Desenvolvimentistas, neoliberais e a guerra capitalista


Num artigo muito interessante Eleutério do Prado mostra como o discurso pretensamente científico e neutro dos economistas neoliberais mal disfarça o autoritarismo de suas opiniões que, na verdade, são tudo, menos neutras. A crítica de Prado é geral, mas ele utiliza, como exemplo das posições neoliberais, um artigo de Paulo Hartung, Marcos Lisboa e Samuel Pessoa publicado na Folha de São Paulo e cujo objetivo é atacar a política econômica do PT nos anos Lulas e Dilma, acusando-as de serem responsáveis pela crise atual por que passamos no presente.

Os três autores pouco dizem a respeito de como deveria ser a política econômica correta mas, como observa Eleutério do Prado, eles a deixam implícito ao afirmarem que a “economia não é tão elástica” para suportar políticas distributivas “irracionais” do ponto de vista da “científica” austeridade neoliberal. Ou seja, implicitamente, eles afirma que existem limites para o voluntarismo desenvolvimentista, que esbarram em impedimentos objetivos, em leis econômicas quase tão objetivas quanto as leis naturais.

A crítica neoliberal ao petismo e suas premissas

Como se tratam de economistas neoliberais, uma dessas leis econômicas é a da austeridade que visa o equilíbrio orçamentário, segundo eles, constantemente quebrado nos governos petistas, acusados de realizarem, nos tempos de bonança, uma farra distributiva e de incentivos empresariais insustentável, esquecendo-se de investirem em mudanças estruturais que, ao que parece, se resumem à investimentos não direcionados, como em educação básica de qualidade – uma obsessão neoliberal que, contraditoriamente, eles não realizam quando chegam ao poder, com a desculpas do equilíbrio orçamentário. Em sua crítica “científica” ao petismo, Hartung, Lisboa e Pessoa nada dizem a respeito da farra continuada com dinheiro público para o pagamento dos juros estratosféricos da dívida pública, absolutamente improdutiva, irracional (até mesmo do ponto de vista liberal) e concentradora de renda, que começa nos governos FHC e atravessam as administrações Lula e Dilma.

Da perspectiva neoliberal, o estado deve apenas atuar para acabar com todos os privilégios, incluindo os das grandes empresas, o que bloqueia, desde já, qualquer participação estatal nos setores produtivos e também toda política industrial mais incisiva, usual em países como EUA, Alemanha, Japão, Coreia do Sul e China, exemplos de países vitoriosos na guerra capitalista. Ou seja, o receituário neoliberal, focado em educação básica, saneamento e garantias jurídicas para o livre mercado e liberdades formais se baseia na crença de que, a partir de um ambiente jurídico e macroeconômico seguros, o mercado se autorregula e que cada país encontrará “naturalmente” sua vocação para o desenvolvimento. O exemplo de sucesso era o do Chile neoliberal, segundo Paulo Guedes a Suíça latino-americana, de PIB crescente e povo feliz. Agora que a população chilena se revolta, mostrando que jamais foi feliz sob o torniquete neoliberal, os representantes brasileiros do neoliberalismo ficaram sem nenhum “case” de sucesso para citar: todos, absolutamente todos os países que seguem suas políticas afundam em desigualdade, pobreza e desindustrialização crônica.

A crítica neoliberal ao petismo, portanto, parte de duas premissas, uma verdadeira e outra falsa. A verdadeira é que o capitalismo impõe aos agentes econômicos (países, empresas, organizações e pessoas) leis férreas de comportamentos imunes à vontade desses agentes, que devem se adaptar a tais leis para obterem algum sucesso na guerra entre os vários capitais privados, que são as empresas, mas também as pessoas que se tornam capitais individuais. A segunda premissa, que a história demonstrou ser falsa, é que a função do estado é apenas garantir formalmente que o jogo do mercado flua sem impedimentos ou direcionamentos dentro de suas fronteiras. Se bem cumprida, a economia nacional encontraria espontaneamente o sue melhor caminho para o desenvolvimento equilibrado, que supõe a eliminação da miséria e a redução da pobreza a uma parcela ínfima da população.

