26 julho, 2020

Domínio abstrato do capital, o ponto cego do capitalismo

Sem dúvida, quando um povo entra em colapso; quando sente esvair-se para sempre a fé no futuro, a sua esperança na liberdade; quando a submissão se lhe afigura de primeira utilidade e as virtudes dos servos se insinuam na consciência como condições de sobrevivência, então há também que mudar o seu Deus.
(Nietzsche, O Anticristo)

O capitalismo caminha para o colapso inevitável

O capitalismo é uma totalidade direcional, uma estrutura que instaura uma evolução determinista em meio ao real indeterminado. Por isso, é impossível “moderar os mercados”, a não ser provisoriamente, como foi o caso dos 30 anos dourados do Primeiro Mundo do Pós-Guerra e seu estado do bem-estar social.

Por conta de sua lógica determinista, as leis tendenciais do capitalismo são inevitáveis e irreversíveis, como a tendência da substituição do trabalho humano pela automação, que baixa os custo e, em consequência, provoca a queda da taxa de lucro por unidade de mercadoria. Daí a necessidade de se compensar essa queda produzindo um volume sempre maior de mercadorias, conjugada com uma maior exploração do trabalho. Isso, por sua vez, deságua em dois problemas: a devastação do meio ambiente e as crises de superprodução, agravadas pelo desemprego estrutural e o baixo rendimento dos trabalhadores superexplorados, que comprimem o mercado de consumo.

A saída encontrada para esta enrascada produtiva foi fabricar, a partir da década de 1980, montanhas de capital fictício, alavancando a economia por meio de dívidas e bolhas. Ou seja, a financeirização não provocou a crise atual do capitalismo, mas foi uma tentativa de administrá-la, relativamente bem sucedida até 2008, quando ela se explicita como uma crise existencial do capital e se espraia das finanças para a economia ‘real’ e daí para as esferas política, moral e subjetiva da sociedade capitalista.

Diante desse quadro de crise estrutural e incontornável do capital, não será o retorno a um Keynes renovado, invenções progressistas como a Moderna Teoria da Moeda (MMT), nem a busca da restauração do estado do bem-estar que vão solucionar o problema. O capitalismo entrou em colapso definitivamente, pois a tendência à automação e superexploração do trabalho se aceleram e as taxas de lucro seguem diminuindo para próximo de zero em todos os setores. Não há capitalismo sem lucro e, por isso, ele vai colapsar como sistema, provavelmente de forma lenta, em décadas.

A incapacidade dos sujeitos perceberem a dominação indireta do capital

E as pessoas, no fundo (no inconsciente), sabem que sua sociedade caminha para o colapso. Do ponto de vista psíquico, o século XXI é marcado pela desilusão, cansaço e falta de perspectivas em relação ao futuro. Mesmo nos países centrais, as pessoas sabem que a tendência é a queda do padrão de vida, os filhos ganharem menos que os pais, o estado oferecer menos proteção social, diminuírem os bons empregos e cada um ter que se virar como pode no mercado de trabalho massivamente precarizado, uberizado e bazarizado. Esta desesperança difusa desperta nos indivíduos, como defesa psíquica, seus sentimentos mais sombrios, como a angústia, a ansiedade, o medo, o ressentimento e o ódio.

A causa dessa crise existencial do capitalismo são suas pŕoprias contradições sistêmicas e a esperança de Marx e dos marxistas era que os trabalhadores e marginalizados, que são a imensa maioria da população, tomasse consciência dessa situação e promovesse a revolução comunista, que iria instaurar uma comunidade concreta, não hierárquica e autogerida, substituindo a razão instrumental pela razão humanitária, que organizaria uma produção material e simbólica voltada para as necessidades humanas, e não para a reprodução do capital.

O que eles não previram é que a quase totalidade das pessoas, exploradas (perdedores) ou exploradoras (ganhadores),  poderiam não ter condições de tomar consciência de que a verdadeira causa da crise é o sistema capitalista, com suas contradições internas derivadas da substituição de trabalho por automação e sua socialização abstrata, concorrencial e individualista.

As pessoas, em geral não compreendem que o sistema mercantil, sua lógica da mercadoria e sua forma sujeito impessoal, vazia e abstrata são a causa de grande parte de seu sofrimento. Esta incapacidade de crítica radical, de ‘ver’ o capital como a raiz da crise existencial de nossa sociedade, decorre da natureza complexa e abstrata da dominação no capitalismo, que não é exercida de forma direta por um grupo social sobre o outro. A dominação, ao contrário, é indireta, exercida por meio da lógica da mercadoria, a lei do valor-trabalho que tem a força quase objetiva de uma “lei natural” (uma segunda natureza) embora seja uma construção social.

As pessoas, em geral, tendem a atribuir a causa dos problemas sociais a indivíduos ou grupos sociais dominantes ou supostamente dominantes. E, de fato, durante toda a história imperial da humanidade, podia-se atribuir o sofrimento do povo a relações concretas entre grupos sociais dominantes e dominados. No capitalismo, porém, a dominação é indireta, pois é exercida pelo capital, um ‘ser’ inumano, cego, impessoal e abstrato. Se na idade média fazia sentido sentir raiva e exigir a expiação moral do clero e da nobreza, que exploravam diretamente o povo, tais reações se tornam inócuas atualmente, pois o capital não é um grupo social (embora as elites o representem) nem uma pessoa, não tem rosto nem moralidade, sentimentos ou caprichos, e é insensível aos afetos humanos.

A primeira dificuldade para as pessoas ‘verem’ a dominação do capital é, portanto, a forma inusitada e inédita (na história humana) em que ela se manifesta, como dominação indireta e abstrata exercida pelo capital/dinheiro, um meio criado pelos humanos que se autonomiza e se torna um fim em si mesmo. Numa reviravolta irônica, o dinheiro, criado pelas pessoas para servi-las, acaba por se servir delas para se multiplicar como mais dinheiro (lucro). Esse modo de dominação, impessoal, complexo, sutil e indireto, vai contra o senso comum das pessoas, que acabam não o compreendendo em sua intrincada totalidade.

A incapacidade dos sujeitos se perceberem como estruturados a partir do capital

Mas há um outro motivo para a dificuldade da tomada de consciência das pessoas em relação ao capital. Um motivo, ao mesmo tempo cultural (coletivo) e psíquico (individual), pouco explorado pelos marxistas em geral e é consequência do capitalismo não ser apenas um sistema econômico, embora se estruture de forma a reduzir a sociedade à economia, e o humano ao valor-trabalho e sua lógica. O capitalismo se constitui, na verdade, como um regime social que abrange todas as esferas da existência humana, inclusive a psíquica. Mais que um sistema econômico, e mais que um sistema social, o capitalismo é uma cultura, no sentido antropológico do termo, em que a esfera da economia (na forma de capital) se torna central e passa a regular as demais, inclusive a esfera subjetiva (psique) dos indivíduos.

Este arranjo em que o coletivo estrutura as individualidades (o homem) de uma cultura não é novidade para a antropologia ou a sociologia. Grande parte das “leis” e “formas” compartilhadas pelos indivíduos de um cultura são, em qualquer sociedade, construídas de forma tácita e coletiva; e permanecem inconscientes para os indivíduos, que costumam entender essas forças desconhecidas do mundo social como pertencentes ao território do sagrado e/ou da natureza, que lhes são impostas a partir de fora do mundo dos homens e sobre às quais sua vontade e ação, individual ou coletiva, têm alcance limitado.

Com o capitalismo não é diferente e para as pessoas, em geral, a centralidade do capital na estruturação da coletividade e da subjetividade foi construída de forma inconsciente e assim permanece, em grande medida. Na verdade, seu grau de inconsciência, se é que se possa falar assim, é até maior na modernidade do que nas culturas pré-capitalistas, uma vez que a principal dominação social no capitalismo é indireta, exercida pelo capital sobre as pessoas e não por um grupo social sobre outro.

A centralidade do capital (que muitos antropólogos chamariam de ‘fato social total’) se espraia por todas as esferas da vida, inclusive a vida íntima, estruturando, desde o cerne, a psique do indivíduo. Este, em geral, tem pouca consciência de que sua identidade como “homem moderno” é constituída, desde suas bases mais fundas, pelo capital. Ser um homem moderno é ser um homo economicus ― sujeito automático, capital subjetivado ― delimitado e regulado pelos atributos masculinos da racionalidade instrumental e da competitividade, abstraídos do homem concreto das sociedades patriarcais pŕe-capitalistas. Por isso o termo preciso e correto é ‘homem’ moderno (ou pós-moderno), mesmo quando se fala da mulher e sua incorporação (que se luta para ser) igualitária no mundo do trabalho e dos negócios da sociedade mercantil.(Cf. "O capital é masculino" in Gênero, política e sujeito no capitalismo).

