Todas as revoltas e revoluções fracassaram. E ainda fortaleceram o capitalismo

Cedo ou tarde o capitalismo se revela como um sistema que não serve à vida humana, mas se serve dela (e a sufoca) para se reproduzir. Este fato fica explícito em momentos de crise, como a que vivemos desde 2008, quando os lucros da produção de mercadorias se tornam baixos demais e, para compensar a queda, o sistema recorre às demissões e aumento da exploração do trabalho - na forma de arrocho salarial, precarização, aumento de jornada, diminuição de direitos etc.

A já difícil vida das pessoas se torna insuportável e toda a frustração humana provocada pelo capitalismo emerge com a crise. Afinal, o sistema mercantil transforma as pessoas em mercadorias (trabalhar é vender-se no mercado) e máquinas de fazer dinheiro, reduzindo o humano à racionalidade instrumental e à competitividade, aspectos que se tornam centrais na psique do homo economicus, subordinando todas as demais características humanas, como solidariedade, afetividade e vivência coletiva.

O problema do capitalismo é que, ao se consolidar como sistema social, ele impõe ao mundo o determinismo cego do capital, progressivo e autônomo da vontade humana, formando uma totalidade direcional com lógica própria, na qual as pessoas e a natureza se tornam instrumentos (meios) para a real finalidade do sistema, que é a de multiplicar o capital.

Se a reprodução do capital exige desemprego, exploração do trabalho e precarização, que seja. Se exige exploração predatória do meio ambiente, a ponto de colocar em risco a vida humana, que seja. Se exige que as pessoas, desde tenra idade, se auto-disciplinem para o mais alto desempenho possível no trabalho e nos negócios, a ponto muitas amizades se revestirem de networking, que seja.

O capital, para crescer, necessita colonizar a sociedade, a psique, o corpo e a natureza, de forma cada vez mais impregnante e expansiva: ele tanto aprofunda o seu domínio quando alarga suas fronteiras em todas as esferas da vida. E neste processo de colonização ele altera e revoluciona tudo, valores, mentalidades, cotidiano, meios de produção, hábitos de vida, técnicas, saberes, artes etc.

Como dizia Marx, no capitalismo “tudo que é sólido desmancha no ar”. Exceto uma coisa, ou melhor, um ser: o capital. Na verdade, todas as coisas são revolucionadas para que o capital se preserve e se expanda: o poder do dinheiro, a exigência do lucro e o predomínio da lógica da mercadoria são a únicas coisas que não mudaram desde a consolidação do capitalismo ocorrida com a Revolução Industrial.

A lutas anticapitalistas que reforçam o capital

A partir daí, todas as mudanças sociais acabaram por aprofundar e expandir o poder do capital como senhor da vida humana e natural. Mesmo as lutas que inicialmente pareciam ser contra o capitalismo se revelaram, ao final, a seu favor, como por exemplo as lutas socialistas que desembocaram na social-democracia e no socialismo real. Ambos não romperam com a lógica capitalista e, no fim das contas, acabaram por aperfeiçoar tanto o indivíduo quanto a sociedade para a consolidação do domínio do capital nas esferas da psique, da política e da economia.

Tanto o estado do bem estar da social-democracia, quanto o estado socialista, com suas políticas distributivistas, saúde e educação de qualidade, gratuitas e universais, acabaram por democratizar o capital e seus valores entre as massas, aprofundando nos indivíduos e na sociedade a lógica mercantil, na forma de disciplina para o trabalho, do desejo de consumir e de formação técnica.

Mesmo os discursos coletivistas e a consciência cidadã (no caso da social-democracia) ou revolucionária (no caso do socialismo real), não romperam, inclusive nos estados socialistas, com as categorias basilares do capitalismo, como o trabalho, o valor/dinheiro, o indivíduo abstrato do direito etc. Neste aspecto, apenas a competitividade interna foi rompida nos estados socialistas, o que resultou num capitalismo de perna quebrada, moroso, ineficiente e frustrante para os indivíduos, que só pôde ser mantido por meio de governos totalitários.

Por isso, no fim das contas, a consequência da social-democracia, por exemplo, foi o fortalecimento do capitalismo, pois a boa remuneração do trabalho resultou na formação de um mercado consumidor robusto e dinâmico. E as nações socialistas, embora perdedoras no mercado mundial, possuíam, ao fim de suas tentativas fracassadas de comunismo, um estado forte, moderno e organizado, além de uma força de trabalho bem formada e barata, possibilitando uma rápida (re)implantação do sistema capitalista em sua versão completa, muito bem executada pela China e mal aproveitada pela Rússia e países do Leste Europeu, que aderiram de forma atabalhoada e dependente ao neoliberalismo da década de 1990.

Da mesma forma, as lutas identitárias dos negros, das mulheres, LGBT e de outras minorias, que pareciam, de início, anti-sistêmicas, confrontaram apenas o aspecto conservador, racista e puritano do capitalismo, que na verdade representava um empecilho à necessidade do capital superar suas etapas ultrapassadas. Por outras palavras, a luta multicultural foi, na verdade, contra aspectos obsoletos e decadentes do capitalismo, cuja queda era necessária para libertar e empoderar as minorias como novos sujeitos automáticos, novos capitais individuais que entrariam no mercado para dinamizar a reprodução do capital com abundância de mão de obra e expansão do mercado de consumo.

A igualdade do negro, por exemplo, não significou a promoção das culturas negras de feição pré-capitalista que ainda existiam nas américas, mas inseriu o negro na lógica do trabalho, mostrando que sua suposta incompetência racional e competitiva em relação ao branco era, na verdade, uma construção cultural (o que é verdade) e não uma diferença natural entre raças inferiores e superiores. No fim das contas, esta igualdade representou a colonização definitiva das várias culturas negras americanas pela lógica mercantil do capital.

