A irrupção da irracionalidade absoluta


A competição capitalista, em seu aspecto econômico e psíquico, desencadeia todo tipo de ódios e ressentimentos sociais que vão moldar a formação de uma maioria fascista fundada na solidariedade doentia. Mas este regime de ódio é só o gatilho de uma potência muito mais destrutiva que também é desperta pelo desenvolvimento fascista da sociedade, que é o da irracionalidade absoluta. Ela é a revolta do reprimido (os demônios da inconsciência) contra a racionalidade instrumental capitalista que subordina e reduz todos os aspectos da vida humana ao princípio da eficiência produtiva.

Há duas maneiras de se rebelar contra as coerções da razão instrumental: ou propondo uma racionalidade alternativa, como o socialismo, a contracultura e até mesmo o romantismo utópico; ou se deixando tomar pela irracionalidade. O crime e o vício são exemplos de “escolhas” individuais inconscientes pela rebeldia irracional. Quando a irracionalidade é contraposta à razão instrumental capitalista de forma coletiva, estamos diante do fascismo.

A irracionalidade absoluta é muito mais perigosa e destrutiva que a solidariedade doentia fundada no medo e no ódio, por dois motivos. Primeiro porque ela é disseminada, como potência oculta no inconsciente, por todas as classes e grupos sociais, não se circunscrevendo a um extrato específico. Por isso o fascismo nasce nos extratos médios da sociedade e se alastra de forma incontrolável por todo o espectro social.

Pois se o ressentimento de classe, provocado pela competição, atinge principalmente as classes médias e marginalmente os pobres, o ressentimento contra a razão instrumental está presente em todas as classes indistintamente. Mesmo as classes médias altas e os ricos, vencedoras da luta capitalista, são reprimidas em sua humanidade pelas coerções da lógica da mercadoria e sua razão instrumenal.

Em segundo lugar, os ódios e preconceitos de toda espécie, apesar de abomináveis, são geralmente administráveis e podem ser submetidos a projetos de poder que, de uma forma ou de outra, se amoldam à racionalidade capitalista, como foi o caso do racismo dos EUA e África do Sul, as ditaduras militares da América Latina e as teocracias islâmicas do Oriente Médio, para ficarmos em alguns poucos exemplos. Mas a irracionalidade absoluta do fascismo deseja apenas morte e destruição, inclusive a autodestruição, e não se submete a nenhum tipo de racionalidade, nem mesmo à lógica mercantil do capital.

A impossibilidade de se controlar a irracionalidade fascista

Em seu artigo, André Araújo chama a atenção para o fato de que a administração do governo e da economia Italiana e Alemã eram racionais, até mesmo de inspiração keynesiana. Há controvérsias em relação a isto, mas tomemos esta afirmação como verdadeira. Em todo caso, o objetivo principal do fascismo e do nazismo não era organizar a economia, distribuir renda, proteger o trabalhador e nem mesmo ampliar o estado com a conquista de outros povos, mas simplesmente a guerra ilimitada. Guerra contra os inimigos internos e externos, mas também entre os próprios fascistas, cujo governo se encontra num estado de desconfiança e conflagração permanentes.

A eventual racionalidade capitalista adotada por alguns regimes fascistas não se destina à reprodução do capital (lucro) nem às necessidades humanas, mas serve ao objetivo principal do fascismo que é a guerra e o morticínio sem fim, cuja realização constituem o gozo do desejo irracional de destruição pela destruição que governa de fato uma coletividade fascista.

Trata-se da utilização da razão como instrumentos da irracionalidade. Auschwitz era um primor de racionalidade. Como matar milhões? Utilizando-se do método industrial, bem ao estilo taylorista, com os condenados servindo de força de trabalho (custo mínimo de mão de obra), numerando-os e regulando seu sofrimento meticulosamente, incinerando-os para não restar contaminantes no solo nem vestígios denunciadores da limpeza étnica. Era uma fábrica muito produtiva e eficiente, mas que não visava produzir lucro nem bens ou serviços úteis, e sim o sofrimento e a morte, o extermínio de um povo inteiro como gozo final do desejo de destruição nazista, movido pelo misto de ódio e medo que o alemão sentia pelo judeu, bode expiatório que substituiu os males do capitalismo.

Em um outro exemplo, se a Alemanha nazista fosse governada por algum princípio racional, Hitler, diante do alerta de seus generais e ante a experiência desastrosa de Napoleão, não teria invadido a URSS, abrindo outra frente de guerra inviável para as capacidades alemãs. Os generais alemães, cônscios da loucura, poderiam muito bem assassinar Hitler, jogar a culpa nos judeus, abortar a invasão e preservar o país em nome de um projeto autoritário de poder, mas até neles a irracionalidade fascista falou mais alto que o pragmatismo militar, pois seguiram a loucura de Hitler rumo ao suicídio nacional, como Sancho Pança seguiu Dom Quixote em seus delírios.

O mesmo se pode dizer da loucura japonesa em atacar os EUA, abrindo outra frente de guerra amplíssima no Pacífico, quando sua máquina militar estava embrenhada numa luta sangrenta contra seus inimigos mais próximos no Extremo Oriente.

No fascismo, o delírio compartilhado não se resume aos círculos de poder, mas se alastra pela maior parte do povo. A irracionalidade dos líderes é apoiada massivamente pela população, que perde a capacidade de qualquer julgamento racional, pragmático ou mesmo baseado no bom senso. O povo passa a delirar em uníssono com as lideranças e as pessoas que aderem ao fascismo se tornam imunes a contra-argumentos racionais e às evidências da realidade factual, num processo muito parecido com os delírios esquizofrênicos, só que num plano político e coletivo. Os fascistas formam uma grande massa enlouquecida, transversal a todas as classes e grupos sociais.

Um regime social (des)governado pela irracionalidade absoluta é muito mais perigoso e incontrolável do que um regime autoritário de direita que se pauta “apenas” pela mobilização do ódio, medo e preconceito do povo como estratégia de poder. Pois, além de se constituir por estes afetos sombrios da direita conservadora, o fascismo se guia principalmente pela irracionalidade, que é a liberação raivosa das pulsões reprimidas pela racionalidade instrumental, o que impede qualquer elaboração de um projeto de poder minimamente racional e realista, seja como alternativa autoritária à lógica capitalista ou acomodação a ela.

Governado pela desrazão sem limites, o estado fascista tem como finalidade apenas a destruição pela destruição, cuja realização se exprime como exercício da violência, do assassínio e da guerra, que funcionam como gozo do desejo de abolição. O resultado é a destruição do outro, do mundo e, por fim, dos próprios fascistas e seu povo. Não à toa, Vladimir Safatle caracteriza o estado fascista como suicidário.

O fascismo é o espelho sombrio do capitalismo

A emergência de uma solidariedade doentia combinada com o irracionalismo absoluto é o que caracteriza um movimento social ou um governo como fascista. Estes dois princípios fundantes do fascismo são recalques do capitalismo, ou seja, se gestam no inconsciente e individual e coletivo (são, ao mesmo tempo, subjetivos e políticos) a partir de conteúdos reprimidos pelos princípios basilares do sujeito e da sociedade capitalista: a competitividade e a racionalidade instrumental.

O fascismo é, portanto, um movimento reativo ao capitalismo e, mais que isso, sua reação é simétrica aos princípios basilares do capital. À competitividade ele opõe uma comunidade majoritária fundada na solidadriedade doentia; à racionalidade instrumental da produção pela produção, opõe a irracionalidade absoluta da destruição pela destruição.

Também em relação à subjetividade abstrata e universal do capital, defendida pelo liberalismo e que, em tese, não diferencia as pessoas pelo gênero, religião ou etnia, desde que sejam produtivas economicamente, o fascismo opõe uma subjetividade concreta, discriminatória e hierárquica, que forma a maioria fascista e é definida por critérios não capitalistas, como a raça, o gênero, a religião, a sexualidade etc.