A primazia da razão instrumental e da competitividade, abstraídas dos sujeitos concretos (uma mulher ou um negro podem ser racionais e competitivos) e que que reduz o humano a caracteres abstratos estritamente necessários à reprodução do capital é o ponto fulcral (o centro) a partir do qual é regida todo o resto da psique moderna. Esta redução da alma à racionalidade instrumental e à competitividade abstratas é a maneira como o capital estrutura a psique desde suas bases, de acordo com suas necessidades

Então, o maior empecilho para se criticar o capital  e suas categorias (trabalho, valor, mercadoria) como causa principal do mal estar moderno e pós-moderno vai além da dificuldade das pessoas em compreender a complexidade e o contra-senso de uma dominação abstrata e impessoal, sem poder culpar grupos sociais específicos. A dificuldade de crítica reside também, e principalmente, no fato de que o cerne da estrutura psíquica das pessoas é o capital, ou seja, a própria subjetividade é formada, desde a raiz, a partir do sujeito automático e seus imperativos abstratos de racionalidade abstrata e competitividade.

Ponto cego: a dificuldade de se criticar o que molda a própria crítica

É a partir do sujeito automático (capital) como base apriorística, como pré-formação naturalizada da psique que molda de antemão os modos de ver e ser do homem moderno, que este vai interpretar e criticar o mundo. É o capital, como centro estrutural ao mesmo tempo coletivo e individual, que pré-determina as subjetividades de modo a delimitar o que elas podem ver e criticar e, principalmente, o que não se pode ver: o próprio capital subjetivado como fonte das perspectivas modernas, como fôrma que pré-molda o homem desde a raiz mas cujo acesso a suas formas e conteúdos são proibidos, ou melhor esquecidos, mergulhados no inconsciente.

Este esquecimento das perspectivas e razões pré-formadas transforma a centralidade, subjetiva e social, do capital num ponto cego para o sujeito, cuja capacidade de compreender e criticar o mundo é moldada a priori a partir do próprio capital. Por outras palavras, a visão de mundo, valores, modo de ser, agir e sentir se desenvolvem no interior dos limites estruturais da forma sujeito, cujo centro (que tudo organiza e dá o sentido inicial e final aos movimentos da psique) é o sujeito automático/capital. Para o sujeito, criticar o capital e sua dominação abstrata significa, portanto, negar sua própria identidade de “homem moderno” e, ao mesmo tempo, renegar sua cultura e seu povo - a modernidade e sua civilização.

As categorias básicas do capital, como trabalho, valor e mercadoria, bem como os imperativos do sujeito automático instaurados a partir da razão instrumental e da competitividade se tornam tabus na sociedade mercantil. A crítica radical (da raiz, do núcleo causal) do capital não é proibida de forma explícita, mas é silenciada por um interdito ainda mais eficaz e poderoso que a proibição ao se tornar impensável e absurda para os sujeitos, destituída de qualquer bom senso e razoabilidade. Quem ousa chamar atenção para a historicidade e as contradições da forma sujeito abstrata, do trabalho, do valor e da mercadoria, criticando as bases apriorísticas do sujeito e da sociedade capitalistas é sumariamente ignorado como um delirante/utopista fora da realidade, não apenas pelas “pessoas comuns”, mas inclusive no meio intelectual e acadêmico, cujos limites permitidos para a contestação da modernidade liberal é o conservadorismo de direita, de um lado, e o progressismo de esquerda, de outro.

Um exemplo desta cegueira é a insistência dos economistas de diversos matizes ideológicos (inclusive os marxistas tradicionais) em confundir as atividades voltadas para satisfazer as necessidades humanas das sociedades pré-capitalistas com a categoria trabalho, uma invenção da modernidade capitalista. As pesquisas historiográficas e antropológicas mostram de forma recorrente a inviabilidade de se reunir as diversas atividades humanas dos povos pré-capitalistas e abstraí-las no conceito de trabalho, operação possível apenas na gramática estrutural da sociedade mercantil regida pela lei do valor-trabalho.

Decorre daí a impossibilidade das culturas pré-capitalistas terem uma economia tal como a entendemos, e muito menos serem regidas por ela. Mercados, estados, trocas, moedas, tudo isso existiu de fato nas sociedades imperiais e cidades-estado, mas seu significado e função eram completamente diferentes até o advento do capitalismo, que fez o mundo girar em torno dos imperativos do valor-trabalho, da mais-valia e da lucratividade, do dinheiro enfim. O que dizer então dos chamados povos primitivos, sem escrita, moeda ou estado, cuja organização e reprodução social apenas com muita imaginação podem ser interpretadas a partir das categorias e conceitos capitalistas como trabalho, mercado e economia?

Ao negar a historicidade das categorias e instituições da sociedadade capitalista,  como trabalho, mercado, economia, estado nacional, caipital/dinheiro e forma sujeito (que se consolidaram apenas em meados do século XVIII), os sábios enganam a si mesmos e à sociedade, afirmando que tais categorias são inevitáveis como forma de organização das sociedades humanas em geral. Mesmo nas sociedades primitiva os economistas enxengam um proto-mercado de escambo, teoria que tenta projetar a ordem capitalista no humano em geral e desmentida por várias pesquisas de campo antropológicas. Enxergar a historicidade do capitalismo e suas categorias é (auto)vedada à maioria dos intelectuais acadêmicos e midiáticos, pois vê-la implicaria em questionar as bases liberais (capitalistas) de seus próprio pensamento, constituídas a partir da tradição iluminista.

Apesar de tudo, a crítica radical é possível. E necessária

O capital e suas categorias, a forma sujeito e o sujeito automático são o tabu da sociedade capitalista. São o ponto cego do sujeito moderno e pós-moderno, a face de Deus que nem o homem comum nem o sábio podem olhar de frente, sob pena de enlouquecer. Os que se atrevem a olhar e tentar compreender a face do Ser/Capital e seu mundo/estrutura são tidos como utopistas fora da realidade ou críticos radicais guiados por falsas convicções, mesmo que sua argumentação seja racional e comprovada pelos fatos.

Este ponto cego do capitalismo, que é o próprio capital em sua essência imutável (pelo menos enquanto houver capitalismo) não deixa de gerar contradições no sistema capitalista. Como motor imóvel que movimenta a estrutura, o capital, para se reproduzir e permanecer idêntico a si mesmos (preservar-se como Ser), necessita acelerar a história e a promoção de rupturas técnicas, científicas, políticas, de valores morais, de mentalidades e da vida cotidiana. E como o capital é tempo de trabalho acumulado, ele necessita também servir-se do humano como instrumento para sua reprodução. Esta instrumentalização das pessoas, conjugada com um mundo voltado para o futuro, que nunca repousa e em estado acelerado de mudanças (a tradição da ruptura de Octavio Paz), provoca uma síndrome de Sísifo nos sujeitos, que passam a vida realizando um trabalho intenso e perpétuo sem sair do lugar, sem se realizarem como seres humanos, pois, no fim das contas, o trabalho humano serve à realização do capital.

A esta crise permanente dos sujeitos da sociedade mercantil se somam as crises periódicas da economia capitalista, que provocam carências materiais e explicitam o sofrimento psíquico das pessoas. É por estas frinchas abertas pelas contradições da subjetividade e da sociedade capitalistas, que surge a possibilidade de se ‘ver’ e compreender e, a partir daí, criticar o capital como núcleo comum da psique e da cultura modernas. Muitos artistas, com sua recusa em enquadrar sua atividade estética na categoria trabalho, já vislumbraram o capital e as perspectivas decorrentes da lógica da mercadoria como pontos cegos de nossa sociedade.

Da mesma forma, o Marx da crítica do valor-trabalho fundou toda uma tradição de desconfiança e abalo das estruturas culturais do capitalismo. Tradição que passa por vários marxismos não ortodoxos, como o da Escola de Frankfurt; por um certo pensamento ecológico, como o de André Gorz; por alguns filósofos pós-estruturalistas, como Deleuze e Foucault; e deságua na crítica radical (da raiz, do núcleo) de Moishe Postone e da Nova Crítica do Valor.

Agora que o capital parece se chocar com seus limites internos (desvalorização do valor) e externos (ecológicos) de reprodução, entrando numa fase de colapso, aumentando exponencialmente o sofrimento humano, torna-se mais necessário do que nunca a quebra do verdadeiro tabu do capitalismo, que é o questionamento do capital e sua lógica, em busca de uma outra racionalidade, realmente voltada para as necessidades humanas.

