Esse medo de chuva...
dançando ao vento
da chuva que vem
insone ansiedade?
Esse medo de chuva...
dançando ao vento
do temporal que vem
ou: O abismo de Narciso
A exigência de ser amado é a maior das pretensões (Nietzsche)
Ah, se uma rês pastou em sua fazenda, gostou do pasto e depois se afasta! Mesmo que não deixe de amá-lo, a simples diminuição do amor (ele faz contas com o amor) ou o interesse por outras pastagens lhe é insuportável. Enquanto está entre as suas cercas, pastando em seus campos, a rês vale muito pouco para ele. Mas se ela ousa fugir para experimentar novas pastagens, é como se tornasse um Deus ou Demônio muito maior que ele, que se carcome por dentro. De ciúme. De inveja da rês alada que é feliz sem o seu pasto. De inveja dos outros fazendeiros e de seus pastos fartos. De raiva de si mesmo e da pouca sustância de seu pasto magro.
A rês é terrível: não lhe gosta, como pode pastar feliz longe de suas terras? Uma rês mal agradecida, malvada. Ele quer que ela se sinta infeliz longe de sua fazenda e volte ao cativeiro, ele quer a tristeza do que lhe escapou às mãos. E a rês, mesmo longe, lhe quer bem, ainda lhe tem amor no olhar, um amor além da posse. Que ódio! A rês é virtuosa, é melhor que ele, que se sente impotente e raivoso. Que inveja da bondade da rês, ela fere, uma ferida que cresce e aprofunda, uma ferida antiga que estava oculta e se mostra em carne viva: a carne podre de sua alma escura. Que ódio de sua alma que não consegue ser tudo para a rês, que não consegue ser algo para alguém, nada para ninguém.
Ele se sente horrível se não lhe gostam. Precisa que gostem dele em seu lugar, pois é incapaz de gostar, inclusive de si mesmo. Precisa de um rebanho que lhe siga os passos e as ordens. Um rebanho submisso de mil cabeças infelizes no seu pasto miserável, para fazê-lo um fazendeiro rico e orgulhoso. Há um medo terrível da fuga, que uma rês escape de seu pasto. Em sua fazenda, os serviçais vigiam sem parar as suas reses: os peões da Posse, da Raiva, do Ciúme, da Vingança, da Vaidade e da Inveja. E o Capataz do Medo, o medo de perder as reses. O Capataz que a tudo controla, que quer regular o fluxo da vida, manipulando o pasto, a ração e o caminho das reses, que vigia os lobos que rondam a fazenda e dá ordens aos peões sombrios. O Capataz é seu servo mais assíduo e fiel. Com o Capataz zeloso vigiando suas posses, ele pode dormir em paz, contando seu rebanho e acumulando o lucro da ordenha diária do amor, da sangria de amor que ele guarda em seus tanques imensos, insaciáveis.
Mas ele está ficando cego. Não vê que se fazendo de servo, o Capataz se torna o seu senhor. Não vê como sua fazenda está ressequida e triste, sem pássaros nem frutas, sem chuva, sem árvores: apenas um pasto imenso e ralo, e seu rebanho infeliz. Ele mesmo não vê o quanto é triste, se arrastando sozinho em sua casa grande e ruinosa. Ele é o silêncio que se move no silêncio, o vazio que se abisma no vazio, as ruínas que deslisam nas ruínas, o escuro dentro do escuro da casa sombria. Ele está cego e surdo, doente, quase não se move, absorto em sua catatonia, em seu medo de perder uma rês que seja, uma gota que seja do leite do amor que ele sangra das reses. O leite que ele pensa beber todas as manhãs, mas que há muito não lhe molha a boca ressequida. Ele está morrendo em vida, a pior morte que existe.
Enquanto morre, ele pergunta a seus peões por uma rês fugida e se contorce de ódio pela perda, ódio da rês que não quer mais o seu pasto, ódio de si mesmo que a deixou escapar... E as reses fugindo mais e mais de sua triste e ressequida fazenda, e seu ódio aumentando, e sua vida murchando, e a morte crescendo nos porões da casa, planta negra cultivada pelos peões sombrios. A morte tomando a casa inteira e ele fazendo as contas das reses fugidas, das reses que restam, do leite do amor que começa a faltar, de que ele nunca se fartou, que sempre lhe faltou, embora abundante... E o Capataz do Medo rindo dessa canção tão triste.
De repente
Não há casa nem curral
Não há rebanho nem cercas
Nem leite nem riquezas
Nem fazenda ou fazendeiro
Não há nada
Nunca houve nada, nunca!
Apenas seus olhos sombrios
De menino assustado
Sonhando latifúndios no asfalto
Seus olhos tristes de boi apartado
Ele é um boi
Sobre os campos de cimento e vidro
E pedra e plástico e cavalos de metal
O Capataz e seus peões tangem com violência
Um rebanho cheio de peste e feridas
E o rebanho era ele
Ele é um boi
E a morte cresce nos porões da casa imensa
De cômodos mobiliados com o Medo
O Ódio, a Vingança, o Ciúme, a Inveja
Móveis carcomidos de si mesmos
Tão antigos quanto a casa
E a casa era ele
Ruindo ainda em vida
Com as suas fantasias
De boi só
Ele é um boi
Um boi magro e marcado
A ferro e fogo e ferido
Pelo chicote e os ferrões
Do Capataz e dos peões
Senhores de fato
De suas terras desertas
Senhores que cruzam num galope louco
Os campos de sua alma de um confim ao outro
Sua alma de abismos: fazenda de trevas
Prenhes de mágoa e medo
E delírios negros
extrair até o osso
do suor humano
horas e horas
nas salas nas ruas
olhos cansados nas telas
braços exaustos nas máquinas
por pão e água
e migalhas de entretenimento
carnes e almas gritam
aflitas
em vez de chutarem o bezerro de ouro
e reinventarem a tribo comum
procuram bodes expiatórios
e engrossam as fileiras fascistas
ele (se) faz do dia
após dia
seu firme compasso de vida
poesia sem letra nem melancolia
Para a Zezé
Tempos tumultuosos lá fora
dores, lutas, labutas
presságios de fim de mundo
Aqui dentro
o coração revolto
um poeta de cabeça fraca
Amanhece chovendo manso
sinto o doce odor da sua respiração
misturado ao suave suor noturno
de sua pele atlética
A bagunça dos lençõis e cobertas
mal oculta a harmonia da cena
e a força do seu sono ressoando
luz contra as sombras do mundo
e meu coração soturno
Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho. Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos, calçadas e ruas, tudo muito...