Em relação a esta última oposição, entre subjetividade concreta X abstrata, pode-se dizer que o fascismo constitui uma reação às tendências abstratizantes do capitalismo que desumanizam as pessoas e que são decorrência da redução das ricas e variadas potencialidades humanas à um sujeito assentado em dois princípios abstratos, a racionalidade instrumental e a competitividade, puras formas subjetivas aptas a transformarem qualquer conteúdo em valor e mais-valor.

Assim, a tendência fascista à concretude, à definição de grupos sociais majoritários (superiores) e minoritários (inferiores) com base em outros critérios que não o econômico (como raça, religião e gênero) é uma consequência da dupla reação à racionalidade instrumental que automatiza e in-diferencia o humano, reduzindo-o à unidimensionalidade do valor; bem como à competitividade, que alimenta e aprofunda o abismo social entre as classes sociais, às quais se constituem basicamente pela posse de renda ou capital (grandezas abstratas).

Ironicamente, o fascismo, apesar de sua sede de concretude, é tão abstrato quanto o capitalismo. Afinal, suas disposições basilares, solidariedade doentia e irracionalismo absoluto, não se constituem como conteúdos fixos ou potenciais, mas como formas que “se encarnam” em vários conteúdos, de acordo com o contexto social. Se o banqueiro judeu era o demônio para os nazistas, o bolsonarista vê no político petista/comunista e nos ativistas (LGBTs, feministas, negros, ambientais etc) a encarnação do mal. Se a indústria era o orgulho da modernidade alemão, a competitiva agropecuária e mineração brasileiras são os exemplos modernos da competitividade nacional.

Outra ironia é que, apesar de ser uma revolta contra a competitividade e a racionalidade instrumental, o fascismo defende ferozmente a competição e a racionalidade instrumental capitalista, seja a nível individual, corporativo ou estatal. Como o anticapitalismo fascista é inconsciente, a revolta das massas é desviada do sistema social e canalizada contra grupos sociais concretos, historicamente discriminados.

O fascismo se rebela inconscientemente contra as estruturas psíquicas e políticas do capitalismo (a competitividade e a racionalidade instrumental), mas superficialmente ele venera e promove a competição a razão instrumental mais desenfreadas, quase a nível da barbárie. A adoração pelo trabalho e a admiração dos que se sacrificam a ele em jornadas exaustivas, típica de todos os fascismos, é um exemplo da adesão superficial à racionalidade instrumental que reduz o humano a uma máquina de trabalhar.

A despeito da adesão superficial à racionalidade instrumental e à competitividade capitalistas, o núcleo estrutural do fascismo é formado por seus opostos sombrios, ou seja, a irracionalidade absoluta e a solidariedade doentia. Por isso, quando a onda fascista ganha força, a contradição entre capitalismo e fascismo se define sempre em favor do segundo, que acaba por instrumentalizar a psique e a política capitalistas para sua finalidade destrutiva.

Portanto a racionalidade produtiva (keynesiana) ou a financeira (neoliberal), a democracia, o estado de direito, a promoção da disciplina do trabalho e da competição mais selvagem, decorrentes da lógica da mercadoria, são comuns em todos os fascismos, mas não são mais instrumentos para a reprodução do capital. Na verdade, a própria reprodução do capital, que é a finalidade última do capitalismo, passa a ser, agora, instrumento (meio) para a (re)produção da destruição, o único objetivo do fascismo. A contradição entre capitalismo e fascismo acaba por se resolver em favor do último, num processo em que as imensas potências técnicas e racionais do capital se voltam explicitamente para a destruição e a morte.

Por ser uma reação inconsciente e simétrica ao capitalismo, pode-se dizer que o fascismo constitui o seu espelho sombrio, resultado de uma revolta cega contra os efeitos nocivos da redução do humano à racionalidade instrumental e à competitividade, reprimindo o restante das potências humanas nos submundo do inconsciente, tanto individual (psíquico) quanto coletivo (político). O fascismo é o demônio oculto do capitalismo, que emerge em tempo de crise aguda, mas que existe o tempo todo nas sombras do capital, como potência infernal à espera de uma fissura para escapar e se realizar.

Entendido dessa forma, como reação simétrica ao capitalismo, o fascismo nem é eterno, como parece sugerir Umberto Eco, nem restrito ao contexto histórico da década de 1930, como quer André Araújo. Ele é histórico, sim, mas circunscrito ao capitalismo como sistema consolidado (século XIX até o momento). Enquanto houver capitalismo, haverá o espelho sombrio do fascismo, criatura indesejada do Capital, que se move sorrateiramente nas sombras (inconsciente) do capitalismo, como o Lúcifer é o anjo caído de Deus, aprisionado no Inferno. Mas embora o fascismo exista de forma permanente no inconsciente do capitalismo, sua emergência se dá apenas em momentos de crises graves, quando a própria existência do sistema encontra-se ameaçada: a tentação do demônio espera pelo momento de fraqueza dos filhos de Deus, sabedoria milenar das religiões.

O bolsonarismo e o governo Bolsonaro são fascistas?

Creio que esta questão já esta respondida, pois o bolsonarismo (que engloba o lavajatismo judicial, as classes médias, os ruralistas, as milícias digitais e paramilitares e o cristianismo pentecostal e é aliado circunstancial das forças armadas e do rentismo neoliberal) possui as duas características fundamentais do fascismo. A primeira é a solidariedade doentia de uma maioria que se define como heterossexual, cristã, masculina, branca e de classe média ou alta. Apenas as duas primeiras são obrigatórias para se pertencer à maioria bolsonarista, mas em quanto mais dessas características o indivíduo fascista se inserir, mais normal (majoritário) ele será.

A segunda é a irracionalidade do governo Bolsonaro e dos bolsonaristas, que vai da negação da realidade factual até a mania de raciocínios delirantes em todas as áreas, desde a ciência (terraplanismo, terracentrismo), passando pela moral (controle da natalidade pela abstinência, cura gay) até a política (marxismo cultural, governos Lula e FHC socialistas). São delírios diferentes, em termos de conteúdos, do pensamento médio dos nazistas e fascistas na Alemanha e Itália da década de 1930, mas equivalentes em “grau de loucura”.

Mas a irracionalidade do Governo bolsonarista se revela mesmo quanto a suas finalidades. Delírios coletivos podem ser instrumentalizados para projetos de poder com alguma racionalidade, como é o caso do Irã dos aiatolás e do macarthismo norte-americano na segunda metade do século XX. No fascismo, porém, não há nenhum projeto de poder nem instrumentalização dos delírios da sociedade. Pelo contrário, são os delírios que instrumentalizam o poder, que passa a ser guiado pelo desejo de destruição da coletividade fascista capitaneada por seu líder.

Se a Alemanha nazista era racional econômica e administrativamente e o governo Bolsonaro é ineficiente nestes aspectos, ambos são igualmente irracionais em sua finalidade, marcada pela ausência de rumos e finalidades minimamente racionais, pois não há nem mesmo de uma racionalidade tirânica de poder, que visaria a constituição de um regime totalitário de longo prazo. São iguais também em sua opção pelo conflito permanente, criando e provocando constantemente inimigos internos, externos e entre seus próprios aliados, esquecendo-se das lições mais básicas da racionalidade do poder ensinadas por Maquiavel, que recomenda o uso parcimonioso e direcionado da “maldade” e do conflito. Sempre que possível, o príncipe deve privilegiar a consolidação da confiança, da lealdade e das alianças para manutenção dum reinado próspero e longevo.

