30 maio, 2020

Canções concebidas no inferno - e-book de poesia

 

Lançamento:


Canções concebidas no inferno
Poemas: 2014-2020


E-book de poemas disponível na Amazon para dispositivos kindle.


Preço: R$ 6,00 (gratuito para kindle unlimited)







ALGUNS POEMAS DO LIVRO:

Com a bênção de Deus

O porrete baixa nas costas das bichas e macumbeiros
Os vermelhos e os pretos apodrecem na prisão-vingança
As bocas evangélicas vomitam fascismo como se cantassem o amor
As cantilenas neoliberais enrabam o povo como se o ninassem
As cobras, águias e urubus se apoderam dos quatro poderes
As chupetas eletrônicas adoçam a alma enquanto rapam tudo
Os condomínios e apartamentos se apartam do mundo
As pessoas se apartam do mundo, umas das outras, de si mesmas
O ódio floresce nos jardins de asfalto

Um mundo em decomposição

Estou com fome,
a manga sobre a mesa está perdida.
Procuro uma faca,
procuro retirar as partes podres,
procuro alguma polpa sã,
procuro em vão.

Tudo tem seu tempo
e o tempo da manga se desaba em moscas
e podridão.

Jogue a manga perdida no chão
para que ela cumpra o seu destino de terra
e vá ao pomar
colher outra manga
ou fruta fresca qualquer
em que o tempo se aroma
em flor, a língua
se delicia, o corpo
se sacia.

Pátria armada


O Reino de Mamon

cada palmo de terra
tem cerca e senhor
não há mais sertão

um maquinal compasso
de prazos e horários
adestra a duração

balcões e vitrines
encerram o desejo
em jaulas de ouro

nem as almas tão leves
escapam ao peso
das réguas do preço

o corpo e a mente
dia a dia se negam
se entregando ao trabalho

no coração dos súditos
a aridez das horas
a solidão dos muros

Limpeza urbana

Guardas civis,
com o apoio de garis,
tomam os bagulhos do mendigo
e, de quebra,
lhe aplicam uns bons sopapos.

Bem feito!
Quem mandou
sujar a cidade com os seus trapos
e sua existência?

O episódio é desagradável
ao paladar civilizado,
porém,
necessário ao bom funcionamento
e à assepsia da cidade,
para o bem viver
das pessoas de bem.

O Prefeito,
sinceramente,
lamenta o os fatos
e lava as mãos.

A esquerda faliu: a utopia que resta é se tornar classe média

Já tenho um filho e um cachorro
Me sinto como num comercial de margarina
Sou mais feliz do que os felizes 
(Zeca Baleiro)

Num artigo contundente o historiador e cientista político Roberto Bitencourt procura chamar as esquerdas à realidade e despertar nelas seu original espírito de luta, lembrando que, no fim das contas, o jogo político é uma disputa de forças, no qual ganha o lado mais bem armado ou, no caso das esquerdas, com mais soldados. Bitencourt retoma a questão central da luta de classes e da necessidade do povo lutar contra a exploração, recorrendo, se necessário, à desobediência civil (das leis burguesas) e até à luta armada.

Lembra a bem humorada tirada de Stalin, perguntando a seus interlocutores quantas divisões o Papa possuía, ironizando sua “capacidade moral” de interferir na Segunda Guerra. Para Bitencourt, as esquerdas estariam fazendo, hoje, papel de Papa, ao protestar contra o fascismo e a direita tradicional recorrendo a argumentos éticos e morais (o bom-mocismo), em vez de unir e armar (ideologicamente e até militarmente) o exército de trabalhadores explorados pelas nossas elites aliadas do imperialismo.

O raciocínio de Bitencourt é realista e as esquerdas não vão conquistar o poder e promover a justiça social ou, quem sabe, uma revolução socialista, com bom-mocismo ético, notas de repúdio e discursos bonitos: como diz o ditado, de boas intenções o inferno está cheio. A questão que se pode colocar a Bitencourt e aos que pensam como ele é:

E se o povo explorado não quiser de jeito nenhum se unir para formar um exército popular de resistência, seja ela ideológica ou armada?

A resposta a esta objeção costuma ser:
 
Os intelectuais e ativistas da esquerda (movimentos organizados, sindicalistas, membros de partidos) deveriam, então, procurar uma maneira de despertar a consciência nos explorados de que eles são… explorados. E, como tais, deveriam se unir numa luta comum para fundar um outro tipo de sociedade, social-democrata ou socialista, em que a exploração seja minimizada ou abolida.

A teoria do abandono dos pobres pela esquerda

Não são raros os intelectuais que, como Bitencourt, criticam as esquerdas de terem perdido contato com o povo explorado, deixando um vazio ideológico e político que foi ocupado pelas ações concretas (práxis) do cristianismo evangélico, da ideologia meritocrática neoliberal e, agora, do delírio raivoso da anticorrupção e da antipolítica, perpetrado pelo neofascismo bolsonarista via redes sociais.

Segundo esta interpretação, por conta dessa omissão das esquerdas e a consequente ocupação das periferias pela direita evangélica, neoliberal e pela extrema-direita, o pobre se vê, ao mesmo tempo, como um filho temeroso de Deus e um capital humano individual, cuja fé e dedicação ao trabalho duro irá premiá-lo com uma vida confortável de classe média, de acordo com as leis divinas da teologia da prosperidade e a moral mundana da meritocracia.