Em suma, as sucessivas contestações e revoltas ocorridas no interior do capitalismo inicialmente aparentam ser anti-sistêmicas e revolucionárias, mas ao final acabam por realizar a preciosa tarefa de extinguir valores, relações sociais e partilhas de poder que se tornaram obsoletas para o capital e que necessitavam serem substituídas por outras mais modernas. Quase todas as lutas anti-sistema não se revelaram, ao final, emancipadoras, mas modernizadoras para o capitalismo e por ele foram absorvidas.

Por que todas as lutas anticapitalistas fracassaram?

Muitas lutas anticapitalistas fracassaram por conta de correlações de poder desfavoráveis, como foi o caso dos vários grupos guerrilheiros latino-americanos, em luta contra as ditaduras militares do Pós-Guerra. Mas inclusive quando vitoriosas, as lutas anti-sistêmicas fracassaram em emancipar a sociedade do capitalismo. Ou suas demandas foram distorcidas e absorvidas pelo sistema, no caso da lutas das minorias e sindical, ou, no caso dos estados socialistas, suas sociedades totalitárias colapsaram, pressionadas, ao mesmo tempo, pela insatisfação interna do povo e pelas pressões econômicas e geopolíticas externas, deixando, como espólio, um terreno fértil para um novo florescimento capitalista: uma cultura modernizada, um estado organizado e uma imensa mão de obra instruída e barata. Renascimento que foi, em geral, selvagem e superexplorador do trabalho, seja na Rússia, no Leste Europeu ou na China.

Por que as revoluções se limitaram ao interior da estrutura social delimitada pelo capital, ajudando-o a superar seus próprios estágios decadentes? Por que nenhuma delas deu o salto, de fato, para fora do capitalismo? Um dos motivos, talvez o mais importante, é que nenhuma dessas revoluções criticou e atacou efetivamente o centro do capitalismo, que é justamente o capital e suas categorias básicas: valor, trabalho, mercadoria, sujeito abstrato do direito.

As revoluções socialistas, que foram mais longe na tentativa de uma sociedade comunista, por exemplo, preservaram o valor, a mercadoria e principalmente o trabalho abstrato, embora tenham abolido a propriedade privada dos meios de produção e a consequente concorrência interna entre capitais particulares em busca de lucro. O resultado acabou sendo um semi-capitalismo de estado, um capitalismo de perna quebrada, lento e ineficiente, que ainda precisava competir no mercado mundial e na disputa geopolítica mundial com nações efetivamente capitalistas e muito mais dinâmicas na produção de mercadorias e novas armas.

No plano individual, o sujeito revolucionário dos estados socialistas também se viu fraturado entre a persistência da racionalidade e os desejos de consumo do sujeito burguês e o advento da não competitividade solidária que possibilitaria o nascimento do sujeito comunista. Esta fratura da psique, entre o capitalismo e o socialismo, resultou numa subjetividade frustrada por viver numa sociedade totalitária altamente controladora, que provia, geralmente de forma precária, as necessidades básicas do indivíduo, mas que não satisfazia seus desejos consumistas, constituídos a partir da lógica capitalista.

Mais decisivo ainda foi o socialismo manter e hipertrofiar o estado burguês e o sujeito abstrato do direito, aprofundando as relações sociais abstratas da sociedade capitalista. A solidariedade no socialismo real passava, em primeiro lugar, pela igualdade abstrata dos indivíduos efetivada pela burocracia do aparato estatal.

O socialismo como realmente existiu não conseguiu restabelecer as relações sociais concretas (diretas e humanizadas) das sociedades pré-capitalistas, mas, à diferença destas, num patamar efetivamente igualitário. Para isso, seria necessário abolir de fato o capital e suas categorias básicas. No entanto, o trabalho abstrato, o valor e a mercadoria continuaram a existir e a mediar, de forma abstrata, as relações sociais nos estados socialistas, só que regulados pela burocracia estatal em vez do mercado.

Da mesma forma, o sujeito universal do direito ainda estrutura a subjetividade dos indivíduos no socialismo real, constituindo-a de como forma abstrata, apta para a existência social mediada pelo trabalho, valor e mercadoria, categorias básicas do capital sob coordenação da burocracia estatal.

O capital ainda se encontrava no centro das sociedades socialistas realmente existentes (URSS, Leste Europeu, China, Cuba), o que pode ser verificado pela centralidade da economia na vida social, como no capitalismo ocidental. Numa sociedade realmente emancipada do capitalismo a economia se tornaria secundária. Na verdade, os meios e a organização da produção e consumo de bens e serviços necessários à vida social certamente seria muito diferente daquilo que, hoje, entendemos por economia, pois não haveria trabalho a produzir valor e mercadorias, mas apenas atividade humana coordenada de forma direta, produzindo bens e serviços úteis. Estes seria distribuídos diretamente às pessoas de acordo com suas necessidades ao invés de serem vendidos ou trocados no mercado. Ou seja, a produção e consumo dos produtos não passaria pela mediação abstrata do trabalho, da mercadoria e do valor (dinheiro) e, portanto, não serviriam à reprodução do capital e sim às necessidades concretas das pessoas.

Comentários

  1. Como faço para ficar recebendo as matérias desse blog?

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    1. Olá Ady, coloquei no menu à esquerda a opção "Seguir por Email", que envia avisos de novas postagens para seu email. Abs.

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    2. Ok, Acho que é dados de contato, enviei.
      Obg

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