Com a exceção dos bolsonarisas e lavajatistas, ou seja, da massa fascista que hoje talvez seja a maioria da população brasileira, quem duvida que depois do Governo Bolsonaro, que ainda pode se reeleger ou ser sucedido por outro fascista como Sérgio Moro, o país estará em ruína absoluta? Que não restará pedra sobre pedra? Até mesmo a inação das pessoas ante a adoção de um neoliberalismo extremo, em desuso no resto do mundo e francamente contra os interesses nacionais e prejudiciais às classes populares e médias, cuja irracionalidade já foi demonstrada pela história recente, pode ser creditada ao estado de delírio coletivo em que boa parte da população se encontra.

As elites nacionais se aliam ao capital internacional, aproveitam-se da inação popular e promovem a rapina, pensando estar instrumentalizado o bolsonarismo, mas a quase certa situação de ruínas em que o país será deixado pela adoção de um neoliberalismo fora de época e lugar, num mundo em que as nações tentam proteger desesperadamente sua economia nacional, pode muito bem inviabilizar boa parte de seus negócios.

23 fevereiro, 2020

A China é o modelo a seguir?

Na esquerda progressista, a China é citada como o modelo a seguir. Em contraposição ao fiasco histórico do neoliberalismo, os economistas progressistas cantam loas à China do século XXI: Paulo Gala, Luiz Gonzaga Belluzo, Bresser-Pereira, entre tantos, veem a China como o farol do novo progressismo ou novo desenvolvimentismo. Devemos imitá-la, desvalorizar a moeda, investir em ciência e tecnologia, infraestrutura e fazer com que o estado regule e intervenha na economia, se necessário, tornando-se produtor de mercadorias por meio de empresas estatais.

E mais, o estado deve exigir das empresas nacionais protegidas que sejam competitivas no mercado mundial. A produção industrial não deve ser apenas para substituição de importações, mas destinada à exportação, à competição ferrenha no mercado mundial. A China adotou uma espécie de keynesianismo mercantilista super-agressivo, de conquista de mercados. E o Brasil deveria imitá-la, tomando a América do Sul e parte da África como mercados cativos de consumo e fornecedores de bens primários e disputar o resto do mundo com Alemanha, EUA, Japão e China.

As causas reais do “sucesso” chinês

Mas será que o sucesso industrial da China se deve apenas a câmbio baixo, investimento em ciência e tecnologia, infraestrutura e forte intervenção estatal? Há outros dois fatores frequentemente esquecidos pelos progressistas e que são fundamentais para este sucesso: a exploração extrema da mão de obra e os baixos impostos.

O keynesianismo europeu, japonês e norte-americano dos trinta anos gloriosos (1955-1975) combinava forte regulação do estado com altos impostos e benefícios crescentes para os trabalhadores – desde bons salários a serviços públicos universais e de qualidade. Não é o que se vê na China. Lá, o desenvolvimento é para poucos, uma espécie de keynesianismo selvagem que é duro com a concorrência internacional e mais duro ainda com o trabalhador chinês.

Grande parte dos chineses são trabalhadores precários e vendem o almoço para pagar a janta. Os não precários, formalmente vinculados às empresas, ganham, em sua maioria, muito pouco: apenas o suficiente para pagar as contas. Para atrair as empresas e, depois, para continuarem na China, os impostos sobre o lucro são baixos e a arrecadação estatal costuma ser direcionada para a infraestrutura, ciência e tecnologia, restando muito pouco para políticas públicas universais: não há sistema de saúde gratuito na China, um país que se diz comunista!

O estado do bem-estar que não existe nem existirá na China

Na verdade, não há estado do bem-estar social na China, uma característica fundamental do keynesianismo clássico. A maioria da população é pobre. Embora a miséria tenha diminuído, a ascensão de uma pequena elite corporativa e de uma numerosa classe média (que, entretanto, é minoria ante a imensa população chinesa) fez aumentar a desigualdade no país, ou seja, aumentou a pobreza relativa da maior parte da população.

E não há nenhum sinal de que a situação dos trabalhadores chineses vá melhorar. Alguns mais qualificados ganham mais e passam à classe média, mas uma das vantagens comparativas de China ainda é sua mão de obra qualificada, dedicada, obediente e… barata! Principalmente barata. Se ela ficar cara ou inconveniente por algum motivo (podem descobrir, de repente, que o empregado chinês não é tão dócil assim), a China está mais do que preparada para automatizar tudo, aumentando brutalmente a produtividade por trabalhador e expulsando a maior parte dos operários do setor industrial.

Expulsos da fábrica, eles iriam para o comércio e os serviços, onde a tendência mundial é a precarização que, na China, não é tendência, mas a regra, inclusive na indústria. Ou seja, não existe a menor perspectiva do keynesianismo selvagem chinês realizar a utopia do keynesianismo clássico de inserir a maioria das pessoas na classe média, livrando-as da precariedade e da super-exploração. Se a China quiser continuar competitiva, das duas uma: ou sua indústria continua pagando mal, ou é automatizada, expulsando os trabalhadores para o setor terciário, ainda mais precário.

Isto não acontece porque a cúpula do PC chinês, das empresas nacionais ou das corporações multinacionais que lá se instalaram são más. Não é uma questão moral. O problema é que depois que a concorrência de mercado diminui e padroniza o custo de produção de uma mercadoria, nenhuma empresa ou estado pode mais elevá-lo por vontade própria, sob pena de perder mercado e, consequentemente, lucro.

A China não vai se desenvolver: os desenvolvidos é que estão se achinesando

A mão de obra barata e os baixos impostos chineses, conjugados com a automação extrema utilizada principalmente nos EUA, Alemanha e Japão, baixaram o custo de produção das mercadorias industriais a mínimos históricos. Em consequência, as margens de lucro também são baixíssimas. Alguns componentes eletrônicos, por exemplo, têm custo (e também lucro) quase zero de produção, depois de pago o maquinário para produzi-los. Isto não tem volta e hoje, para manter o custo de produção padrão, é preciso, ou pagar miseravelmente os trabalhadores, ou automatizar tudo, gerando desemprego estrutural.

Assim, a única forma de uma nação se industrializar de forma competitiva no contexto atual é através do keynesianismo selvagem de estilo chinês, em que o estado é ator principal na competição global ao lado das empresas nacionais, mas sem poder (não é uma questão de querer, de vontade política, como as esquerdas acreditam) dividir as benesses do enriquecimento com os trabalhadores. Ou estes são super-explorados como na China, ou são substituídos por máquinas, como nos países desenvolvidos, obrigando-os a se uberizarem no setor de comércio e serviços.

Aliás, o que ocorre, em geral, é uma combinação das duas coisas em todo o mundo, ora prevalecendo a automação (EUA, Japão, Alemanha), ora a superexploração do trabalho (China, Vietnã). No Brasil, por exemplo, as fábricas de automóveis foram amplamente automatizadas, expulsando a mão de obra para o comércio e serviços precarizados e/ou de rendimentos menores. Mas há ainda um amplo setor têxtil em que ocorre superexploração do trabalho, com metas desumanas para costureiras sem carteira assinada e que recebem por peça de roupa produzida; sem contar as situações de trabalho escravo, como o caso dos imigrantes bolivianos.

Mesmo as tradicionais nações industriais estão adotando disfarçada e paulatinamente o keynesianismo selvagem chinês, mantendo o forte apoio estatal ao setor produtivo, ao mesmo tempo que desmontam o estado do bem-estar social e “flexibilizam” suas leis trabalhistas - na verdade subtraem direitos e baixam os rendimentos dos trabalhadores. A crescente revolta popular contra a política tradicional na Alemanha e EUA, que muitas vezes toma ares fascistas, é por conta desse empobrecimento paulatino da classe trabalhadora, sentido principalmente pela juventude, sem perspectivas de nem ao menos manter o padrão de vida de seus pais, em face da precarização geral do mercado de trabalho.