A crítica desenvolvimentista ao petismo e suas premissas

Economistas como Paulo Gala, José Luis Oureiro e Bresser-Pereira, e políticos como Ciro Gomes, criticam o petismo a partir de perspectivas diferentes e mais realistas. Eles mantém a primeira premissa neoliberal, de que os agentes econômicos não têm escolha a não ser agirem conforme as férreas leis de racionalidade e concorrência impostas pelo capital, mas afirmam, com razão, que a ação do estado é fundamental na guerra entre os capitais particulares e que seu papel tem que ser ativo na competição capitalista, sob pena de toda a nação se tornar um país perdedor, com poucas empresas de relevância global e a maior parte da população pobre.

Implicitamente, os desenvolvimentistas acusam os governos neoliberais de não seguirem as regras do capitalismo por omissão, da mesma forma que costumamos reprovar a conduta de uma pessoa que se recusa a estudar e se aprimorar para o mercado de trabalho. Para os desenvolvimentistas, uma nação tem chance de se tornar desenvolvida apenas quando o estado assume seu papel de agente econômico fundamental e atua ativamente ativo no jogo do mercado, o que implica em participar da produção em setores estratégicos e desenvolver políticas industriais efetivas e agressivas, que vão desde o controle do fluxo de capitais e do câmbio, passando por proteções tarifárias de setores específicos, políticas de compra estatais, coordenação entre universidade e empresas, até o financiamento barato das empresas nacionais por instituições como o BNDES. A seu favor, os desenvolvimentistas têm a história ao seu lado, pois todos os países atualmente “desenvolvidos” ou que aparentemente caminham para o desenvolvimento, como a China, só chegaram e se mantêm em tal condição com a maciça interferência estatal na economia – inclusive e principalmente os EUA, citado por 11 entre 10 neoliberais, como modelo de liberalismo econômico.

A crítica que os desenvolvimentistas fazem aos governos do PT são principalmente duas. A primeira é a que os governos petistas não romperam de fato com o imobilismo que as políticas neoliberais impunham ao estado, ao preservarem o famoso tripé econômico (câmbio, inflação e juros ao sabor das especulações do mercado), o que impediu os governos petistas de promoverem uma política cambial agressiva, como a da China, para baratear a produção da indústria nacional enquanto ela ainda não fosse tão produtiva e competitiva como a dos países desenvolvidos. É a chamada doença holandesa para a qual Bresser-Pereira cansou de alertar as administrações petistas.

A segunda crítica que os desenvolvimentistas costumam fazer é quanto à qualidade da interferência estatal da economia, que não teria sido adequada. Por exemplo, ao eleger frigoríficos como a Friboi como campeões nacionais, o governo investiu em uma empresa de fato competitiva, mas de baixa intensidade tecnológica. Outro exemplo são os incentivos à indústria automotiva, toda ela multinacional, sem exigir que ela desenvolvesse tecnologia a nível local – diante da quase certa recusa ante tal exigência, os desenvolvimentistas não tergiversariam em apoiar uma fábrica de automóveis estatal ou semi-estatal.

Um terceiro erro dos governos petistas, levantado por Paula Gala, seria uma espécie de paternalismo da política industrial petista, que deveria condicionar o apoio do estado a uma efetiva competitividade global das empresas beneficiadas. Ou seja, a crítica desenvolvimentista exige que o estado apoie apenas quem pode crescer e se mostrar vencedor, o que significa que o estado nacional também deve ser competitivo, derrotando as demais nações na guerra econômica que, a nível estatal, se torna também uma ferrenha disputa geopolítica, na qual vale tudo.

Se há alguma dúvida em relação ao vale tudo entre nações na guerra pela competitividade, basta observar o exemplo recente do Brasil, que conhecemos bem. Nas poucas áreas de alta intensidade tecnológica em que os governos petistas lograram sucesso em iniciar indústrias promissoras (como a indústria naval e militar) ou projetar globalmente multinacionais competitivas (empreiteiras, indústria do petróleo, aviação civil e militar), tais avanços foram prontamente abortados, assim que os EUA puderam interferir ativamente para destruí-las, com a ajuda local dos neoliberais, mídia, parlamento e judiciário. A China, também beneficiária do saqueio, em nenhum momento protestou contra a investida norte-americana e suas empresas têm sido das mais atuantes nas privatizações atuais, que nada mais são que a divisão do butim da guerra híbrida geopolítica empreendida por EUA e UE contra o Brasil, com a anuência da China.