Até mesmo o homem comum, de forma inconsciente, já perde a fé no capital e é tomado pela revolta fascista e seu desejo de destruição sem fim. É preciso encontrar uma alternativa anticapitalista que não sejam o ódio e a irracionalidade suicidas do fascismo, trazendo o domínio abstrato do capital para a consciência e desafiando suas coerções e formas sociais à luz do dia. Está na hora de criticar e, depois, abolir o trabalho, a mercadoria, o dinheiro, lucro, o estado e a forma sujeito, para darem lugar a outras formas e relações sociais, sobre as quais se possa erguer uma sociedade fundada numa razão comunitária (ou comunista). Uma sociedade que satisfaça igualmente as necessidades materiais e simbólicas de todos sem solapar o suporte natural da vida.

É a hora da visão humana dar um salto evolutivo e superar seu ponto cego. A hora de ‘ver’ a face do Deus-Pai decadente e renegá-Lo.

25 julho, 2020

Por ocasião das lâminas


na carne alma

degustar cada lâmina
com calma
por dias a fio

já que nós, os per
versos hedonistas
nos alegramos de gozar
cada dor longa e profunda
mente

do meu longe... sempre
te leio
um jeito ainda
de perto
(cheio de saudades)

obrigado pelo bilhete
e pela memória
sa(n)grando o tempo
com estiletes
de letras e margens

P. S. Vejo a menina sensível, a poeta frágil-forte cortando a atmosfera irrespirável das metrópoles. A parca menina tece fios de lâminas delicadas cortando a noite pesada do asfalto, como quem brinca, como quem chora, como quem sangra… fios de sangue de lágrimas de alegria. A mulher sombria... pois ela entende de fazer brilhar (da sua voz de dentro) os claros e os escuros que a povoam / nos povoam... A poeta sombria desferindo lâminas na nação em trevas, na danação do povo, no ovo da serpente. Ela desfia, no fio das lâminas, o seu veneno de luz.

arte de helô sanvoy


21 julho, 2020

Todas as revoltas e revoluções fracassaram. Mas elas voltarão inevitavelmente

Continuação do texto Todas as revoltas e revoluções fracassaram. E ainda fortaleceram o capitalismo
Em menos de 300 anos o capitalismo criou mais progresso técnico e riqueza material do que toda a humanidade pré-capitalista, além de produzir alimentos, inventar tratamentos médicos e proporcionar confortos cotidianos em quantidade e qualidade inimagináveis antes dele. No entanto, com toda essa exuberância e dinamismo fáustico, o capitalismo é insuportável para os humanos. Por vários motivos.

Um deles, é que se trata do único sistema social inventado pelo homem em que há fome em meio à fartura alimentar. Nas sociedades pré-capitalistas só havia fome quando faltava comida, por conta de pragas ou desastres naturais. A fome em meio à abundância é a expressão de um problema mais profundo do capitalismo, que é sua tendência incontornável à concentração de renda e riqueza, agravada por relações sociais abstratas que constituem os indivíduos como produtores isolados de riqueza, aprofundando o individualismo egoísta e a avareza, e corroendo os laços comunitários a ponto das pessoas não se sentirem responsáveis pelos desgraçados de sua comunidade. Quem se importa com os noias famintos e esfarrapados nas calçadas ou que nos incomodam no sinal pedindo moedinhas?

Além da tendência à concentração de renda e riqueza, que cria tensões sociais e uma luta de classes permanentes, o capitalismo provoca um mal estar constante nas pessoas por outro motivo não tão aparente, mas muito poderoso, que é a redução da imensa complexidade e riqueza espiritual do ser humano ao que Marx chamava de sujeito automático, que é o próprio capital e suas leis mercantis, operando por trás das vontades supostamente livres dos indivíduos.

O sujeito automático/capital precisa se encarnar nas pessoas concretas como sujeito universal abstrato, formal e vazio de conteúdos, concebido como indivíduo isolado (necessário à sua condição de produtor isolado de mercadorias) que vê o mundo, a sociedade e os outros indivíduos como objetos, o que, de início, subordina sua vida concreta à uma existência subjetiva abstrata, adequada à reprodução do capital - valor que se valoriza ou dinheiro que deve gerar lucro, ou seja, uma riqueza também abstrata.

Nesta encarnação do capital nos indivíduos, a complexidade humana e sua imensa riqueza afetiva, racional, simbólica e técnica deve se reorganizar de modo a se subordinar a duas características básicas que definem o sujeito automático. A primeira é racionalidade instrumental que se utiliza da razão como meio para a reprodução do capital. A segunda é a competitividade, necessária à impiedosa guerra entre capitais particulares que acelera a acumulação e que, em nossa época neoliberal, deixou de ser apenas concorrência empresarial e se tornou também uma disputa individual de todos contra todos, na medida em que cada pessoa se torna um capital humano individual.

Esta redução da concretude humana à abstração do sujeito automático e a subordinação de sua complexidade existencial a apenas dois aspectos essenciais (racionalidade instrumental e competitividade), embora naturalizada e, por isso, quase não seja percebida, é responsável por um grande e constante mal estar da civilização moderna, talvez até maior do que o mal estar provocado pela desigualdade, mais evidente no capitalismo.

Em momentos de bonança capitalista, quando a desigualdade pode ser mitigada ou até diminuída, o desconforto da redução do ser humano ao sujeito automático é compensada pela prosperidade relativa das massas. Em momentos de crise, as desigualdades se aprofundam e, primeiramente, a luta de classes se acirra, com a insatisfação dos perdedores (pobres) da luta capitalista. Se a crise não for logo superada, o desconforto com a redução do humano ao sujeito automático logo vem à tona e o que começa como crise econômica se torna uma crise existencial do próprio capitalismo e seus sujeitos, se expandindo para as esferas da política, da moral e da intimidade.

O fascismo como revolta inconsciente contra o capitalismo

É nesse momento de crise existencial que as revoltas e revoluções acontecem inevitavelmente, como previra Marx. E é neste tipo de crise em que estamos mergulhados desde a explosão da bolha imobiliária de 2008. Os efeitos nocivos do capitalismo emergiram novamente com força, não apenas na forma de desigualdade, mas também e principalmente o problema da desumanização do humano, ou seja, a redução do indivíduo concreto ao sujeito automático abstrato do capital. Este duplo afloramento dos males capitalistas tornam irrespiráveis os ares das cidades e estão provocando insatisfações, revoltas e convulsões sociais por todo o planeta.

Talvez por faltar-lhes uma teoria do inconsciente, o que todos os utopistas, entre eles Marx e os marxistas em geral, não previram é a forma como as revoltas e revoluções podem se manifestar. Usualmente, concebemos as revoltas do povo como mobilizações coletivas marcadas pela consciência de seu adversário e nobreza em sua finalidade. As massas sabem, ou deveriam saber, que a luta é contra o capitalismo ou, pelo menos, alguns de seus efeitos maléficos, como a desigualdade, a exploração do trabalho, a discriminação das minorias, a destruição da natureza etc. E a finalidade das revoltas é sempre nobre, ou seja, alcançar um mundo em que esses malefícios são minimizados ou mesmo abolidos.

Mas as revoltas podem ser inconscientes e destrutivas, cujos resultados são ainda mais devastadores para o indivíduo e a coletividade do que os provocados pelo capital. Os revoltosos podem não saber que é contra o capitalismo e seus efeitos danosos que se eles se rebelam. E que seus objetivos reais, também inconscientes, não são um mundo melhor e mais justo, mas a destruição pura e simples do mundo. Esta revolta imprevisível, irracional e que irrompe de forma raivosa e quase que espontânea entre as massas, organizando-as como uma horda política implacável e feroz é o que conhecemos por fascismo, em suas várias vertentes e contingências históricas: italiano, nazifascismo, franquismo, bolsonarismo etc.

Como já demonstrei em outro ensaio, o fascismo se opõe ao capitalismo ponto a ponto, como se fosse seu espelho sombrio, mas sem consciência dessa oposição. Às massas capitalistas estratificadas em classes sociais de forma abstrata, pela posse ou não de capital, o fascismo forma uma maioria (comunidade, nação) concreta sob a liderança de um pai implacável (tirano) e definida por critérios não econômicos, como raça, religiosidade, nacionalidade, gênero, orientação sexual etc. À competitividade, os fascistas opõem uma solidariedade doentia, fundada na vigilância paranoica entre os seus membros e no ódio ao inimigo, que servirá de cimento à maioria concreta. E, finalmente, contra racionalidade instrumental do capitalismo, o fascismo opõe, não uma razão alternativa, mas a irracionalidade absoluta que tem como objetivo a destruição pela destruição.

