Os perigosos maniqueísmos da esquerda.

Este artigo é um comentário crítico acerca de um texto de Daniel Estulin que Rogério Mattos postou no Blog do Nassif em 10/05/2020.

Depois de desfilar uma série de cenas (takes) da pandemia do coronavírus, envolvendo a OMS e certas pessoas poderosas da elite internacional, Estulin começa seu texto assim:
Agora quero lhes explicar como se gera uma pandemia a nível burocrático. Vamos imaginar que existe um grupo de pessoas em nível supranacional, ou seja, acima dos presidentes e primeiros-ministros. Em suma, essa gente, o “Estado profundo”, que controla a maquinaria do poder, entendem que o mundo está a ponto de se quebrar, que a dívida planetária de 4 quatrilhões de dólares é absolutamente impagável. Então essa gente necessita de alguma forma se livrar dessa dívida. Tentaram fazer através de uma guerra termonuclear quando mataram Soleimani em 3 de janeiro de 2020, esperando que as grandes potências – como Irã, Rússia, China, EUA, Israel, Turquia, quem seja – se metam no Oriente Médio e comecem a guerra termonuclear que, dessa vez, mataria de 4 a 5 bilhões de pessoas e permitiria a essa elite se livrar dessa dívida através do que conhecemos como “força maior”. Mas se deram conta que as grandes potências do mundo não tinham apetite para uma guerra termonuclear, com todas as suas consequências.
Por outras palavras, Estulim afirma que há uma elite global do capitalismo (o estado profundo - deep state) acima ou por dentro dos estados nacionais, que controlam estes estados e, mais ainda, o mundo todo. Que esta elite age de forma coesa em nome de seus interesses e são capazes, para defendê-los, de provocar uma guerra termonuclear que mataria dois terços da humanidade ou um ataque biológico viral com efeitos igualmente desastrosos sobre a humanidade.

Mas há mesmo tal elite global de capitalistas selvagens, demoníaca, coesa e consciente de si, que controla ou quer controlar (pois o autor sugere que ela está perdendo o controle da economia) ferreamente os meios de produção e financeiros globais, além de toda a informação do mundo e, em consequência, nossas mentes?


Ora, se isso for verdade, uma elite dessas seria simplesmente o mal absoluto e, diante de tanta maldade, o melhor para nós seria identificar cada um de seus membros, mesmo que sejam milhares e eliminá-los, um a um.

Veja como tais teorias (há um bando de gente má e poderosa) e suas consequências (vamos eliminar os malvados) se parecem muito com o que os nazistas e fascistas pensavam dos judeus quando, diante dos males decorrentes das crises do capitalismo da época, personificaram estes males num povo, o judeu.

Tais teorias de uma elite global maléfica, que formaria o estado profundo, também se assemelham às ideias de globalismo abraçadas pelos teóricos de extrema-direita mais doidivanas dos governos Trump, Bolsonaro e Orban, entre outros. Só que, neste caso, a conspiração tem sinal trocado e os homens maus, embora sejam os quase os mesmos (George Soros, Bill Gates e Obama frequentam as mesmas listas negras da extrema direita e da esquerda conspiracionista), são taxados agora de comunistas disfarçados.

Todas essas ideias conspiracionistas se baseiam no fato verificável de que o mundo atual se divide, por um lado, entre uma imensa maioria de pessoas exploradas, desempregadas, subempregadas, que transitam entre a classe média baixa, a pobreza e a miséria e, por outro, uma minoria formada pelas classes médias altas, os ricos e muito ricos, que vive confortavelmente às custas do trabalho da ralé.

São os 90% contra os 10%, se incluirmos as classes médias altas na minoria poderosa. Ou os 99% contra o 1% se os privilegiados forem apenas os ricos. Mas creio que Estulin está se referindo a um corte mais milimétrico quando se refere ao estado profundo que controla ou está a ponto de controlar o mundo, algo como os 99,9% manipulados contra o suprassumo da elite, formado por 0,1% da população global, ou menos, talvez 0,01% ― ou poderíamos contá-los na casa das centenas?

Esta brutal concentração do capital nas mão de umas poucas corporações e, em consequências, de pessoas que as controlam (como CEUs, proprietários ou acionistas) é um fato. Como é fato que essas Very Important People têm capacidade de influência política maior do que qualquer um de nós, zés ninguém leitores da grande mídia e dos blogs sujos. E é fato também que tais pessoas defendem ferreamente seus interesses, muitas vezes conspirando com ou contra estados nacionais. Por exemplo, o PIB brasileiro se aliou a interesses do PIB internacional e geopolíticos dos EUA para derrubar o governo Dilma.

Mas estes fatos não provam que:

- Esta elite global é coesa e consciente de si como classe dominante, agindo coordenadamente como estado profundo (seja ele de direita ou comunista);

- Que seu plano é continuar a dominar o resto da humanidade, ou seja, permanecer como classe dominante;

- Que ela é a personificação do mal, capaz de matar dois terços da humanidade para preservar o seu poder;

- Que ela tem meios para controlar a economia real, as finanças e a informação do mundo com mão de ferro;

Ora, as afirmações acima são fruto de uma visão simplista do capitalismo, concebido de uma perspectiva personalista e moralista. Personalista pois pressupõe que o domínio do mundo é exercido por uma elite formada por pouquíssimos indivíduos. Moralista porque acredita que a injustiça do mundo decorre da ganância e da maldade dessa elite, embriagada por dinheiro e poder.