Guerra que teve sua fase mais intensa no período que vai de 2013 a 2018 e da qual saímos absolutamente perdedores, sem os anéis nem os dedos. Basta olhar nossa balança comercial para constatar que regredimos comercialmente ao que éramos no início do século XX, a fazenda do mundo. China e a Rússia, ao contrário, reagem vigorosamente contra as tentativas ocidentais de desmonte de seus estados e empresas, avançando contra as posições norte-americanas, utilizando-se, não raro, de procedimentos nada éticos, como interferência na política interna dos países ocidentais, espionagem industrial, manipulação cambial, controle da opinião pública interna etc.

Para entrar nesta guerra sem lei entre nações, Paulo Gala argumenta que o estado deve incentivar e proteger empresas nacionais, mas com a condição delas se tornarem, depois de um tempo, vencedoras no mercado global, como fazem China, Alemanha, EUA e Coreia do Sul, nações industriais vencedoras na permanente guerra capitalista. O estado, portanto, deve ser impiedoso, com as outras nações, mas também com as empresas nacionais não competitivas, que deveriam perder o apoio estatal.

A bem da verdade, um desenvolvimentismo agressivo, nos termos de Bresser-Perieira e Paulo Gala, é muito mais adequado à lógica do capital do que o neoliberalismo que, de resto, nunca foi seguido à risca pelos países centrais do capitalismo e menos ainda pela China, o mais recente “case” de sucesso do capitalismo mundial. Ao aplicar a lógica neoliberal de retirada do estado da economia produtiva em países cujo mercado não está consolidado, os governos neoliberais acabam por entregar o país ao saqueio internacional, promover uma “primarização” da economia e condenar a maioria absoluta de seu povo à pobreza e à miséria. Isso ocorre porque os “países neoliberais” se tornam competidores fracos na guerra capitalista das nações, tornando-se povos perdedores, empobrecidos e humilhados, como tem acontecido com todas as nações da América Latina no final do século XX e início do XXI.

E se o PT, e se o Brasil…

O reino das suposições costuma ser um refúgio para os derrotados. Mas e se o governo petista tivesse aproveitado a bolha dos anos 2000 e promovido um desenvolvimentismo eficaz? Para isso teria que ouvir Bresser-Pereira e abandonar o famigerado tripé econômico e praticado uma política de desvalorização do Real, como a China fez (e ainda faz) com sua moeda. Teria também que promover uma política industrial de alta intensidade tecnológica e impiedosa para com as empresas nacionais não competitivas, como advoga Paulo Gala.

Mas tal política desagradaria os EUA, a União Europeia, os rentistas, os setores primários e a classe média, que têm forte influência no parlamento, no judiciário, nos setores militares e principalmente na mídia. Para viabilizar politicamente o desenvolvimentismo, em todas estas frentes o petismo teria que agir de forma impiedosa e muito pouco republicana (que André Araújo chamaria de pouco ingênua). Lula, por exemplo, teve a chance de estatizar a Globo, que estava quebra no início de seu governo e não o fez. Preferiu salvá-la com financiamento do BNDES, mesmo com todo o histórico reacionário e pró-EUA da empresa. O certo seria estatizá-la e sufocar suas concorrentes, SBT e Record, além de provocar a quebra da Folha de São Paulo e Estadão, para ter o controle da opinião pública. Ao não fazê-lo, este controle ficou com seus adversários neoliberais apoiados pelos EUA.

Outras providências necessárias para vencer a guerra pelo desenvolvimentismo, e deixando de lado quaisquer pudores morais, seriam: a montagem de um serviço secreto eficiente e nacionalista, preparado para as guerras híbridas atuais, além de um expurgo ideológico nas Forças Armadas, Polícia Federal e Judiciário, varrendo o liberalismo e o reacionarismo enraizado em seus quadros. Ao deixar tais setores estatais nas mãos de seus inimigos, o petismo inviabilizou qualquer possibilidade real de implantar um desenvolvimentismo eficiente, que contraria o neoliberalismo e o conservadorismo nacionais. Lula e o PT não tomaram e jamais tomariam medidas tão “anti-republicanas”, o que não se pode dizer de seus adversários que, na primeira oportunidade real de tomar o poder, o fizeram sem vacilar, com o golpe de 2016.