A revolta do fascismo contra o capital, travada de forma inconsciente, aparece na consciência dos sujeitos como uma luta contra a corrupção (econômica, moral, política) e os grupos sociais que supostamente a promovem, e que variam conforme o contexto social: judeus, negros, comunistas, LGBTs, ativistas etc. O objetivo do movimento fascista, de destruição pela destruição, também inconsciente para o sujeito paranóico que ele engendra, é por ele percebido como purgação do mal e da corrupção, para a qual se fazem necessárias a liderança autoritária e a ação violenta do estado (opressão, prisão, tortura, morte) contra os grupos supostamente corruptores da sociedade.

Nos delírios do sujeito paranoico, após a purgação violenta do mal, emergirá um mundo adâmico, purificado de todas as corrupções, uma espécie de éden anterior ao pecado original. Mas no fundo (no inconsciente) seu desejo verdadeiro e verificável, pois é realizado na prática por cada cada avanço do movimento fascista, é a devastação apocalíptica do mundo. O nirvana buscado pelo fascista não é a harmonia primordial do éden, mas a paz dos cemitérios de um mundo distópico, devastado pela morte e a destruição.

O fascismo como revolução imprevista

O capitalismo é uma estrutura que instaura o determinismo econômico em meio à realidade essencialmente indeterminada. Uma boa ilustração disso é o fato de que as tendências espontâneas do sistema, previstas por Marx a partir da lei do valor-trabalho, estão se concretizando independente das vontades políticas democráticas ou de certos grupos dominantes. Como exemplo da realização das tendências espontâneas do capital, pode-se citar a queda da taxa de lucro, a automação crescente, a necessidade de se produzir cada vez mais mercadorias e a expansão do capital para todas as esferas da vida, entre outras.

Mas isso não quer dizer que o capitalismo seja uma totalidade inviolável, que bloqueie toda e qualquer possibilidade de crítica ou prática emancipatória. Ao se realizar como destino pré-determinado para manter a reprodução do capital, o sistema acumula crescentes contradições internas, que provocam mal estar social e psíquico: fome em meio a abundância de alimentos, desigualdades sociais abismais, sofrimento dos sujeitos perdedores na competição capitalista, mas também sofrimento psíquico de todos os sujeitos, cuja psique se reduz à racionalidade instrumental e à competitividade, para que as pessoas sirvam à reprodução do capital, tornando-se máquinas de trabalhar, negociar e consumir - homo economicus.

O capital necessita das pessoas para se reproduzir e realizar o capitalismo como estrutura determinista. Mas ao servir-se do humano, ele o sufoca enquanto tal. Na esfera subjetiva, a reprodução do capital provoca sofrimento psíquico ao reduzir a alma às abstrações do sujeito automático. Na esfera coletiva, corrói o tecido social ao promover desigualdades abissais e solapar as relações concretas da comunidade. No plano ecológico, destrói o suporte vital da humanidade ao promover a degradação do meio ambiente, decorrente da exigência da produção crescente de mercadorias.

Estas fissuras do sistema capitalista, cedo ou tarde, começam começam a abalar sua estrutura. Abalo que se explicita em momentos de crise econômica aguda, quando transborda da economia para todas as esferas sociais (política, moral, instituições) e para a subjetividade dos indivíduos. Ocorre, então uma reação aos “abusos” do capital contra a psique e a comunidade humanas. Ao individualismo dos interesses isolados se contrapõem a politização em direção ao destino coletivo; às relações abstratas e impessoais do mercado e do estado, se opõem uma comunidade e indivíduos concretos, não mais definidos pela posse de riqueza abstrata (dinheiro) nem regulados pela burocracia estatal; à competitividade, algum tipo de solidariedade; e à razão instrumental uma outra racionalidade ou a irracionalidade pura e simples.

Os momentos de crise do capitalismo e as revoltas inevitáveis das massas foram previstos por Marx e pelos vários marxismos como oportunidades de emancipação, propícias à tomada de consciência dos malefícios do capitalismo e a ação revolucionária que, para o marxismo ortodoxo, viria dos trabalhadores, que produzem de fato a riqueza (capital) mas não se apropriam dela, tornando-se os perdedores humilhados do sistema.

O que os marxismo não previu é que as revoltas e convulsões sociais contra o capitalismo, embora inevitáveis, poderiam se dar de forma inconsciente, na forma de fascismo. Que as pessoas, independente de classe social e de formação intelectual, poderiam não ver que a causa das crises e do sofrimento social e psíquico da civilização moderna é o capitalismo e sua lógica mercantil introjetada nas pessoas como sujeito automático. Essa impossibilidade da tomada de consciência de que o capital é a causa real do mal estar civilizacional na sociedade moderna e pós-moderna conduz as pessoas, no momento decisivo da crise, a um outro tipo de revolta ou revolução anticapitalista, não emancipatória, mas puramente destrutiva e autodestrutiva, o fascismo.

O fascismo como parasita do capitalismo

O fascismo se torna, então, um movimento com potencial revolucionário, que subverte o capital, suas categorias e leis, não abolindo-as para construir um outro sistema social fundado em novas formas de sociabilidade, mas se instaurando ao lado do capital como um parasita que se alimenta da potência produtiva do capitalismo, cujo fim último deixa de ser a produção de valor e mais valor e passa a ser a produção de destruição, violência e morte.

No plano subjetivo e político, a competitividade é parasitada pela solidariedade doentia que forma uma maioria cuja identidade se constitui pelo ódio ao outro e pela vigilância paranoica entre os seus. Maioria, por sua vez, que não se define primariamente de forma universalista e abstrata como elite econômica que tem a posse do capital, mas de forma hierárquica e por meio caracteres concretos extra-econômicos, para além das divisões de classes, como religião, gênero, sexualidade, raça, engajamento político etc. Por exemplo, para pertencer à maioria bolsonarista, mais importante que ser rico é ser hétero, cristão e “de direita”.

Ainda no plano subjetivo-político, a racionalidade instrumental capitalista continua operando no fascismo, mas sua finalidade apenas na aparência é a produção de valor. Na prática, a razão instrumental é parasitada pela irracionalidade absoluta e passa a ser um meio para a produção da destruição, inclusive da própria economia capitalista. Por isso os liberais, que vocalizam os interesses do capital e que inicialmente tentam instrumentalizar os fascistas para combater as esquerdas, acabam se voltando contra o fascismo, quando percebem que ele representa uma ameaça existencial ao próprio capitalismo e suas elites econômicas.

Como toda a revolta fascista, que eventualmente pode descambar para uma revolução apocalíptica, acontece de forma inconsciente para os sujeitos, tudo se passa como se o capitalismo ainda continuasse a operar, com certos capitais particulares mais selvagens ganhando proeminência. Por isso a direita liberal inicialmente vê nos fascistas um aliado tático contra as esquerdas. E estas, em geral, costumam vê-los como fantoches das elites liberais, como sua estratégia violenta para a manutenção do poder político e econômico. Os progressistas e principalmente os liberais têm dificuldade em perceber a natureza irracional e destrutiva do fascismo, o qual, à medida que se fortalece e se consolida como movimento revolucionário, se volta contra o próprio capitalismo e suas instituições, não poupando inclusive a elite liberal.

Conclusão: a revolução apocalíptica do fascismo

As revoltas anticapitalistas fracassam por não questionarem as categorias básicas do capital, como o trabalho e a mercadoria, mas elas sempre voltam em momentos de crise estrutural do sistema, quando a angústia, o medo e o ressentimento afloram e a vida se torna insuportável para as pessoas, reduzidas a sujeitos abstratos do capital. Este ‘eterno retorno’ da revolta do humano reprimido contra o deus frio e abstrato do capital nem sempre se dá pelas vias da consciência e da racionalidade, como tentativa da realização utópica de uma sociedade mais racional e solidária, emancipada da lógica da mercadoria, como desejaram os vários marxismos e a contracultura.

A revolta e as revolução podem ser reacionárias, que anseiam pelo retorno de sociabilidades arcaicas, hierárquicas e opressivas. Ou, pior ainda, pode tomar a forma de fascismo, cujos desejos e desenvolvimentos principais se dão à margem da consciência. E cujo objetivo, também inconsciente, não é a construção de uma sociedade assentada em outra racionalidade, seja ela regressiva ou emancipatória, mas a destruição pura e simples, promovida pela irrupção da fúria irracional: abolição violenta e apocalíptica da sociedade capitalista, de seus sujeitos e da natureza.

