19 junho, 2023

Ócio moderno

Por que transformar
as areias do mar
num clube ao ar livre?

Por que a mata virgem
se desnuda em fuga
nos fins de semana?

Por que velhas cidades
são parques temáticos
anestesia de arcaico?

Por que a canção 
que toca o coração
se entoca no streaming?

Por que o prazer
se apraz agora
prezando prazos?

Por que todo tempo
à vista ou a prazo
tem pressa e preço?
 



putaria

 o cio

virou negócio


ócio

virou negócio


oh! céus!

virastes negócios!




16 junho, 2023

Sísifo

Ofícios são gratificantes,
há evolução, maturidade, legado...
O poeta não 
evolui,
mesmo que cresça 
poeticamente, não acumula nada,
não incorpora nada em si,
nada para si
nada para ninguém.

Seu movimento furioso
e voluptuoso
conduz ao ponto zero 
de onde a vida partiu.
A herança do poeta não é o conhecimento,
só uma sucessão de fugacidades
que talvez cintilem aos olhos
de alguém na cidade.
Fecham-se as páginas e ele 
(poeta, poema, livro)
morre para sempre...
até a próxima abertura, 
novo nascimento do nada.

O poeta gira em falso,
é um perpétuo
começo absoluto, criança eterna.
Humano
no ponto mais fundo do ser
humano, onde não se suporta mais
ser
o puro esvaecer, soldado raso,
tábula rasa, vaga 
superfície do existir,
onda que mal emerge e já torna
a mar.

Talvez por isso busque o sagrado,
ilude-se revestindo seu ritmo
de religações do espírito.
No fundo
o poeta sabe 
que sua voz e suas canções
apenas pulsam a passagem
entre o caos e o nada,
o tempo e seu esmaecimento,
o movimento da vida
e o muro inerte da morte.

O poeta comete o erro fatal
para a alegria de viver:
torna-se íntimo do desamparo
e da insignificância
que nos sustenta    
cambaleantes
do abismo mais fundo do ser
inexistente
que somos.


13 junho, 2023

Lugar comum

madrugada 
a tv está calada 
não se fala mais nada 
na sala   na casa fechada 
as frutas sobre o balcão 
esperam ser guardadas 

prazeres funcionários 
postos sobre a mesa 
uma pizza calabresa  
e um copo de cerveja 

amanhã é o trabalho 
a vida funcionando 
o murmúrio da cidade 
a vida    uma cilada 
a rotina é o caralho 
embaralho noites e dias 
em barulhos e silêncios 
cegos-surdos se lançando 
num caos de letras caladas 

mais um copo e mais outro 
até curar esta angústia 
e sua filosofia 
barata de cozinha


Paul Cézanne, Still Life with Skull

08 junho, 2023

O tio

    Ao tio Zé Gomes (in memoriam)

Figos no tacho, fervem
nuvens na tarde escura
de Morrinhos. O tio
falastrão quase não fala,
perdido entre as cobertas
puídas da cama puída
no quarto quase vazio.

    Os tios
    não eram eternos?

As rachaduras
do casebre em ruínas,
o olhar perdido do tio
não me conhece mais.
O silêncio,
o silêncio,
uma nuvem carregada de silêncio
se abraça ao aroma
doce de figo

    Os tios
    não eram eternos

e despenca um mundo
de água (de infância). 

 



O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...