O PT se apegou a duas ilusões mortais. A da possibilidade de conciliação dos interesses desenvolvimentistas com os neoliberais (e, em consequência, das elites rentistas com os trabalhadores e industriais) e a crença num republicanismo ingênuo, que não existe em lugar nenhum do mundo capitalista, no qual a ética é apenas uma arma política a mais na impiedosa guerra entre empresas, mas também entre nações. O desenvolvimentismo petista, para funcionar, teria que ser impiedoso com as nações concorrentes, imperial com as nações dependentes em sua zona de influência, duro com as empresas protegidas e implacável com os inimigos internos, que deveriam ser derrotados de forma definitiva. Ou seja, teria que assumir o espírito de guerra total (política, econômica e geopolítica) do capitalismo tardio do século XXI.

Se o petismo lograsse sucesso, certamente não haveria espaço para o golpe de 2016, provavelmente o Brasil estaria a caminho de desenvolver a bomba atômica e mísseis balísticos, em virtude das pressões e sanções dos EUA e Europa, e a América Latina e África se tornariam campos de disputa imperial entre EUA, China e Brasil. Para que o Brasil se tornasse uma potência industrial regional, ao menos a América do Sul deveria se tornar zona de influência inconteste e mercado consumidor garantido, como a Europa é para a Alemanha.

Este é o problema do desenvolvimento de uma nação continental como o Brasil no estado atual do capitalismo globalizado. Ele não pode mais ser um jogo de ganha-ganha como na Europa do Pós-Guerra, em que todas as partes ganham, mas é sempre um jogo de soma zero, em que um país ganha às custas da derrota de outros. O discurso de Trump acerca do roubo de tecnologia e empregos que a China promoveu não é de todo incoerente. O sucesso industrial da China se deu às custas da desindustrialização de várias partes do mundo, assim como a vitória da Alemanha industrial custou a desindustrialização do resto da Europa a partir dos anos 1980, que se tornou consumidora dos produtos de alta tecnologia da indústria germânica.

A crítica marxista ao desenvolvimentismo e seus pressupostos

Não é necessária uma crítica marxista ao neoliberalismo, pois os desenvolvimentistas já demonstraram, na teoria e na prática, que se trata menos de uma estratégia nacional de desenvolvimento do que de um artifício das nações desenvolvidas com a anuência das elites locais predadoras para impedir o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos, como Breser-Pereira alerta constantemente em seus textos e falas.

Atualmente, marxistas de vários matizes, se debruçam sobre as promessas desenvolvimentistas acerca da volta de um capitalismo humanizado e regulado pela política democrática, que combinaria crescimento econômico e distribuição de renda, e resultaria em países com uma vasta classe média e uma minoria de ricos e pobres, sendo que estes últimos viveriam uma pobreza digna, amparada pelo estado. Em suma, a promessa desenvolvimentista (propagada pelas esquerdas) é a recuperação, para qualquer nação que siga o receituário neokeynesiano, do estado do bem estar social do Pós-Guerra implantado nos países pertencentes ao que se chamava Primeiro Mundo (EUA, Europa Ocidental e Japão).

Marxistas de diversos matizes, como Robert Kurz, Moishe Postone, István Mészáros e Jorge Beinstein observam que, desde a década de 1970 o capitalismo mundial entrou numa espécie de crise estrutural devido à queda da taxa de lucro da produção de mercadorias, principalmente a industrial. O aumento de capital fixo (máquinas) e a consequente diminuição do capital variável (trabalho humano) na produção, uma tendência espontânea do capital em busca de maior valorização, entra numa nova fase com a terceira revolução industrial, que introduz a microeletrônica no chão da fábrica. A partir daí, o aumento de produtividade que poupa mão de obra não pode mais ser contrabalançado pela expansão dos mercados e a criação de novos postos de trabalho. O resultado prático é uma tendência ao desemprego e subemprego (desemprego tecnológico), do lado do trabalho, e uma queda global do lucro (e da mais valia), do lado do capital.