Riqueza sem desenvolvimento: o futuro inexorável da nações industriais

A China é um país rico, o mais rico do mundo, mas não é desenvolvido, pelo menos nos termos do keynesianismo clássico, que considera o desenvolvimento como a combinação de riqueza nacional e ausência de pobreza de sua população. E não há nada a indicar que a China se tornará desenvolvida por tais critérios “clássicos”. Muito pelo contrário, o que está acontecendo é que os países industriais desenvolvidos, como Alemanha, EUA e Japão, estão, aos poucos, se tornando chinas: continuam ricos, altamente industrializados e competitivos, mas aumentam paulatinamente sua população de pobres, diminuindo a classe média. A riqueza com desigualdade é o preço atual para se tornar (e se manter) um país competitivo no capitalismo global.

Em tempos de automatização massiva da indústria (que avança inclusive no comércio e nos serviços) e de escalas gigantescas para compensar as margens ínfimas de lucro, não há sobras de valor para atender as necessidades dos trabalhadores, muito menos das pessoas improdutivas que o decadente estado do bem-estar procurava proteger. Crianças, velhos, doentes, deficientes, mulheres e outras minorias discriminadas tendem, cada vez mais, ao abandono e desamparo.

A máquina do mundo não pode parar, mesmo que custe a vida das pessoas. A China que o diga. Quem duvidar que vá às estatísticas econômicas e trabalhistas chinesas ou, se preferir, assista ao documentário “Indústria americana” ganhador do Oscar deste ano. Nele, os próprios trabalhadores chineses falam como é seu regime de trabalho: dois dias de folga por mês, 12 horas por dia de trabalho intenso, alguns minutos para comer.

15 fevereiro, 2020

Sopro

os meninos pulam e gritam
estourando as bolhas de sabão
que a mãe lhes sopra

ar entre ar
seguras em si
por um tênue limiar
a maioria das bolhas escapa
às mãos ávidas das crianças
e se desfazem
                          sozinhas
                                             no ar
(ou no chão)
no instante seguinte

os meninos pulam e gritam
eles têm a alegria das bolhas
no instante do sopro


Poema do e-book Acerto de contas.

12 fevereiro, 2020

Um mundo em decomposição

Estou com fome,
a manga sobre a mesa está perdida.
Procuro uma faca,
procuro retirar as partes podres,
procuro alguma polpa sã,
procuro em vão...

Tudo tem seu tempo
e o tempo da manga se desaba em moscas
e podridão.

Jogue a manga perdida no chão
para que ela cumpra o seu destino de terra
e vá ao pomar
colher outra manga
ou fruta fresca qualquer
em que o tempo se aroma
em flor, a língua
se delicia, o corpo
se sacia.


05 fevereiro, 2020

O fascínio dos artistas pelo fascismo

Da série "Capitalismo em agonia"

Ricardo Miranda, em “Me julgue, voltei a ouvir Lobão” e Alberto Villas em “Encaixotando Fagner” falam de sua relação de amor (musical) e ódio (político) com Lobão e Fagner, dois músicos que bandearam para a extrema direita e se deixaram levar pela onda fascistoide que nos assola. Fico pensando, o que faz alguns bons artistas (não raro vanguardistas) se enamorarem do fascismo?

Na Europa de 20 e 30, Ezra Pound, Herbert von Karajan e alguns futuristas tinham claros pendores fascistas. No Brasil modernista, Lobato e Villa Lobos se enamoraram do nacionalismo fascista. Agora, Lobão, Fagner e Roger (do Ultraje a Rigor) fascistaram claramente. Fagner foi ponta de lança da renovação da MPB nordestina e Lobão e Roger foram pioneiros do Rock Brasil. Todos eram desbravadores, iconoclastas, experimentais e têm ótimas canções em várias fases da carreira.

Não sei como Ferreira Gullar, falecido em 2016, se posicionaria diante da onda Bolsonaro, mas em seus últimos anos ele se tornara bastante reacionário, antipetista doentio, beirando a extrema-direita. Outros que parecem simpatizar com a onda fascista são os talentosíssimos Djavan e Guarabyra. Dinho Ouro Preto, do Capital Inicial, não votou em Bolsonaro, mas simpatiza com Sérgio Moro.

Talvez este fascínio dos músicos e poetas (comum também entre os atores) com o fascismo e seu discurso fácil contra a corrupção seja, em parte, por conta de sua situação de classe (média).

Rebeldia e fascismo

Mas desconfio de que haja alguma motivação mais profunda, que tenha a ver com sua própria condição de artista. O fascismo tem algo de vanguarda, da violência vanguardista para quebrar as regras, inclusive as das boas maneiras. Slavoj Zizek observa bem como os esquerdistas e porra-loucas contraculturais dos anos 60 e 70 eram mal vistos pelo status quo como pessoas sem modos e de boca suja. Hoje, o xingatório constrange igualmente a esquerda politicamente correta e os (neo)liberais; mas seu representante mais desbocado é um velhinho reacionário e paranoico da Virgínia, que se diz filósofo!

Há uma estética iconoclasta no fascismo que fascina alguns artistas e jovens. O fascismo tem a energia da juventude (desde os anos 1930) e expressa a rebeldia dos jovens, sufocados por um sistema social que lhes oferece, como futuro, apenas amarras: o trabalho precário, a necessidade da formação contínua, rendimento e consumo decrescentes. O consumo (de bens materiais e imateriais, de sexo, de viagens etc) é o paraíso pós-moderno, mas o ganho que a maioria da juventude vislumbra vai conduzi-la apenas purgatório capitalista do ganho escasso e do desejo frustrado dos que olham as vitrines dos shoppings sem poder comprar.

A revolta fascista, no fundo, é anti-capitalista, mas sem que os revoltosos saibam. Eles desejam voltar ou avançar a tempos melhores, restaurar uma suposta ordem em que os papéis de cada um eram bem definidos (homens e mulheres, brancos e pretos, ricos e pobres) e respeitados uns pelos outros. Mesmo para os pobres e negros haveria uma possibilidade de vida digna, desde que se resignassem à sua condição “inferior” e parassem com essa “palhaçada” ativista. Mas nesse mundo ideal, a única coisa que não se contesta são os pilares capitalistas: o trabalho abnegado, a propriedade privada e o lucro.

A revolta é contra os efeitos do capitalismo, como a exclusão social, o desemprego e principalmente a corrupção endêmica, que, para o fascista, se torna o mal causador de todos os demais males e que costuma se vincular às esquerdas ou aos “comunistas”, mas também aos judeus, gays, feministas e outros bodes expiatórios.

O fascismo, então, embora parta de um impulso inicial libertário, de revolta violenta contra o status quo, termina por se revelar como uma onda coletiva cujos afetos mobilizadores são o medo e o ódio, que deixam apenas um rastro de destruição e morte por onde passa.

Romantismo e fascismo

Talvez alguns jovens e artistas se sintam atraídos pelo fascismo exatamente por conta dos paroxismos que o sustenta, muito semelhantes aos impulsos românticos, ao mesmo tempo criativos e destrutivos, de amor e morte: juventude e reacionarismo; energia rebelde e terra arrasada; liberdade ilimitada de ação e tirania sanguinária; promessa de uma vida limpa da corrupção e a suprema corrupção do assassínio massivo. Mais que semelhante, pode-se dizer que o fascismo realiza, no plano coletivo, as potências sombrias do romantismo que, em última análise, é uma revolta estética de uma parcela rebelde da classe burguesa contra o próprio modo de vida burguês e o capitalismo em geral.

O romantismo tem um evidente impulso destrutivo, de ataque virulento à estética e ao modo de vida vigente. No plano pessoal este impulso de morte muitas vezes se volta contra o próprio artista, cuja vida desregrada acaba em morte precoce, numa espécie de suicídio lento - isto quando o romântico não se suicida de fato.