Na verdade, o domínios exercido pelo capitalismo sobre as pessoas é impessoal, abstrato e amoral. É o capital que coage a todos, sejam da elite, das classes médias ou da ralé. Se há alguns poucos bilionários no mundo, isso significa que eles são, de fato, ganhadores ou privilegiados no sistema, mas não dominantes. Ou pelo menos, sua capacidade de domínio sobre o sistema não tem nem a extensão, nem a profundidade nem a previsibilidade e precisão de resultados que os teóricos da conspiração imaginam.

Da forma como Estulin fala, parece que o resto do mundo é uma marionete nas mãos da elite que compõe o estado profundo ou, pelo menos, tal elite está muito perto de tal controle total.

A verdade, porém, é que as elites mundiais que se formam no capitalismo estão em constante perigo, não de serem reduzidas à pobreza, mas de perderem o topo. O próprio Bill Gates, demonizado à esquerda e à direita, já perdeu sua posição imperial no mercado digital para o Google e o Facebook que, por sua, vez, podem perdê-lo para concorrentes chineses, por exemplo.

As elites não são nem permanentes nem coesas. São precárias, segmentadas, em constante guerra ou alianças táticas entre si e com os estados nacionais, tentando surfar a onda capitalista do momento. Talvez a imagem do surfista seja uma boa metáfora para as corporações e suas elites dirigentes e proprietárias: uma hora podem estar bem preparadas, pegar uma boa onda e vencer a competição. Outra hora podem haver surfistas melhores ou a onda pode não ser boa e elas caem da onda - e do topo.

O mar onde as corporações-surfistas se lançam é o capitalismo, um sistema turbulento onde as corporações e as pessoas que as dirigem ou as representam se movem numa competição acirrada por lucro. Imaginar, portanto, que há uma elite mundial coesa (deep state) que controla o capitalismo ou que tenha meios para controlá-lo é o mesmo que imaginar que existe uma trupe de surfistas superpoderosos capazes de encantar o mar e os surfistas adversários, fazendo-os dobrar a seus caprichos.

Não havia, nas décadas de 1920-30, os judeu poderoso e malvado que manipulava a economia para seu ganho em desfavor do trabalhador alemão e italiano. Assim como não existe, agora, uma elite malvada e dominadora que conspira para controlar o mundo todo, seja ela o deep state capitalista, seja o globalismo comunista. Isto é fábula para tempos de crise capitalista, quando nós, humanos, precisamos personificar o mal que nos assola, projetando-o em algum grupo social supostamente demoníaco - o Demônio é, ao mesmo tempo, insondável, manipulador e muito poderoso e mau, ou melhor, é a personificação do mal.

Esse pensamento paranoico, que vê conspiradores poderosos e quase infalíveis no topo do mundo, nos guiando como marionetes é muito perigoso  e abunda na extrema direita neofascista dos gurus e apoiadores de Trump e Bolsonaro. Para eles há um conluio globalista a espalhar um tal marxismo cultural, do qual participam gente como George Soros e Bill Gates.

Mas ando vendo o mesmo tipo de raciocínio em parte da chamada esquerda mundial (inclusive em certos nichos marxistas), um pouco mais elaborado e menos doidivanas, é certo, mas ainda assim muito ingênuo e fantasioso, pois personifica e moraliza as crises do capitalismo atual, que são, no fundo, impessoais e amorais, dada a natureza do capital: uma riqueza abstrata, inconsciente de si e do mundo a sua volta, cujo domínio sobre nós é impessoal e que tem como único objetivo se valorizar mais (se reproduzir, como um vírus).

Sites como o resistir.info e seus comentaristas como Pepe Escobar, Paul Craig Roberts, Michael Hudson e outros estão se transformando em teóricos da conspiração de esquerda, moralistas que enxergam um lado bom e um lado mal (dark side) no mundo. E o lado mal, ao que parece, costuma estar no Primeiro Mundo (EUA, Europa, Japão), enquanto o lado bom emerge da Eurásia (Rússia, China, Irã, Síria). O mundo conspiratório dessa esquerda parece um negativo do globalismo que a extrema direita enxerga. Num, os EUA são o mal absoluto e, no outro, o bem, mas a visão maniqueísta é parecida.

Eu não tenho simpatia nenhuma pela geopolítica imperialista dos dos EUA e Europa, mas francamente, não consigo enxergar o lado bom da força nas ditaduras ou quase ditaduras que são a China, o Irã, a Síria e a Rússia. Para mim, todos esses países acima jogam o mesmo jogo sujo da geopolítica internacional, disputando, com seus estados, empresas e poderio militar e diplomático, a feroz concorrência global para se manterem na crista das ondas turbulentas do capital.