A financeirização da economia, com sua especulação desmedida e proliferação de bolhas, é uma decorrência da insuficiência da “economia real” em manter a reprodução do sistema, que recorre ao capital fictício (dívidas que sempre crescem e nunca são pagas) para se manter funcionando. Mesmo a produção industrial depende, em larga escala, do capital fictício para se manter, seja na forma de créditos estatais baratos e impagáveis, seja no financiamento constante do consumo, por meio de bolhas de crédito e crescimento econômico sustentado por bolhas.

Diante de tal realidade, a única solução para o capital é se refugiar no financismo ou, quando aplicado na produção, explorar ao máximo o trabalho, diminuindo seu custo de duas formas: ou substituindo-o por máquinas (exploração relativa), ou pagando o mínimo possível para o trabalhador (exploração absoluta). Nos dois casos, os resultados são dramáticos para o povo: ou falta trabalho ou paga-se mal por jornadas estafantes e condições precárias. Na maior parte das vezes, ambas as situações ocorrem simultaneamente no mercado de trabalho. Boa parte do crescimento chinês, principalmente em seu impulso inicial, se deu por conta da exploração extrema de sua abundante e (sob a chibata da ditadura) resignada mão de obra.

Em outras palavras, na etapa atual das forças produtivas altamente desenvolvidas, não há espaço para que todos os países se tornem desenvolvidos, cuja condição iicial é serem fortemente industrializados. Com a lucratividade decrescente, a indústria necessita de escalas gigantescas, concentração máxima de capital e exploração intensa do trabalho para ser minimamente viável. Ela deve se concentrar em alguns poucos países às custas da desindustrialização ou não industrialização dos outros. O jogo de industrialização das nações de hoje em dia é de soma zero: onde um ganha o outro perde. A possibilidade de todas as nações terem um forte parque industrial e se tornarem desenvolvidas é apenas uma ilusão desenvolvimentista. Se o Brasil lograsse êxito em sua reindustrialização durante o petismo, ela se daria às custas da manutenção de nações dependentes e desindustrializadas na América do Sul e África, e pela disputa ferrenha por esses mercados com a China, Alemanha e EUA.

Outra ilusão desenvolvimentista é quanto à possibilidade das nações industrializadas promoverem uma distribuição de renda de forma que a maioria absoluta da população se torne classe média, com aconteceu nos anos dourados do estado do bem estar social. A tendência do capital em aumentar a exploração do trabalho, via automação ou diminuição dos salários, bloqueia qualquer possibilidade de uma melhor distribuição de renda e, em consequência, de um aumento do consumo, bem como de aumento dos gastos sociais do estado, pois arrecadação de impostos cai ou estaciona com o baixo crescimento. Tais tendências de precarização do trabalho e compressão salarial se verificam desde a década de 1980, inclusive nos países centrais do capitalismo. Nada indica que a China, a novas promessa capitalista de país desenvolvido, siga um caminho diferente.

O que se verifica é exatamente o movimento oposto ao desejado pelos desenvolvimentistas, pois os países industriais vencedores, ou não conseguem distribuir renda (como a China) ou passam por um processo regressivo de concentração de renda (EUA, Alemanha, Japão, Coreia do Sul) aumentando a pobreza relativa. Ora, o conceito de desenvolvimento implica deve satisfazer duas condições: o país deve ser rico, o que pressupõe uma indústria ampla e competitiva; e deve promover o bem estar social, só conseguido com uma satisfatória distribuição de renda. A realidade é que os países vencedores se tornam ricos e fortemente industriais, mas regridem ou não atingem uma boa distribuição. A ponto de se poder falar, hoje, numa tendência global de des-densevolvimento das nações ricas, que ocorre pela perda de suas indústrias ou pelo aumento da desigualdade, ou ambos.