O fascismo, como desenvolvimento das potências sombrias do romantismo no plano coletivo, também ataca de forma violenta as regras estabelecidas, dando a impressão de um movimento libertador - do politicamente correto, dos conchavos políticos, dos controles estatais etc. E como um romantismo sombrio, todo fascismo acaba por ser também autodestrutivo, se consumindo numa guerra sem fim, interna e com o outro, alimentada pelo ódio e o medo. Só que esta destruição se dá no plano coletivo, deixando atrás de si sociedades arruinadas.

Voltando à atualidade, tanto a MPB, quanto o Rock Brasil são esteticamente próximos do romantismo, principalmente em sua relação conflituosa com a vida moderna. E, assim como os românticos, seus músicos são oriundos da classe média contra a qual se revoltam. Romantismo, Modernismo, MPB e Rock Brasil estão num mesmo continuum estético e têm, portanto, a potência sombria da destruição irracional, que pode ou não se desenvolver num artista ou grupo de artistas.

E mais que os artistas, estas energias destrutivas podem impregnar o público, ou seja, as massas que cresceram ouvindo estas músicas. Não é raro encontrar fascistóides na casa dos 40 ou 50 anos, que são fãs de rock e passaram a adolescência ouvindo Legião, Paralamas, Engenheiros, Titãs e Lobão, grupos populares que eram máquinas de ganhar dinheiro, mas cujas letras contestavam duramente o status quo.

O que acontece com o romantismo e sua descendência (modernismo, MPB, rock) é que seu espírito rebelde instaura na sociedade uma espécie de caos estético, mas que é também cognitivo. A partir deste caos, o público e os artistas podem tomar vários caminhos, do mais libertário aos mais tirânicos. Da mesma forma, os fascismos nascem a partir da cumulação de problemas sociais insolúveis que culminam em situações caóticas de difícil compreensão. Uma das possibilidades que pode se desenvolver do caos é o fascismo.

As primeiras manifestações do movimento passe livre, por exemplo, eram extremamente anarquistas e libertárias, próximas do que chamamos de extrema esquerda. É difícil encontrar uma imagem mais romântica e libertária que um bando juvenil de black blocs mascarados, armados com coquetéis molotovs e dispostos a quebrar bancos, Mc’Donalds e concessionárias de automóveis, símbolos do capitalismo. Rapidamente o movimento virou radicalmente à direita e se transformou na onda neofascista que elegeu Bolsonaro. Mas mesmo assim o ímpeto inicial de destruição e entusiasmo juvenil por uma vida purificada da corrupção sistêmica permaneceu, encontrando num deputado do baixo clero e num juiz provinciano seus líderes e na fé evangélica sua base espiritual. E com esta feição reacionária e moralista o vírus purificador do fascismo contagiou a maior parte da população, que elegeu Bolsonaro presidente e o congresso mais reacionário das últimas décadas.

O elixir da juventude fascista

A conversão à extrema-direita de Lobão e Fagner já estava colocada, como potência, desde o início de suas carreiras no rock e na MPB, movimentos românticos por natureza. Ao encontrar a onda fascista de nossa década, a maioria dos artistas do Rock e da MPB se mantiveram indiferentes ou fiéis à sua rebeldia inicial, contra toda forma de autoritarismo. Muitos se posicionaram claramente contra Bolsonaro, Moro e a onda fascista. Alguns, no entanto, sucumbiram à empolgação juvenil (e viril, máscula) do fascismo e vincularam sua rebeldia estética à revolta fascista.

O fascismo tem o dom de rejuvenescer velhos bruxos. Fagner e Lobão estavam velhos e cansados, meio esquecidos no turbilhão comercial que se transformou o mundo da canção. Viram na energia fascista uma espécie de elixir da juventude e se lançaram em sua onda, como surfistas desesperados. Só que o feitiço da juventude fascista, como nos contos de fada, é apenas uma máscara. Por trás dela, o encantado pelo fascismo, seja ele artista ou não, apodrece em vida.

Suicídio coletivo


Em virtude de a gente somos inúteis
e considerando que se

SE a população brasileira fosse de gente
de olhos azuis ou puxadinhos
nossa Pátria amada tão verde e tão áurea
seria a nação mais rica do mundo

CONVOCAMOS TODOS OS BRASILEIROS
(e também nossos irmãos latino-americanos e africanos)

para participarem da
GRANDE FESTA DA LIMPEZA DO MUNDO
quando nós, a gente negra, vermelha e morena
por amor a nossa querida Pátria verde-amarela
nos autoimolaremos no fogo divino da purificação

e depois da Pátria limpa
da peste humana que somos nós
outra gente
mais valorosa digna e trabalhadora que nós
(a gente gringa branca e amarela)
irá ocupar e transformar nossa Pátria
no que Ela sempre mereceu ser
O PARAÍSO NA TERRA

NOSSA AUTOIMOLAÇÃO EM VÃO NÃO SERÁ!

um crematório em cada cidade haverá
grande o bastante para a FESTANÇA SUICIDA
de todo o gentio – além de zap zap oração
e bebida à vontade para nós todos
nos anestesiarmos do fogo da purificação

COM A BÊNÇÃO DE DEUS
amém

Brasil acima de tudo!
Deus acima de todos!

Dia da purificação: sexta-feira 13
Local da festança: crematório coletivo de sua cidade

03 fevereiro, 2020

Desenvolvimentistas, neoliberais e a guerra capitalista


Num artigo muito interessante Eleutério do Prado mostra como o discurso pretensamente científico e neutro dos economistas neoliberais mal disfarça o autoritarismo de suas opiniões que, na verdade, são tudo, menos neutras. A crítica de Prado é geral, mas ele utiliza, como exemplo das posições neoliberais, um artigo de Paulo Hartung, Marcos Lisboa e Samuel Pessoa publicado na Folha de São Paulo e cujo objetivo é atacar a política econômica do PT nos anos Lulas e Dilma, acusando-as de serem responsáveis pela crise atual por que passamos no presente.

Os três autores pouco dizem a respeito de como deveria ser a política econômica correta mas, como observa Eleutério do Prado, eles a deixam implícito ao afirmarem que a “economia não é tão elástica” para suportar políticas distributivas “irracionais” do ponto de vista da “científica” austeridade neoliberal. Ou seja, implicitamente, eles afirma que existem limites para o voluntarismo desenvolvimentista, que esbarram em impedimentos objetivos, em leis econômicas quase tão objetivas quanto as leis naturais.

A crítica neoliberal ao petismo e suas premissas

Como se tratam de economistas neoliberais, uma dessas leis econômicas é a da austeridade que visa o equilíbrio orçamentário, segundo eles, constantemente quebrado nos governos petistas, acusados de realizarem, nos tempos de bonança, uma farra distributiva e de incentivos empresariais insustentável, esquecendo-se de investirem em mudanças estruturais que, ao que parece, se resumem à investimentos não direcionados, como em educação básica de qualidade – uma obsessão neoliberal que, contraditoriamente, eles não realizam quando chegam ao poder, com a desculpas do equilíbrio orçamentário. Em sua crítica “científica” ao petismo, Hartung, Lisboa e Pessoa nada dizem a respeito da farra continuada com dinheiro público para o pagamento dos juros estratosféricos da dívida pública, absolutamente improdutiva, irracional (até mesmo do ponto de vista liberal) e concentradora de renda, que começa nos governos FHC e atravessam as administrações Lula e Dilma.

Da perspectiva neoliberal, o estado deve apenas atuar para acabar com todos os privilégios, incluindo os das grandes empresas, o que bloqueia, desde já, qualquer participação estatal nos setores produtivos e também toda política industrial mais incisiva, usual em países como EUA, Alemanha, Japão, Coreia do Sul e China, exemplos de países vitoriosos na guerra capitalista. Ou seja, o receituário neoliberal, focado em educação básica, saneamento e garantias jurídicas para o livre mercado e liberdades formais se baseia na crença de que, a partir de um ambiente jurídico e macroeconômico seguros, o mercado se autorregula e que cada país encontrará “naturalmente” sua vocação para o desenvolvimento. O exemplo de sucesso era o do Chile neoliberal, segundo Paulo Guedes a Suíça latino-americana, de PIB crescente e povo feliz. Agora que a população chilena se revolta, mostrando que jamais foi feliz sob o torniquete neoliberal, os representantes brasileiros do neoliberalismo ficaram sem nenhum “case” de sucesso para citar: todos, absolutamente todos os países que seguem suas políticas afundam em desigualdade, pobreza e desindustrialização crônica.