No fim de seu texto, Estulin finalmente identifica o estado profundo que conspira contra o resto da humanidade:
Nesse sentido, a luta mortal segue sendo entre os liberais-banqueiros-financistas (que não tenho nenhuma dúvida que está por detrás da operação coronavírus) e os grupos alternativos nacionalistas, isolacionistas, que querem criar um mundo baseado nas necessidades produtivas de cada país.
Trata-se, enfim da velha e “boa” luta entre a finança global e as economias reais nacionais, uma perspectiva que a esquerda conspiratória compartilha com a esquerda keynesiana. Ambas acreditam que a virada financista do mundo, ocorrida na década 1980, foi obra de erros políticos combinados com a ganância da banca, e não uma necessidade estrutural do capitalismo, cujo keynesianismo já não permitia o capital se reproduzir de forma satisfatória.

Este raciocínio maniqueísta também comporta, além da oposição entre finanças e economia real, o confronto entre o global e o nacional. Neste aspecto, o pensamento da esquerda conspiratória se encontra com as teorias paranoicas da extrema-direita em favor da revitalização da nação contra a hegemonia do liberalismo globalista, o qual, para alguns “pensadores” fascistas mais delirantes, como Olavo de Carvalho, nada mais é que um comunismo disfarçado.

Portanto, a esquerda conspiratória não fala sozinha quando vê uma elite do mal querendo nos controlar. Ela explicita a teoria conspiratória implícita na visão política dos keynesianos, que creem que a mudança do fordismo para o financismo e vice-versa depende de vontade e decisões políticas. Esta esquerda acaba também por ecoar, mesmo que a contragosto, várias posições localistas da extrema-direita fascista e fundamentalista que assola o mundo atual.

Se há algum eixo do mal no mundo, ele não é nenhum deep state ou marxismo cultural nos controlando. Mas ele pode brotar justamente dessa visão distorcida da extrema direita e, agora, de alguma esquerda, que julgam ver a encarnação do Mal nas outras pessoas, os demônios que supostamente estão do lado de lá do muro: os banqueiros, os comunistas, o 1%, os imigrantes os chineses, os norte-americanos etc. Ora, contra o Diabo é justificável e até desejável sentir medo e ódio, a ponto da raiva se transformar em vontade de matar. Afinal, quem mata o Mal encarnado nas pessoas é herói.

Os membros da SS e da Gestapo, assassinos de judeus, eram considerados heróis pelos nazistas, afinal estavam eliminando o Mal do mundo. E o Mal é o Mal, mesmo quando se disfarça ardilosamente de humanos indefesos, tomando a forma de velhos, mulheres e crianças. Esse é o perigo do fascismo: eles creem piamente que suas atrocidades são para o bem da humanidade.

Não nego que haja conspirações e jogadas barra-pesadas no xadrez geopolítico mundial. Mas aí ninguém é santo e muito menos existem grupos ou estados com poderes quase sobrenaturais (estado profundo capitalista, globalistas do marxismo cultural, império onipotente do EUA, PC chinês manipulador etc) controlando ou a beira de controlar a tudo e a todos.

A crise atual do capitalismo é grave e complexa demais para caber nesses maniqueísmos simplistas de Siths (liberais e banca mundial) versus Jedi (nacionalistas e produção industrial). É hora de certa esquerda parar com essas fantasias da conspiração perfeita (a extrema direita já não tem mais concerto) e começar a pensar o mundo de forma mais realista e adulta. Delírios pueris em política costumam dar no fascismo. E sabemos bem dos horrores deste caminho.

Comentários

  1. Clap, clap, clap. De pé. Um artigo luminar. Há muito não se lê tamanha clareza sobre tema tão importante. E, assim como a esquerda se perdeu nos (des)caminhos do identitarismo, ou política de reconhecimento, de uns tempos pra cá passou a reproduzir, com sinal trocado, as teses conspiracionistas. Logo a esquerda, que tem por obrigação a reflexão, a conscientização e a rejeição a mitos. O autor foi sucinto e muito feliz em sua abordagem. Marco A.

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  2. Venho acompanhando seu Blog faz pouco Wilton Cardoso, me sinto extremamente reconfortado de saber que encontro gente na esquerda que pensa como você. Acho que é uma tendência personalizar o mal, mas ela nos faz perder o foco das mudanças que temos que realizar em várias áreas do sistema (político, social, etc). Acompanho o blog Cinegnose, que como o seu, descobri por meio do JornalGGN, e percebo uma certa inclinação para esse tipo de "conspiracionismo". Adoro as matérias dele, e acompanho cada post, porém não acredito que tudo o que ocorre é assim tão friamente calculado, parece que nada sai fora dos planos já previamente traçados.
    Feliz por encontrar seu blog, espero que continue produzindo seus excelentes e sóbrios artigos. Ainda mais que moramos os dois em Goiânia!!

    Abraço!

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    1. Sim, a boa luta é a anticapitalista, mas sem ódios nem paranoias conspiracionistas.
      Seja sempre bem vindo e obrigado!

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