Em decorrência da crise crônica do capitalismo, a tendência global é a de crescimento da desigualdade, entre países e entre a população de cada país. Internamente a desigualdade significa aumento da pobreza relativa da vasta maioria da população. A tendência espontânea do capitalismo tardio, e que nenhuma política econômica consegue reverter, é a da diminuição das classes médias e aumento da pobreza, inclusive nos países de sucesso industrial como Alemanha e EUA. A China aumentou, em números relativos e absolutos, a sua classe média durante o boom de crescimento nas décadas de 2000 e 2010, mas aumentou também a desigualdade interna, mantendo a maior parte de sua população na pobreza – e não parece haver nenhuma tendência que indique, num futuro próximo, a inserção da maior parte dos pobres chineses na classe média.

Por mais políticas distributivas que se tente, combinadas com práticas de crescimento econômico desenvolvimentista, a desigualdade interna não cede, ou cede apenas pontualmente, como no Brasil dos governos petistas. Desde os anos 1970 a lógica concentradora do capital e a compressão salarial se impõem de forma incontornável, o que demonstra o acerto da interpretação marxista de uma crise crônica e insolúvel do capitalismo, provocada pela queda da taxa de lucro da produção real e pela substituição do trabalho humano pela automação, provocando desemprego tecnológico. Tal crise não pode ser vencida com “vontade política” dos agentes do estado ou das corporações, restando apenas a amenização de seus efeitos com políticas distributivas pontuais e indução ao crescimento por meio de bolhas (crédito com capital fictício).

O que acontece, segundo os marxistas, é que o fundamento do capital está em crise: a valorização do valor, expressa na superfície do sistema pela taxa de lucro empresarial, encontra-se em queda por conta da automação iniciada na década de 1970 e que se intensifica com indústria 4.0, gerando, entre outras consequências, desemprego tecnológico. Até mesmo os economistas e intelectuais mainstream, assim como organismos internacionais, como OIT e FMI, admitem que a automação ameaça seriamente o mudo do trabalho e que os empregos perdidos para as máquinas, ou não serão repostos mais à frente, ou darão lugar a trabalhos precários de baixa remuneração.

O que significa que boa parte da população mundial (talvez a maioria) se tornará supérflua para o sistema, mal sobrevivendo de bicos e empregos precários, comprovando a tese marxista de que no capitalismo, o capital se torna uma “entidade central” cega e autônoma que se utiliza da vida humana e dos recursos naturais para se multiplicar. O dinheiro não é um instrumento da reprodução da sociedade humana, mas são os humanos que se tornam o suporte de reprodução do dinheiro/capital. O processo é semelhante às infecções virais, que se utilizam do corpo humano como suporte para sua reprodução – só que o vírus é um organismo biológico, enquanto o capital é uma forma social.

O que a crítica marxista diz é que os governos de esquerda e sua política econômica desenvolvimentista só podem ser administradores de crise, oferecendo soluções paliativas para os sintomas da crise crônica do capitalismo. Não há mais a possibilidade, dado o estágio atual de desenvolvimento tecnológico das forças produtivas, de retorno ao estado do bem estar social, com pleno emprego, salários crescentes proporcionando uma expansão do sustentável do consumo, alta arrecadação de impostos e serviços públicos universais e de qualidade.

Em suma, as promessas desenvolvimentistas são irrealizáveis em seus dois principais aspectos. Primeiro, não é mais possível que todas as nações tenham setores industriais relevantes para sua economia, condição necessária (embora não suficiente) para se tornar desenvolvido. A industrialização de um país implica na desindustrialização de outros. Segundo, mesmo quando um país consegue se industrializar (ou se manter industrial) e impor seus produtos de forma competitiva no mercado global, ele não consegue fazer diminuir a pobreza relativa dentro de suas fronteiras, inserindo a maior parte da população nas classes médias de forma sustentável. Por outras palavras, não consegue atingir ou manter o estágio de “país desenvolvido”, que pressupõe uma boa distribuição de renda e redução constante da pobreza relativa.

Aliás, a tendência nos países industriais tradicionais, como EUA, Alemanha e Japão, é a da diminuição da classe média e aumento da classe trabalhadora (pobres relativos), o que tende a provocar convulsões sociais e fenômenos políticos imprevisíveis, como a eleição de Trump, por exemplo. Nos países desenvolvidos perdedores da competição industrial, como França, Itália e Espanha, as bases tributárias para manter o que restou do antigo estado do bem estar social se esboroam e o ódio propagado pela extrema-direita neofascista cresce perigosamente entre um eleitorado empobrecido ou ameaçado pela pobreza, sem perspectivas de futuro, frustrado e ressentido.