A crítica neoliberal ao petismo, portanto, parte de duas premissas, uma verdadeira e outra falsa. A verdadeira é que o capitalismo impõe aos agentes econômicos (países, empresas, organizações e pessoas) leis férreas de comportamentos imunes à vontade desses agentes, que devem se adaptar a tais leis para obterem algum sucesso na guerra entre os vários capitais privados, que são as empresas, mas também as pessoas que se tornam capitais individuais. A segunda premissa, que a história demonstrou ser falsa, é que a função do estado é apenas garantir formalmente que o jogo do mercado flua sem impedimentos ou direcionamentos dentro de suas fronteiras. Se bem cumprida, a economia nacional encontraria espontaneamente o sue melhor caminho para o desenvolvimento equilibrado, que supõe a eliminação da miséria e a redução da pobreza a uma parcela ínfima da população.

A crítica desenvolvimentista ao petismo e suas premissas

Economistas como Paulo Gala, José Luis Oureiro e Bresser-Pereira, e políticos como Ciro Gomes, criticam o petismo a partir de perspectivas diferentes e mais realistas. Eles mantém a primeira premissa neoliberal, de que os agentes econômicos não têm escolha a não ser agirem conforme as férreas leis de racionalidade e concorrência impostas pelo capital, mas afirmam, com razão, que a ação do estado é fundamental na guerra entre os capitais particulares e que seu papel tem que ser ativo na competição capitalista, sob pena de toda a nação se tornar um país perdedor, com poucas empresas de relevância global e a maior parte da população pobre.

Implicitamente, os desenvolvimentistas acusam os governos neoliberais de não seguirem as regras do capitalismo por omissão, da mesma forma que costumamos reprovar a conduta de uma pessoa que se recusa a estudar e se aprimorar para o mercado de trabalho. Para os desenvolvimentistas, uma nação tem chance de se tornar desenvolvida apenas quando o estado assume seu papel de agente econômico fundamental e atua ativamente ativo no jogo do mercado, o que implica em participar da produção em setores estratégicos e desenvolver políticas industriais efetivas e agressivas, que vão desde o controle do fluxo de capitais e do câmbio, passando por proteções tarifárias de setores específicos, políticas de compra estatais, coordenação entre universidade e empresas, até o financiamento barato das empresas nacionais por instituições como o BNDES. A seu favor, os desenvolvimentistas têm a história ao seu lado, pois todos os países atualmente “desenvolvidos” ou que aparentemente caminham para o desenvolvimento, como a China, só chegaram e se mantêm em tal condição com a maciça interferência estatal na economia – inclusive e principalmente os EUA, citado por 11 entre 10 neoliberais, como modelo de liberalismo econômico.

A crítica que os desenvolvimentistas fazem aos governos do PT são principalmente duas. A primeira é a que os governos petistas não romperam de fato com o imobilismo que as políticas neoliberais impunham ao estado, ao preservarem o famoso tripé econômico (câmbio, inflação e juros ao sabor das especulações do mercado), o que impediu os governos petistas de promoverem uma política cambial agressiva, como a da China, para baratear a produção da indústria nacional enquanto ela ainda não fosse tão produtiva e competitiva como a dos países desenvolvidos. É a chamada doença holandesa para a qual Bresser-Pereira cansou de alertar as administrações petistas.

A segunda crítica que os desenvolvimentistas costumam fazer é quanto à qualidade da interferência estatal da economia, que não teria sido adequada. Por exemplo, ao eleger frigoríficos como a Friboi como campeões nacionais, o governo investiu em uma empresa de fato competitiva, mas de baixa intensidade tecnológica. Outro exemplo são os incentivos à indústria automotiva, toda ela multinacional, sem exigir que ela desenvolvesse tecnologia a nível local – diante da quase certa recusa ante tal exigência, os desenvolvimentistas não tergiversariam em apoiar uma fábrica de automóveis estatal ou semi-estatal.

Um terceiro erro dos governos petistas, levantado por Paula Gala, seria uma espécie de paternalismo da política industrial petista, que deveria condicionar o apoio do estado a uma efetiva competitividade global das empresas beneficiadas. Ou seja, a crítica desenvolvimentista exige que o estado apoie apenas quem pode crescer e se mostrar vencedor, o que significa que o estado nacional também deve ser competitivo, derrotando as demais nações na guerra econômica que, a nível estatal, se torna também uma ferrenha disputa geopolítica, na qual vale tudo.

Se há alguma dúvida em relação ao vale tudo entre nações na guerra pela competitividade, basta observar o exemplo recente do Brasil, que conhecemos bem. Nas poucas áreas de alta intensidade tecnológica em que os governos petistas lograram sucesso em iniciar indústrias promissoras (como a indústria naval e militar) ou projetar globalmente multinacionais competitivas (empreiteiras, indústria do petróleo, aviação civil e militar), tais avanços foram prontamente abortados, assim que os EUA puderam interferir ativamente para destruí-las, com a ajuda local dos neoliberais, mídia, parlamento e judiciário. A China, também beneficiária do saqueio, em nenhum momento protestou contra a investida norte-americana e suas empresas têm sido das mais atuantes nas privatizações atuais, que nada mais são que a divisão do butim da guerra híbrida geopolítica empreendida por EUA e UE contra o Brasil, com a anuência da China.

Guerra que teve sua fase mais intensa no período que vai de 2013 a 2018 e da qual saímos absolutamente perdedores, sem os anéis nem os dedos. Basta olhar nossa balança comercial para constatar que regredimos comercialmente ao que éramos no início do século XX, a fazenda do mundo. China e a Rússia, ao contrário, reagem vigorosamente contra as tentativas ocidentais de desmonte de seus estados e empresas, avançando contra as posições norte-americanas, utilizando-se, não raro, de procedimentos nada éticos, como interferência na política interna dos países ocidentais, espionagem industrial, manipulação cambial, controle da opinião pública interna etc.

Para entrar nesta guerra sem lei entre nações, Paulo Gala argumenta que o estado deve incentivar e proteger empresas nacionais, mas com a condição delas se tornarem, depois de um tempo, vencedoras no mercado global, como fazem China, Alemanha, EUA e Coreia do Sul, nações industriais vencedoras na permanente guerra capitalista. O estado, portanto, deve ser impiedoso, com as outras nações, mas também com as empresas nacionais não competitivas, que deveriam perder o apoio estatal.

A bem da verdade, um desenvolvimentismo agressivo, nos termos de Bresser-Perieira e Paulo Gala, é muito mais adequado à lógica do capital do que o neoliberalismo que, de resto, nunca foi seguido à risca pelos países centrais do capitalismo e menos ainda pela China, o mais recente “case” de sucesso do capitalismo mundial. Ao aplicar a lógica neoliberal de retirada do estado da economia produtiva em países cujo mercado não está consolidado, os governos neoliberais acabam por entregar o país ao saqueio internacional, promover uma “primarização” da economia e condenar a maioria absoluta de seu povo à pobreza e à miséria. Isso ocorre porque os “países neoliberais” se tornam competidores fracos na guerra capitalista das nações, tornando-se povos perdedores, empobrecidos e humilhados, como tem acontecido com todas as nações da América Latina no final do século XX e início do XXI.