A crítica empreendida pelo fascismo contra a corrupção inerente às instituições democráticas liberais e as reivindicações de sua abolição, como o fechamento do parlamento e encerramento do judiciário, são justas e semelhantes às críticas e intenções de todos os revolucionários, sejam eles comunistas, contraculturais ou reacionários. Como são semelhantes, em todas as revoltas com potencial revolucionário, o contágio do povo pelo espírito rebelde e a vontade de mudança, liderada por grupos de vanguarda bastante ativistas e agressivos. Mas o intento da revolução fascista é a instauração de uma tirania centrada no líder, cujo objetivo é apenas a devastação do mundo, sem nenhum projeto de poder a longo prazo. O contrário, por exemplo, do caso iraniano, cuja revolução reacionária instaura uma tirania que busca construir uma nação fundada na restauração de uma sociabilidade islâmica rigidamente hierárquica e diretamente opressiva no plano dos costumes, contraposta às coerções indiretas da democracia liberal, mas sem romper com o capitalismo.

A tirania fascista, apesar de sua megalomania e delírios de eternidade, não visa construir, na prática, nenhum projeto de poder ou forma durável de sociabilidade autoritária. A tirania é apenas a forma política utilizada como instrumento para a condução da guerra infinita contra os inimigos internos e externos, reais ou imaginários. O tirano fascista (o führer, o duce, o capitão), menos que um líder político, é o general grotesco no comando das hordas de guerreiros bárbaros (sujeitos paranoicos) em que as massas se transformam. Sua política é a guerra, sua linguagem é a violência e sua ‘utopia’ é a devastação apocalíptica do mundo.

10 julho, 2020

Todas as revoltas e revoluções fracassaram. E ainda fortaleceram o capitalismo

Cedo ou tarde o capitalismo se revela como um sistema que não serve à vida humana, mas se serve dela (e a sufoca) para se reproduzir. Este fato fica explícito em momentos de crise, como a que vivemos desde 2008, quando os lucros da produção de mercadorias se tornam baixos demais e, para compensar a queda, o sistema recorre às demissões e aumento da exploração do trabalho - na forma de arrocho salarial, precarização, aumento de jornada, diminuição de direitos etc.

A já difícil vida das pessoas se torna insuportável e toda a frustração humana provocada pelo capitalismo emerge com a crise. Afinal, o sistema mercantil transforma as pessoas em mercadorias (trabalhar é vender-se no mercado) e máquinas de fazer dinheiro, reduzindo o humano à racionalidade instrumental e à competitividade, aspectos que se tornam centrais na psique do homo economicus, subordinando todas as demais características humanas, como solidariedade, afetividade e vivência coletiva.

O problema do capitalismo é que, ao se consolidar como sistema social, ele impõe ao mundo o determinismo cego do capital, progressivo e autônomo da vontade humana, formando uma totalidade direcional com lógica própria, na qual as pessoas e a natureza se tornam instrumentos (meios) para a real finalidade do sistema, que é a de multiplicar o capital.

Se a reprodução do capital exige desemprego, exploração do trabalho e precarização, que seja. Se exige exploração predatória do meio ambiente, a ponto de colocar em risco a vida humana, que seja. Se exige que as pessoas, desde tenra idade, se auto-disciplinem para o mais alto desempenho possível no trabalho e nos negócios, a ponto muitas amizades se revestirem de networking, que seja.

O capital, para crescer, necessita colonizar a sociedade, a psique, o corpo e a natureza, de forma cada vez mais impregnante e expansiva: ele tanto aprofunda o seu domínio quando alarga suas fronteiras em todas as esferas da vida. E neste processo de colonização ele altera e revoluciona tudo, valores, mentalidades, cotidiano, meios de produção, hábitos de vida, técnicas, saberes, artes etc.

Como dizia Marx, no capitalismo “tudo que é sólido desmancha no ar”. Exceto uma coisa, ou melhor, um ser: o capital. Na verdade, todas as coisas são revolucionadas para que o capital se preserve e se expanda: o poder do dinheiro, a exigência do lucro e o predomínio da lógica da mercadoria são a únicas coisas que não mudaram desde a consolidação do capitalismo ocorrida com a Revolução Industrial.

A lutas anticapitalistas que reforçam o capital

A partir daí, todas as mudanças sociais acabaram por aprofundar e expandir o poder do capital como senhor da vida humana e natural. Mesmo as lutas que inicialmente pareciam ser contra o capitalismo se revelaram, ao final, a seu favor, como por exemplo as lutas socialistas que desembocaram na social-democracia e no socialismo real. Ambos não romperam com a lógica capitalista e, no fim das contas, acabaram por aperfeiçoar tanto o indivíduo quanto a sociedade para a consolidação do domínio do capital nas esferas da psique, da política e da economia.

Tanto o estado do bem estar da social-democracia, quanto o estado socialista, com suas políticas distributivistas, saúde e educação de qualidade, gratuitas e universais, acabaram por democratizar o capital e seus valores entre as massas, aprofundando nos indivíduos e na sociedade a lógica mercantil, na forma de disciplina para o trabalho, do desejo de consumir e de formação técnica.

Mesmo os discursos coletivistas e a consciência cidadã (no caso da social-democracia) ou revolucionária (no caso do socialismo real), não romperam, inclusive nos estados socialistas, com as categorias basilares do capitalismo, como o trabalho, o valor/dinheiro, o indivíduo abstrato do direito etc. Neste aspecto, apenas a competitividade interna foi rompida nos estados socialistas, o que resultou num capitalismo de perna quebrada, moroso, ineficiente e frustrante para os indivíduos, que só pôde ser mantido por meio de governos totalitários.

Por isso, no fim das contas, a consequência da social-democracia, por exemplo, foi o fortalecimento do capitalismo, pois a boa remuneração do trabalho resultou na formação de um mercado consumidor robusto e dinâmico. E as nações socialistas, embora perdedoras no mercado mundial, possuíam, ao fim de suas tentativas fracassadas de comunismo, um estado forte, moderno e organizado, além de uma força de trabalho bem formada e barata, possibilitando uma rápida (re)implantação do sistema capitalista em sua versão completa, muito bem executada pela China e mal aproveitada pela Rússia e países do Leste Europeu, que aderiram de forma atabalhoada e dependente ao neoliberalismo da década de 1990.

Da mesma forma, as lutas identitárias dos negros, das mulheres, LGBT e de outras minorias, que pareciam, de início, anti-sistêmicas, confrontaram apenas o aspecto conservador, racista e puritano do capitalismo, que na verdade representava um empecilho à necessidade do capital superar suas etapas ultrapassadas. Por outras palavras, a luta multicultural foi, na verdade, contra aspectos obsoletos e decadentes do capitalismo, cuja queda era necessária para libertar e empoderar as minorias como novos sujeitos automáticos, novos capitais individuais que entrariam no mercado para dinamizar a reprodução do capital com abundância de mão de obra e expansão do mercado de consumo.

A igualdade do negro, por exemplo, não significou a promoção das culturas negras de feição pré-capitalista que ainda existiam nas américas, mas inseriu o negro na lógica do trabalho, mostrando que sua suposta incompetência racional e competitiva em relação ao branco era, na verdade, uma construção cultural (o que é verdade) e não uma diferença natural entre raças inferiores e superiores. No fim das contas, esta igualdade representou a colonização definitiva das várias culturas negras americanas pela lógica mercantil do capital.

Em suma, as sucessivas contestações e revoltas ocorridas no interior do capitalismo inicialmente aparentam ser anti-sistêmicas e revolucionárias, mas ao final acabam por realizar a preciosa tarefa de extinguir valores, relações sociais e partilhas de poder que se tornaram obsoletas para o capital e que necessitavam serem substituídas por outras mais modernas. Quase todas as lutas anti-sistema não se revelaram, ao final, emancipadoras, mas modernizadoras para o capitalismo e por ele foram absorvidas.

Por que todas as lutas anticapitalistas fracassaram?