Para os marxistas, a crise atual do capitalismo é uma crise do valor, o coração do capital. Ela não pode ser contida por meio políticos, mas apenas amenizada temporariamente, e empurra, por meio do desemprego tecnológico, a maior parte da população mundial para a superfluidade e, em consequência, para a pobreza relativa ou a miséria. Paradoxalmente, os meios produtivos atuais são suficientes para que toda a humanidade tenha suas necessidades sociais satisfeitas e, desde que o consumismo não seja uma delas, sem a degradação da natureza. Ou seja, há meios técnicos para todos terem uma vida boa, sem a necessidade, inclusive, de trabalho diário estafante. Mas a lógica capitalista de maximização do lucro a qualquer custo impede a realização de seu próprio potencial técnico.

A única saída vislumbrada pela crítica marxista é a emancipação do sistema e a refundação global da sociedade em outras bases que não as capitalistas. E não se trata mais de uma utopia inatingível, de sonhos irreais de marxistas revolucionários ou desbundados contraculturais, mas de uma necessidade urgente, ante a irrefreável destruição social e ecológica promovida pelo capitalismo. A alternativa é a barbárie que já se inicia com o crescimento da praga neofascista e da economia predatória a la máfia, implantada pelas corporações multinacionais em conluio com elites e estados nacionais cada vez mais autoritários e vigilantes, nos quais escasseiam até mesmo as liberdades formais das democracias liberais.

Comentários

  1. Prezado, esse seu artigo é excelente. Concordo em praticamente tudo sobre a sua descrição do mundo moderno. Apenas no final, sobre a solucao para esse imenso problema, embora eu concorde com você que vai envolver um jogo de poder, eu me pergunto se devemos encarar o problema sob a otica marxista que dá uma enfase ao capital. Digo isso, porque acredito que a solução só será encontrada se pensarmos na sociedade e no universo como fluxos de energia. O capital so serve se ajudar os fluxos de energia do universo serem usados pela sociedade. O capital não é o centro do unvierso; mas sim a energia e sua produção, distribuicao e consumo é que é a origem de toda vida e, portanto, de toda sociedade. Pense menos em termos de injustica social e mais em fluxos de energia e talvez vc possa encontrar uma solução que não ocorra aos marxistas. Mesmo que vc seja marxista, lembre se de que o capital e a sociedade são apenas formas de producao e distribucao de energia para os seres humanos.

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  2. Não sei se me expressei bem no comentario anterior. O que eu quis dizer é apenas que o capital não é tão importante. O que importa é a energia. Nós devemos buscar nos aproximar das fontes de produção e distribuicao de energia, porque não importa o quanto a tecnologia evolua, o negocio principal em qualquer sociedade sempre sera a producao e a distribuicao de energia. Por exemplo, as pessoas poderiam ser ensinadas a trabalhar para serem autosuficientes, ao inves de trabalhar para o mercado. Trabalhar para produzir a energia e o alimento que consumirao. Se nos encontrarmos formas disso acontecer, individualmente, familiar mente, localmente, estaremos libertando pessoas do sistema capitalista, dentro dele mesmo, se elas aprenderem como renunciar a esse estado de coisas que vc descreveu no seu artigo. Talvez, isso possa ser a semente de um mundo novo, aonde as pessoas não trabalhem mais por dinheiro; mas para sua autosuficiencia e de sua comunidade. Pesquise sobre o sisteminha embrapa. Imagine se metade dos brasileiros fossem ensinados aquele sistema.

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    1. Obrigado pela leitura atenta meu caro. De fato, minha perspectiva é marxista, próxima ao marxismo da Crítica do Valor. Não tenho conhecimento suficiente sobre teorias do fluxo de energia. Mas creio que concordamos que uma sociedade realmente livre deve alcançar a autossuficiência comunitária, ser livre das coerções do estado e do mercado e privilegiar a solidariedade intra e inter-comunitária. O que resultaria num modo de pensar e viver totalmente diferente do atual.
      Abraço

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