E se o PT, e se o Brasil…

O reino das suposições costuma ser um refúgio para os derrotados. Mas e se o governo petista tivesse aproveitado a bolha dos anos 2000 e promovido um desenvolvimentismo eficaz? Para isso teria que ouvir Bresser-Pereira e abandonar o famigerado tripé econômico e praticado uma política de desvalorização do Real, como a China fez (e ainda faz) com sua moeda. Teria também que promover uma política industrial de alta intensidade tecnológica e impiedosa para com as empresas nacionais não competitivas, como advoga Paulo Gala.

Mas tal política desagradaria os EUA, a União Europeia, os rentistas, os setores primários e a classe média, que têm forte influência no parlamento, no judiciário, nos setores militares e principalmente na mídia. Para viabilizar politicamente o desenvolvimentismo, em todas estas frentes o petismo teria que agir de forma impiedosa e muito pouco republicana (que André Araújo chamaria de pouco ingênua). Lula, por exemplo, teve a chance de estatizar a Globo, que estava quebra no início de seu governo e não o fez. Preferiu salvá-la com financiamento do BNDES, mesmo com todo o histórico reacionário e pró-EUA da empresa. O certo seria estatizá-la e sufocar suas concorrentes, SBT e Record, além de provocar a quebra da Folha de São Paulo e Estadão, para ter o controle da opinião pública. Ao não fazê-lo, este controle ficou com seus adversários neoliberais apoiados pelos EUA.

Outras providências necessárias para vencer a guerra pelo desenvolvimentismo, e deixando de lado quaisquer pudores morais, seriam: a montagem de um serviço secreto eficiente e nacionalista, preparado para as guerras híbridas atuais, além de um expurgo ideológico nas Forças Armadas, Polícia Federal e Judiciário, varrendo o liberalismo e o reacionarismo enraizado em seus quadros. Ao deixar tais setores estatais nas mãos de seus inimigos, o petismo inviabilizou qualquer possibilidade real de implantar um desenvolvimentismo eficiente, que contraria o neoliberalismo e o conservadorismo nacionais. Lula e o PT não tomaram e jamais tomariam medidas tão “anti-republicanas”, o que não se pode dizer de seus adversários que, na primeira oportunidade real de tomar o poder, o fizeram sem vacilar, com o golpe de 2016.

O PT se apegou a duas ilusões mortais. A da possibilidade de conciliação dos interesses desenvolvimentistas com os neoliberais (e, em consequência, das elites rentistas com os trabalhadores e industriais) e a crença num republicanismo ingênuo, que não existe em lugar nenhum do mundo capitalista, no qual a ética é apenas uma arma política a mais na impiedosa guerra entre empresas, mas também entre nações. O desenvolvimentismo petista, para funcionar, teria que ser impiedoso com as nações concorrentes, imperial com as nações dependentes em sua zona de influência, duro com as empresas protegidas e implacável com os inimigos internos, que deveriam ser derrotados de forma definitiva. Ou seja, teria que assumir o espírito de guerra total (política, econômica e geopolítica) do capitalismo tardio do século XXI.

Se o petismo lograsse sucesso, certamente não haveria espaço para o golpe de 2016, provavelmente o Brasil estaria a caminho de desenvolver a bomba atômica e mísseis balísticos, em virtude das pressões e sanções dos EUA e Europa, e a América Latina e África se tornariam campos de disputa imperial entre EUA, China e Brasil. Para que o Brasil se tornasse uma potência industrial regional, ao menos a América do Sul deveria se tornar zona de influência inconteste e mercado consumidor garantido, como a Europa é para a Alemanha.

Este é o problema do desenvolvimento de uma nação continental como o Brasil no estado atual do capitalismo globalizado. Ele não pode mais ser um jogo de ganha-ganha como na Europa do Pós-Guerra, em que todas as partes ganham, mas é sempre um jogo de soma zero, em que um país ganha às custas da derrota de outros. O discurso de Trump acerca do roubo de tecnologia e empregos que a China promoveu não é de todo incoerente. O sucesso industrial da China se deu às custas da desindustrialização de várias partes do mundo, assim como a vitória da Alemanha industrial custou a desindustrialização do resto da Europa a partir dos anos 1980, que se tornou consumidora dos produtos de alta tecnologia da indústria germânica.

A crítica marxista ao desenvolvimentismo e seus pressupostos

Não é necessária uma crítica marxista ao neoliberalismo, pois os desenvolvimentistas já demonstraram, na teoria e na prática, que se trata menos de uma estratégia nacional de desenvolvimento do que de um artifício das nações desenvolvidas com a anuência das elites locais predadoras para impedir o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos, como Breser-Pereira alerta constantemente em seus textos e falas.

Atualmente, marxistas de vários matizes, se debruçam sobre as promessas desenvolvimentistas acerca da volta de um capitalismo humanizado e regulado pela política democrática, que combinaria crescimento econômico e distribuição de renda, e resultaria em países com uma vasta classe média e uma minoria de ricos e pobres, sendo que estes últimos viveriam uma pobreza digna, amparada pelo estado. Em suma, a promessa desenvolvimentista (propagada pelas esquerdas) é a recuperação, para qualquer nação que siga o receituário neokeynesiano, do estado do bem estar social do Pós-Guerra implantado nos países pertencentes ao que se chamava Primeiro Mundo (EUA, Europa Ocidental e Japão).

Marxistas de diversos matizes, como Robert Kurz, Moishe Postone, István Mészáros e Jorge Beinstein observam que, desde a década de 1970 o capitalismo mundial entrou numa espécie de crise estrutural devido à queda da taxa de lucro da produção de mercadorias, principalmente a industrial. O aumento de capital fixo (máquinas) e a consequente diminuição do capital variável (trabalho humano) na produção, uma tendência espontânea do capital em busca de maior valorização, entra numa nova fase com a terceira revolução industrial, que introduz a microeletrônica no chão da fábrica. A partir daí, o aumento de produtividade que poupa mão de obra não pode mais ser contrabalançado pela expansão dos mercados e a criação de novos postos de trabalho. O resultado prático é uma tendência ao desemprego e subemprego (desemprego tecnológico), do lado do trabalho, e uma queda global do lucro (e da mais valia), do lado do capital.

A financeirização da economia, com sua especulação desmedida e proliferação de bolhas, é uma decorrência da insuficiência da “economia real” em manter a reprodução do sistema, que recorre ao capital fictício (dívidas que sempre crescem e nunca são pagas) para se manter funcionando. Mesmo a produção industrial depende, em larga escala, do capital fictício para se manter, seja na forma de créditos estatais baratos e impagáveis, seja no financiamento constante do consumo, por meio de bolhas de crédito e crescimento econômico sustentado por bolhas.

Diante de tal realidade, a única solução para o capital é se refugiar no financismo ou, quando aplicado na produção, explorar ao máximo o trabalho, diminuindo seu custo de duas formas: ou substituindo-o por máquinas (exploração relativa), ou pagando o mínimo possível para o trabalhador (exploração absoluta). Nos dois casos, os resultados são dramáticos para o povo: ou falta trabalho ou paga-se mal por jornadas estafantes e condições precárias. Na maior parte das vezes, ambas as situações ocorrem simultaneamente no mercado de trabalho. Boa parte do crescimento chinês, principalmente em seu impulso inicial, se deu por conta da exploração extrema de sua abundante e (sob a chibata da ditadura) resignada mão de obra.

Em outras palavras, na etapa atual das forças produtivas altamente desenvolvidas, não há espaço para que todos os países se tornem desenvolvidos, cuja condição iicial é serem fortemente industrializados. Com a lucratividade decrescente, a indústria necessita de escalas gigantescas, concentração máxima de capital e exploração intensa do trabalho para ser minimamente viável. Ela deve se concentrar em alguns poucos países às custas da desindustrialização ou não industrialização dos outros. O jogo de industrialização das nações de hoje em dia é de soma zero: onde um ganha o outro perde. A possibilidade de todas as nações terem um forte parque industrial e se tornarem desenvolvidas é apenas uma ilusão desenvolvimentista. Se o Brasil lograsse êxito em sua reindustrialização durante o petismo, ela se daria às custas da manutenção de nações dependentes e desindustrializadas na América do Sul e África, e pela disputa ferrenha por esses mercados com a China, Alemanha e EUA.