Muitas lutas anticapitalistas fracassaram por conta de correlações de poder desfavoráveis, como foi o caso dos vários grupos guerrilheiros latino-americanos, em luta contra as ditaduras militares do Pós-Guerra. Mas inclusive quando vitoriosas, as lutas anti-sistêmicas fracassaram em emancipar a sociedade do capitalismo. Ou suas demandas foram distorcidas e absorvidas pelo sistema, no caso da lutas das minorias e sindical, ou, no caso dos estados socialistas, suas sociedades totalitárias colapsaram, pressionadas, ao mesmo tempo, pela insatisfação interna do povo e pelas pressões econômicas e geopolíticas externas, deixando, como espólio, um terreno fértil para um novo florescimento capitalista: uma cultura modernizada, um estado organizado e uma imensa mão de obra instruída e barata. Renascimento que foi, em geral, selvagem e superexplorador do trabalho, seja na Rússia, no Leste Europeu ou na China.

Por que as revoluções se limitaram ao interior da estrutura social delimitada pelo capital, ajudando-o a superar seus próprios estágios decadentes? Por que nenhuma delas deu o salto, de fato, para fora do capitalismo? Um dos motivos, talvez o mais importante, é que nenhuma dessas revoluções criticou e atacou efetivamente o centro do capitalismo, que é justamente o capital e suas categorias básicas: valor, trabalho, mercadoria, sujeito abstrato do direito.

As revoluções socialistas, que foram mais longe na tentativa de uma sociedade comunista, por exemplo, preservaram o valor, a mercadoria e principalmente o trabalho abstrato, embora tenham abolido a propriedade privada dos meios de produção e a consequente concorrência interna entre capitais particulares em busca de lucro. O resultado acabou sendo um semi-capitalismo de estado, um capitalismo de perna quebrada, lento e ineficiente, que ainda precisava competir no mercado mundial e na disputa geopolítica mundial com nações efetivamente capitalistas e muito mais dinâmicas na produção de mercadorias e novas armas.

No plano individual, o sujeito revolucionário dos estados socialistas também se viu fraturado entre a persistência da racionalidade e os desejos de consumo do sujeito burguês e o advento da não competitividade solidária que possibilitaria o nascimento do sujeito comunista. Esta fratura da psique, entre o capitalismo e o socialismo, resultou numa subjetividade frustrada por viver numa sociedade totalitária altamente controladora, que provia, geralmente de forma precária, as necessidades básicas do indivíduo, mas que não satisfazia seus desejos consumistas, constituídos a partir da lógica capitalista.

Mais decisivo ainda foi o socialismo manter e hipertrofiar o estado burguês e o sujeito abstrato do direito, aprofundando as relações sociais abstratas da sociedade capitalista. A solidariedade no socialismo real passava, em primeiro lugar, pela igualdade abstrata dos indivíduos efetivada pela burocracia do aparato estatal.

O socialismo como realmente existiu não conseguiu restabelecer as relações sociais concretas (diretas e humanizadas) das sociedades pré-capitalistas, mas, à diferença destas, num patamar efetivamente igualitário. Para isso, seria necessário abolir de fato o capital e suas categorias básicas. No entanto, o trabalho abstrato, o valor e a mercadoria continuaram a existir e a mediar, de forma abstrata, as relações sociais nos estados socialistas, só que regulados pela burocracia estatal em vez do mercado.

Da mesma forma, o sujeito universal do direito ainda estrutura a subjetividade dos indivíduos no socialismo real, constituindo-a de como forma abstrata, apta para a existência social mediada pelo trabalho, valor e mercadoria, categorias básicas do capital sob coordenação da burocracia estatal.

O capital ainda se encontrava no centro das sociedades socialistas realmente existentes (URSS, Leste Europeu, China, Cuba), o que pode ser verificado pela centralidade da economia na vida social, como no capitalismo ocidental. Numa sociedade realmente emancipada do capitalismo a economia se tornaria secundária. Na verdade, os meios e a organização da produção e consumo de bens e serviços necessários à vida social certamente seria muito diferente daquilo que, hoje, entendemos por economia, pois não haveria trabalho a produzir valor e mercadorias, mas apenas atividade humana coordenada de forma direta, produzindo bens e serviços úteis. Estes seria distribuídos diretamente às pessoas de acordo com suas necessidades ao invés de serem vendidos ou trocados no mercado. Ou seja, a produção e consumo dos produtos não passaria pela mediação abstrata do trabalho, da mercadoria e do valor (dinheiro) e, portanto, não serviriam à reprodução do capital e sim às necessidades concretas das pessoas.

Sísifo

Ser crítico, intelectual, estudioso é gratificante.
Há evolução,
maturidade,
legado para outras gerações.

Poetas não evoluem,
mesmo que cresçam poeticamente
não acumulam nada,
não incorporam nada em si mesmo,
nada para si,
nada para ninguém.

Todo o seu movimento furioso,
voluptuoso,
conduz ao ponto zero de onde a vida partiu.
Sua herança não é o conhecimento,
só uma sucessão de fugacidades
que talvez cintilem nos olhos
de alguém na cidade.
Fecha-se a página e ele (poeta, poema, livro)
morre para sempre,
até a próxima abertura, novo nascimento do nada.

Poetas giram em falso,
são perpétuos
começos absolutos, crianças eternas...
Poetas são humanos
no ponto mais fundo dos homens,
onde não se suporta mais
ser
a pura passagem, soldado raso
na linha de frente, tábula rasa,
superfície do existir,
onda que mal emerge e já torna
a mar.

Talvez por isto busquem o sagrado,
iludem-se revestindo seu ritmo
de religações do espírito.
No fundo
sabem que sua voz e suas canções
apenas pulsam a passagem
entre o caos e o nada,
o tempo e seu dissolvimento,
o movimento da vida
e o muro inerte da morte.

Os poetas cometem o erro fatal
para a alegria de viver:
tornam-se íntimos do desamparo
e da insignificância
que nos sustenta
cambaleantes
do abismo mais fundo do ser
inexistente
que somos.

Poema do e-book Acerto de contas

Imagem: "Sísifo" de Ticiano

08 julho, 2020

Matrix e a democracia totalitária


O que eu queria propor aqui é uma tentativa de aproximar o filme “Matrix”, sobre o qual já escrevi em outro ensaio, com o artigo “A democracia totalitária” de Robert Kurz, um dos fundadores da crítica do valor. O meu primeiro objetivo é facilitar, por meio da analogia, o entendimento do leitor acerca de alguns conceitos e pressupostos importantes da crítica do valor. O segundo objetivo é mais interpretativo, de tentar mostrar que a semelhança do filme com a teoria do valor não é fortuita, mas um sintoma da crise sistêmica por que passa o capitalismo na atualidade.

Os paralelos entre o “Matrix” e o artigo de Robert Kurz

Coincidentemente (mas seria mesmo coincidência?), tanto o filme “Matrix” quanto o artigo de Robert Kurz são de 1999, auge da era neoliberal, quando se acreditava que o capitalismo vencera definitivamente o socialismo, Marx e o marxismo; e que não restava outro caminho para a humanidade que não o da democracia liberal, combinada com a economia de mercado globalizada. A China mercantilista ainda engatinhava e a Rússia e o Leste Europeu agonizavam com os efeitos colaterais do remédio amargo das políticas neoliberais receitadas pelo FMI, que os purgaria para sempre do totalitarismo comunista, proporcionando, ao final do tratamento de choque, o paraíso consumista da democracia capitalista. A democracia ariana e as corporações dos EUA e União Europeia reinavam absolutos, ao lado do Japão, o sempre fiel parceiro oriental dos “ocidentais civilizados”.

Até mesmo os críticos do capitalismo andavam cabisbaixos e quase ninguém se arriscaria a prever que, em uma década, este mundo de contos de fadas ariano estaria de cabeça para baixo, e que ao final de 2008 mais pareceria um filme de terror apocalíptico, que perdura até os dias de hoje, quando os belos olhos claros europeus e norte-americanos começam a arreganhar os dentes e a rosnar antigos hinos fascistas. Nesta época, pouca gente escutava Robert Kurz, o criativo teórico alemão fundador da crítica do valor, que desde o início da década de 1990 vinha alertando que a vitória do capitalismo tinha sido enganosa, que sob a sua aparência de invencibilidade, dinamismo e saúde econômica uma crise gigantesca estava se gestando. Que essa crise mundial apenas atingiu primeiro a antiga URSS (que Kurz não considerava socialista) e os países do Terceiro Mundo, mas não tardaria a chegar aos países centrais. E que a sombra do fascismo não havia desaparecido, mas apenas hibernava sob a fina crosta de civilização da democracia social-democrata e, depois, neoliberal.

Kurz nunca acreditou (e neste ponto ele é bem marxista) na democracia ocidental, especialmente na social-democracia europeia e norte-americana. Este é o tema principal de seu artigo:

"É claro que para a consciência dominante, forjada no desenvolvimento fordista desde 1945, o caráter totalitário da própria sacrossanta democracia é ainda menos visível. Essa fixação na esfera política da sociedade capitalista, como fizeram Hannah Arendt e outros teóricos do totalitarismo, permite sempre uma comparação entre formas democráticas e totalitárias no interior da esfera política, em que essas diferenças não são apresentadas como os estágios transitórios de um mesmo processo histórico, mas como “modelos” antagônicos. Liberdade de expressão, liberdade de reunião e eleições livres aparecem desse ponto de vista como exatos opostos da ditadura e uma garantia para a liberdade de decisão das “pessoas” sobre seu destino."

Ou seja, a democracia liberal, a social-democracia e a ditadura do proletariado soviética não são formas políticas essencialmente diferentes, mas “estágios transitórios” no interior do capitalismo que é inerentemente totalitário. Esta é uma afirmação importante para a crítica do valor e que vai contra a ideia corrente de democracia, defendida tanto pela esquerda quanto pela direita política, mas também pela imprensa e academia.

Mas por que a democracia representativa seria uma aparência cuja essência é, na verdade, um totalitarismo? O marxismo tradicional tem uma resposta padrão para esta questão: a ideologia burguesa afirma que a democracia proporciona a liberdade para todos os indivíduos, mas ela é, na verdade, uma forma política de dominação da burguesia sobre o proletariado. Robert Kurz, embora não negue a luta de classes, rejeita esta definição do totalitarismo capitalista. Para ele, o que torna a democracia um sistema totalitário, não é o domínio da burguesia sobre o proletariado, mas o controle que o capital exerce sobre todas as pessoas, independente de classe social:

"Em última análise, na realidade, a vida social não é regulada por meio das decisões conjuntas e conscientes dos membros da sociedade democrática. Os procedimentos democráticos da liberdade de expressão, da tomada de decisão política e das eleições livres não estão a montante, mas a jusante dos efeitos da “física social” dos mercados anônimos. Todas as decisões tomadas pelas instituições democráticas não representam qualquer controle autônomo sobre a utilização plena de sentido dos recursos comuns, mas são sempre já pré-formadas por meio do automatismo do sistema econômico, que, enquanto tal, não é democraticamente negociável, porque está associado a uma “natureza” inelutável. Isto justifica a priori a mobilização mais louca e mais absurdamente violenta dos recursos materiais e humanos."

Há um “automatismo do sistema econômico” que estrutura de antemão toda e qualquer decisão supostamente livre nas democracias, ou seja, as opções que temos serão sempre pré-determinadas dentro de um escopo já dado pelas leis “naturais” dos mercados e suas categorias básicas. A escolha é livre na democracia, desde seja dentro dos limites de um mundo pré-configurado pelo trabalho abstrato, a mercadoria e o valor, categorias básicas do capitalismo.

Aqui a semelhança com o mundo simulado no filme “Matrix” é imediata. Os humanos sob o controle da realidade simulada Matrix também acreditam viver numa democracia em 1999, com liberdade de expressão, escolha e mobilidade, quando, na verdade, todo aquele universo social era um programa de computador, uma realidade virtual controlada pelas máquinas. No filme, o livre arbítrio dos seres humanos não passa de uma ilusão, uma vez que a Matriz está literalmente dentro de suas cabeças (plugada no sistema nervoso), controlando a vida e as escolhas das pessoas sem que elas percebam.

Na Matrix, as máquinas se conectam fisicamente ao cérebro dos indivíduos, constituindo, inclusive, sua subjetividade, sem que eles tenham consciência deste domínio. Da mesma forma, para Robert Kurz o sujeito moderno supostamente livre tem sua subjetividade formada pela relação social total que é o capital:

Essa absurda relação social total constitui não apenas uma estrutura objetivada e uma cega legalidade fática, mas também uma correspondente forma de subjetividade dos membros da sociedade, na qual se reproduz a relação de dependência objetiva e objetivada do Estado perante o mercado e da política perante a economia. Antes de os membros da sociedade agirem como sujeitos político-democráticos, inclusive mesmo antes de começarem a pensar, eles já são pressupostos como “força de trabalho” e sujeitos da concorrência em mercados anônimos; fora dessa determinação axiomática também seu status político e jurídico decairia na irrelevância. [grifos meus]

Se na Matrix o sujeito que realmente toma as decisões é a máquina, na democracia é o “sujeito automático” (a expressão é de Marx), ou seja, o capital, que nos controla pelas costas de nossa consciência individual. Para Robert Kurz, portanto, o que importa de fato não é a dominação da burguesia sobre o proletariado, mas a dominação abstrata do capital sobre todas as pessoas. Da mesma forma, na Matrix há certamente a dominação da elite sobre os trabalhadores: o herói do filme, Neo, é um programador que recebe de seu gerente duras cobranças em relação à sua assiduidade e produtividade, típicas da relação capital-trabalho. Mas, diante da dominação total que as máquinas exercem sobre as pessoas por meio da Matrix, a exploração de classe em seu interior se torna secundária, já que é, como tudo o mais, pré-estabelecida pela realidade virtual.

Esta questão de primazia da dominação abstrata do capital leva a uma consequência muito importante: ao contrário do marxismo tradicional, a crítica do valor não acredita que a luta de classes possa resultar emancipação do capitalismo, cujos trabalhadores seriam o sujeito histórico da libertação. O máximo que a luta de classes pode proporcionar é a democratização do capital, via distribuição de renda. Voltando ao paralelo com o filme, uma suposta revolução socialista dentro da Matrix ainda manteria todos os indivíduos dominados pelas máquinas, melhorando apenas a distribuição de renda no interior da realidade virtual. Isto ocorre porque a luta de classes, num caso como no outro não questiona a natureza real da dominação, que no filme é o controle biológico das máquinas sobre o cérebro, e no capitalismo é o controle social do capital sobre a subjetividade.

Na Matrix, a escolha da pílula vermelha leva o indivíduo a se libertar das máquinas e tomar consciência da dominação. Obviamente, não há no mundo real nada tão instantâneo e eficaz como uma pílula vermelha, já que as pessoas não estão plugadas fisicamente a uma máquina. A dominação no capitalismo é bem mais sutil e complexa e, por isso mesmo, mais eficiente e difícil de se desfazer, pois o capital é uma forma social e seu domínio se dá, ao mesmo tempo, na esfera individual, por meio da formação do psiquismo do sujeito do trabalho, e na esfera social, por meio das relações sociais, sendo que as duas esferas se reforçam mutuamente. Para Kurz, a libertação do capitalismo requer um progressivo questionamento das categorias básicas do capital, ao lado de uma paulatina reestruturação da consciência individual e coletiva em novas bases. Trata-se de um processo difícil para a subjetividade moderna, pois implica em questionar seus próprios fundamentos. Como argumentar, por exemplo, que é por meio do trabalho que somos dominados pelo capital, quando o consenso é de que que o trabalho enobrece, nos torna livres e nos permite o exercício da cidadania? Não há toda uma luta pelo direito ao trabalho? E não é pela inserção no mundo do trabalho que as mulheres (e outras minorias como negros e LGBTs) reivindicam a igualdade perante os homens brancos? Toda a nossa formação subjetiva é no sentido de nos tornarmos um bom sujeito do trabalho, praticamente sinônimo de bom cidadão - uma "pessoa de bem" ou "homem bom".

A sociedade moderna se constrói, à esquerda e à direita, por meio do trabalho e sua veneração. O sujeito moderno está tão imerso na cultura do trabalho, o qual define sua visão de mundo e seus valores, que dificilmente consegue imaginar um mundo em que não haja um mercado de trabalho em se possa vender sua mão de obra. Mas nem sempre foi assim, aliás, só no capitalismo há o que entendemos por trabalho. Na Idade Média e Antiguidade não se trabalhava, os povos tribais não trabalhavam, os caipiras, os nordestinos do sertão e os negros da favela também não, até bem pouco tempo atrás. Não havia esta relação social “trabalho”, que mediava as outras relações sociais por meio do recebimento de uma salário ou pagamento em troca da venda da atividade humana como mercadoria. Nos outros regimes, a dominação de um grupo social sobre o outro era direta e não mediada pelo trabalho: as pessoas não se transformavam na mercadoria “mão de obra” para se oferecerem no mercado. Se no filme Matrix, é a eletricidade do corpo humano que alimenta as máquinas, no capitalismo é o tempo de trabalho das pessoas que gera o valor e alimenta a acumulação do capital.

Por que “Matrix” tem semelhanças com a crítica do valor?