Outra ilusão desenvolvimentista é quanto à possibilidade das nações industrializadas promoverem uma distribuição de renda de forma que a maioria absoluta da população se torne classe média, com aconteceu nos anos dourados do estado do bem estar social. A tendência do capital em aumentar a exploração do trabalho, via automação ou diminuição dos salários, bloqueia qualquer possibilidade de uma melhor distribuição de renda e, em consequência, de um aumento do consumo, bem como de aumento dos gastos sociais do estado, pois arrecadação de impostos cai ou estaciona com o baixo crescimento. Tais tendências de precarização do trabalho e compressão salarial se verificam desde a década de 1980, inclusive nos países centrais do capitalismo. Nada indica que a China, a novas promessa capitalista de país desenvolvido, siga um caminho diferente.

O que se verifica é exatamente o movimento oposto ao desejado pelos desenvolvimentistas, pois os países industriais vencedores, ou não conseguem distribuir renda (como a China) ou passam por um processo regressivo de concentração de renda (EUA, Alemanha, Japão, Coreia do Sul) aumentando a pobreza relativa. Ora, o conceito de desenvolvimento implica deve satisfazer duas condições: o país deve ser rico, o que pressupõe uma indústria ampla e competitiva; e deve promover o bem estar social, só conseguido com uma satisfatória distribuição de renda. A realidade é que os países vencedores se tornam ricos e fortemente industriais, mas regridem ou não atingem uma boa distribuição. A ponto de se poder falar, hoje, numa tendência global de des-densevolvimento das nações ricas, que ocorre pela perda de suas indústrias ou pelo aumento da desigualdade, ou ambos.

Em decorrência da crise crônica do capitalismo, a tendência global é a de crescimento da desigualdade, entre países e entre a população de cada país. Internamente a desigualdade significa aumento da pobreza relativa da vasta maioria da população. A tendência espontânea do capitalismo tardio, e que nenhuma política econômica consegue reverter, é a da diminuição das classes médias e aumento da pobreza, inclusive nos países de sucesso industrial como Alemanha e EUA. A China aumentou, em números relativos e absolutos, a sua classe média durante o boom de crescimento nas décadas de 2000 e 2010, mas aumentou também a desigualdade interna, mantendo a maior parte de sua população na pobreza – e não parece haver nenhuma tendência que indique, num futuro próximo, a inserção da maior parte dos pobres chineses na classe média.

Por mais políticas distributivas que se tente, combinadas com práticas de crescimento econômico desenvolvimentista, a desigualdade interna não cede, ou cede apenas pontualmente, como no Brasil dos governos petistas. Desde os anos 1970 a lógica concentradora do capital e a compressão salarial se impõem de forma incontornável, o que demonstra o acerto da interpretação marxista de uma crise crônica e insolúvel do capitalismo, provocada pela queda da taxa de lucro da produção real e pela substituição do trabalho humano pela automação, provocando desemprego tecnológico. Tal crise não pode ser vencida com “vontade política” dos agentes do estado ou das corporações, restando apenas a amenização de seus efeitos com políticas distributivas pontuais e indução ao crescimento por meio de bolhas (crédito com capital fictício).

O que acontece, segundo os marxistas, é que o fundamento do capital está em crise: a valorização do valor, expressa na superfície do sistema pela taxa de lucro empresarial, encontra-se em queda por conta da automação iniciada na década de 1970 e que se intensifica com indústria 4.0, gerando, entre outras consequências, desemprego tecnológico. Até mesmo os economistas e intelectuais mainstream, assim como organismos internacionais, como OIT e FMI, admitem que a automação ameaça seriamente o mudo do trabalho e que os empregos perdidos para as máquinas, ou não serão repostos mais à frente, ou darão lugar a trabalhos precários de baixa remuneração.

O que significa que boa parte da população mundial (talvez a maioria) se tornará supérflua para o sistema, mal sobrevivendo de bicos e empregos precários, comprovando a tese marxista de que no capitalismo, o capital se torna uma “entidade central” cega e autônoma que se utiliza da vida humana e dos recursos naturais para se multiplicar. O dinheiro não é um instrumento da reprodução da sociedade humana, mas são os humanos que se tornam o suporte de reprodução do dinheiro/capital. O processo é semelhante às infecções virais, que se utilizam do corpo humano como suporte para sua reprodução – só que o vírus é um organismo biológico, enquanto o capital é uma forma social.

O que a crítica marxista diz é que os governos de esquerda e sua política econômica desenvolvimentista só podem ser administradores de crise, oferecendo soluções paliativas para os sintomas da crise crônica do capitalismo. Não há mais a possibilidade, dado o estágio atual de desenvolvimento tecnológico das forças produtivas, de retorno ao estado do bem estar social, com pleno emprego, salários crescentes proporcionando uma expansão do sustentável do consumo, alta arrecadação de impostos e serviços públicos universais e de qualidade.

Em suma, as promessas desenvolvimentistas são irrealizáveis em seus dois principais aspectos. Primeiro, não é mais possível que todas as nações tenham setores industriais relevantes para sua economia, condição necessária (embora não suficiente) para se tornar desenvolvido. A industrialização de um país implica na desindustrialização de outros. Segundo, mesmo quando um país consegue se industrializar (ou se manter industrial) e impor seus produtos de forma competitiva no mercado global, ele não consegue fazer diminuir a pobreza relativa dentro de suas fronteiras, inserindo a maior parte da população nas classes médias de forma sustentável. Por outras palavras, não consegue atingir ou manter o estágio de “país desenvolvido”, que pressupõe uma boa distribuição de renda e redução constante da pobreza relativa.

Aliás, a tendência nos países industriais tradicionais, como EUA, Alemanha e Japão, é a da diminuição da classe média e aumento da classe trabalhadora (pobres relativos), o que tende a provocar convulsões sociais e fenômenos políticos imprevisíveis, como a eleição de Trump, por exemplo. Nos países desenvolvidos perdedores da competição industrial, como França, Itália e Espanha, as bases tributárias para manter o que restou do antigo estado do bem estar social se esboroam e o ódio propagado pela extrema-direita neofascista cresce perigosamente entre um eleitorado empobrecido ou ameaçado pela pobreza, sem perspectivas de futuro, frustrado e ressentido.

Para os marxistas, a crise atual do capitalismo é uma crise do valor, o coração do capital. Ela não pode ser contida por meio políticos, mas apenas amenizada temporariamente, e empurra, por meio do desemprego tecnológico, a maior parte da população mundial para a superfluidade e, em consequência, para a pobreza relativa ou a miséria. Paradoxalmente, os meios produtivos atuais são suficientes para que toda a humanidade tenha suas necessidades sociais satisfeitas e, desde que o consumismo não seja uma delas, sem a degradação da natureza. Ou seja, há meios técnicos para todos terem uma vida boa, sem a necessidade, inclusive, de trabalho diário estafante. Mas a lógica capitalista de maximização do lucro a qualquer custo impede a realização de seu próprio potencial técnico.

A única saída vislumbrada pela crítica marxista é a emancipação do sistema e a refundação global da sociedade em outras bases que não as capitalistas. E não se trata mais de uma utopia inatingível, de sonhos irreais de marxistas revolucionários ou desbundados contraculturais, mas de uma necessidade urgente, ante a irrefreável destruição social e ecológica promovida pelo capitalismo. A alternativa é a barbárie que já se inicia com o crescimento da praga neofascista e da economia predatória a la máfia, implantada pelas corporações multinacionais em conluio com elites e estados nacionais cada vez mais autoritários e vigilantes, nos quais escasseiam até mesmo as liberdades formais das democracias liberais.

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...