Não consta que as irmãs Wachowski, autoras e diretoras do filme, sejam marxistas e nem que tenham lido a crítica do valor. Suas referências parecem ser “Simulacros e simulação” de Jean Baudrillard, livro que, inclusive, aparece numa cena do filme. A obra de Baudrillard é uma boa descrição fenomenológica do mundo simbólico de capitalismo, vazio de sentido e fantasmagórico. Embora conhecedor do marxismo, Baudrillard não fundamenta sua teoria nas ideias de Marx.

O filme “Matrix” é uma boa história com efeitos especiais extraordinários. Como interpretação do mundo no entanto, o filme é pobre (Baudrillard, que inspirou as diretoras, o considerava ingênuo) e acaba por reciclar o surrado clichê da criatura que acaba por dominar seu criador, sem falar no clichê ainda mais gasto do messias. A originalidade do filme está na forma desse domínio reverso da criatura sobre o criador, que se dá através da realidade virtual. A revelação desse “segredo” da dominação, quando o protagonista ingere a pílula vermelha, segue o roteiro padrão dos filmes e romances de suspense, que seduz o espectador com a expectativa do mistério, cujo desvendamento lança o herói (e o espectador) a um nível superior de consciência e ação. Outros mistérios a serem desvendados se sucedem ao longo do filme e, depois, da trilogia.

Mas a questão é saber porque o filme se tornou, mais que popular, um clássico da ficção científica e até mesmo do cinema em geral. “Matrix” é desses raros filmes que parecem ter tocado as profundezas da alma das pessoas de seu tempo. Minha hipótese é que o impacto do filme se deve a fato de ele ser uma metáfora involuntária da dominação a priori, abstrata e totalitária que capital exerce sobre todas as pessoas na vida real. Dominação que foi teorizada por Robert Kurz na mesma época do filme, quando o capitalismo parecia no auge de sua exuberância, mas que, na verdade, já esboçava os primeiros sinais da crise que se abateria sobre o sistema uma década depois.

A dominação abstrata do capital sobre as pessoas é inconsciente para elas, mas com a crise do capitalismo se avizinhando, ela começa a incomodar e se manifestar como conteúdo reprimido que “quer” emergir na consciência. Mas que, ao se mostrar, a dominação abstrata não aparece como realmente é, mas sim por meio da linguagem refratária da metáfora cinematográfica. O processo é semelhante ao teorizado pela psicanálise freudiana, mas se dá, aqui, a nível coletivo, pois a dominação do capital é, em primeiro lugar, um fenômeno social.

Havia, portanto, nos fins da década de 1990, uma "demanda" na economia psíquica das massas por uma interpretação do mundo capitalista que se aproximasse da realidade, que á a dominação abstrata do capital sobre as pessoas. O filme “Matrix” veio atender a esta necessidade interpretativa de resgate dessa realidade que se encontrava oculta no inconsciente como conteúdo reprimido (Esse aflorar da dominação abstrata como reprimido não ocorre apenas em “Matrix”, mas também em vários outras narrativas de ficção científica populares do cinema, TV e quadrinhos da época neoliberal, como por exemplo as inúmeras histórias apocalípticas sobre zumbis e os espisódios sobre os Borgs de Star Treck).

O filme “Matrix” é a metáfora certa no momento certo. E como toda metáfora, os paralelos do universo do filme com a realidade das democracias ocidentais são muitos: a aparência de liberdade quando o que há é o controle totalitário da realidade; o domínio da subjetividade das pessoas sem que elas saibam; a constituição de um universo pré-determinado cujas leis parecem naturais; a criação humana que se torna independente e passam a dominar seu criador.

Mas como na metáfora, a realidade não se mostra plenamente e há deslocamentos de sentido: o capital é uma forma social que domina e constitui os sujeitos através da relação social trabalho, enquanto o domínio das máquinas exercido por meio do controle biológico dos corpos; a Matrix é uma máquina consciente que sabe de seu domínio e seus objetivos de sobrevivência, enquanto o capital é uma força cega que não sabe de si, nem do seu domínio sobre as pessoas, nem de seu objetivo de se expandir indefinidamente.

Essas diferença entre a realidade da dominação do capital e a ficção cinematográfica e sua metáfora, da dominação das máquinas, não é fortuita, mas tem sua razão de ser na “economia da psique” coletiva, que é a de “mostrar velando”. Mostra-se a realidade (de dominação do capital) para as pessoas, mas de forma refratária e deslocada (pois no filme se trata da dominação das máquinas), ou seja, sem dizer que é a realidade que se está mostrando . E, de fato, os espectadores em geral não vinculam o domínio que a Matrix exerce sobre as pessoas do filme com o domínio abstrato que capital exerce sobre eles, indivíduos reais.

Mas no fundo (no inconsciente) os espectadores sabem que há algo no mundo real (o capital) que os domina pelas costas, como as máquinas dominam as pessoas na ficção. Por isso o filme os atrai tanto. Ficam fascinados não porque se identificam com Neo, Morfeu ou Trinity, os heróis da narrativa, mas porque, inconscientemente, se sentem na pele das massas descartáveis adormecidas na Matrix, cuja vida, aparentemente livre, serve apenas para alimentar as máquinas. Da mesma forma, para Robert Kurz e a crítica do valor, a vida das pessoas nas democracias capitalistas serve primariamente para a reprodução do capital, uma abstração fria e cega que, como as máquinas, nada sabe do desejo e da vida concreta dos seres humanos.

As crises são a hora da verdade para o indivíduo e também para a coletividade. Ela significa um momento de fraqueza das defesas que mantêm a consciência à salvo dos conteúdos reprimidos no inconsciente, que estão sempre sob uma espécie de pressão psíquica (por isso incomodam mesmo quando não há crise). Na crise, o reprimido encontra a oportunidade de fluir pelas brechas da consciência. Mas ele não pode aparecer como realmente é, e sim na forma da metáfora que, ao mesmo tempo, revela sua verdade e a escamoteia. Isso ocorre porque a consciência não perde totalmente suas defesas, o que obriga um certo “acordo” tácito (inconsciente) entre o conteúdo reprimido e as defesas da consciência. Então a realidade da dominação do capital emerge refratária e deslocada, na forma de metáforas, símbolos e alegorias.

Quando essa emersão acontece, as pessoas se sentem, ao mesmo tempo, eufóricas e aliviadas ao verem na tela a projeção do reprimido: a realidade da dominação capitalista. E esse efeito catártico de euforia e alívio deve ocorre exatamente porque a ficção, ao mesmo tempo, mostra e oculta a realidade social. Os espectadores finalmente veem no filme a dominação totalitária do capital a que estão submetidos; mas não a veem como como realmente é, pois a metáfora do filme projeta a dominação do presente para um futuro fictício, desloca a forma de domínio que deixa de ser social e passa a ser biológica e, por fim, muda o agente do domínio, que não é mais o 'ser social' capital e sim o 'ser técnico' máquina.

No fim das contas, audiovisuais do universo pop, como “Matrix”, as narrativas sobre zumbis e os episódios sobre os Borgs, acabam se tornando um ajuste do mecanismo de defesa da psique coletiva para barrar a realidade da dominação abstrata exercida pelo capital que, embora consiga emergir na consciência, o faz de forma metafórica, refratando o real. O que, no fim das contas, impede a tomada de consciência da verdadeira natureza da dominação capitalista. Isto indica que a consciência (coletiva) ainda não está em condições de “ver” a realidade social do capitalismo como ela realmente é. Quando (e se) estiver preparada para isto, estará também preparada para se libertar da dominação do capital, ou seja, pronta para se emancipar do sistema capitalista e suas abstrações: trabalho, valor/dinheiro, mercadoria.

Mas o simples fato de que o conteúdo reprimido da dominação abstrata do capital conseguiu emergir de alguma forma é um importante sintoma de que a crise do capitalismo está chegando a nível críticos, quando o sistema entra na fase do colapso e se aproxima de sua ruptura final, como apontam insistentemente Robert Kurz e a crítica do valor.

Na Matrix, como nas democracias modernas, a dominação totalitária se torna tão sutil e onisciente que as pessoas não a percebem como dominação, salvo um constante mal estar diante da frialdade implacável de suas coerções, que se impõe à sociedade que as rodeia, mas também ao mundo interior de sua própria subjetividade. Mais que se impor pela força e pela vigilância, o totalitarismo do capital se estabelece como consciência pré-formada do sujeito cidadão que concebe como natural o mundo do trabalho, da mercadoria, da competição e do individualismo e consumo desenfreados.

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...