Esta visão de mundo religiosa, individualista e mercantil, em que cada pessoa se vê como empreendedora de si, teria sido inculcada nas massas exploradas, impedindo-as de perceber seu destino de uma perspectiva histórica e coletiva, a qual mostraria que o fracasso individual e familiar dos pobres e miseráveis não decorre do castigo divino nem de falhas individuais na capacitação para a inserção no mercado, mas de um sistema social (o capitalismo neoliberal) que inevitavelmente tende a gerar uma imensa massa de pobres em contraposição a uma pequena elite muito rica e poderosa. O que não deixa de ser uma verdade.

A dupla questão é, primeiro, se esse hiper-individualismo que impregna as classes populares decorre da omissão das esquerdas, cujo vácuo de ação foi preenchido por grupos de grupos de direita que não perderam tempo em disseminar sua visão ideológica entre as massas pobres; e, segundo, se tal situação pode ser revertida por parte das esquerdas com uma ação efetiva de reaproximação e esclarecimento, fazendo com que os trabalhadores tomem consciência de sua situação de explorados e se tornem soldados (armados ou não) da justiça social ou até de uma revolução socialista. Eu me arrisco a responder a ambas as questões com um duplo não: nem a omissão das esquerdas, substituída pela proatividade da direita, é responsável pela visão de mundo individualista e meritocrática dos pobres, nem é possível reverter tal visão com ações práticas de aproximação e conscientização das massas.

O individualismo despolitizado dos pobres, capturado por ideologias reacionárias como o fundamentalismo evangélico ou o neofascismo e que impede uma consciência de classes e, em consequência, uma luta de classes revolucionária ou mesmo reformadora do capitalismo (social-democrata), este individualismo decorre de um processo de agenciamento dos indivíduos que está fora do controle da esfera política e, portanto, das vontades coletivas e das boas ou más intenções de certos grupos sociais, sejam da direita ou da esquerda.

A visão (e a efetiva transformação) de si mesmo como capital humano e auto-empreendedor nada mais é do que a conformação final da subjetividade capitalista, cujos desejos e necessidades se reduzem finalmente às necessidades do capital. O sujeito pós-moderno do neoliberalismo, seja ele pobre, classe média ou rico, é definido por sua capacidade de trabalhar, ganhar e principalmente consumir. Essa redução dos sujeitos à mero capital humano não é resultado da disseminação, intencional ou não, da ideologia das elites dominantes entre os pobres, mas fruto do desenvolvimento “natural” da estrutura do sujeito moderno que, desde o início do capitalismo é, em potência, capital ou, para usar um termo de Marx, sujeito automático governado, de fato, pela lógica da mercadoria.

O gozo do consumo e a utopia de ser classe média

O consumo, ato em que a mercadoria finalmente cumpre o seu destino de reprodução do capital ao se reconverter em dinheiro, constitui, ao mesmo tempo, gozo sistêmico e individual, no qual o sujeito se reconhece e é reconhecido em sua plenitude como cidadão capitalista digno de respeito.

Do ponto de vista subjetivo, o consumo individual, a vida confortável e até mesmo excessiva (consumista), passam a ser o objetivo maior dos sujeitos da sociedade mercantil, a partir do advento do neoliberalismo e sua pós-modernidade, na década de 1980. Não é à toa o recente sucesso da desmesurada teologia da prosperidade entre os pobres, que derrotou a utopia solidária e frugal da teologia da libertação.

A utopia pós-moderna, desde então, não é mais a justiça social ou o socialismo, mas a sociedade de classe média. Individualmente, o sonho é ascender à classe média via poder de consumo e, coletivamente, a utopia é se construir uma sociedade massivamente de classe média, onde quase todos podem consumir com fartura (em excesso), como os norte-americanos, europeus e japoneses.

Mas a maioria se tornar classe média não implica, no fim das contas, num ideal de distribuição da renda? Sim, mas esta distribuição de renda não se daria a partir de decisões coletivas conscientes, via ação estatal, por exemplo, de forçar um certo igualitarismo sócio-econômico, e sim por meio da ação individual obstinada e disciplinada voltada para o mercado, a começar pelos estudos básicos, passando pelo aprendizado profissional até a atuação no mercado, seja como trabalhador, gerente ou proprietário. Assim, os indivíduos mais dedicados e capazes seriam premiados, pelo mérito, com o acesso à classe média ou até mesmo à elite. O estado, nesta perspectiva, cumpriria apenas o papel (neo)liberal de deixar o mercado funcionar e as pessoas trabalharem livremente.

Não é preciso dizer que esta utopia é uma ilusão cada vez mais distante no capitalismo atual, que promove exatamente o contrário: a tendência sistêmica, inclusive nos países ricos, é o empobrecimento das classes médias e exclusão quase total dos pobres da vida social, que se tornam supérfluos à produção de capital e perdem, na prática, o direito de existir como sujeitos. (Obs.: a emergência dos neofascismos atuais são uma resposta irracional e rancorosa ao fracasso da utopia pós-moderna de promover uma sociedade majoritariamente de classe média).

A subjetividade empreendedora e a alma “classe média” como tendências espontâneas do capitalismo

Ora, a constituição do “homem classe média”, sua autodisciplina para os estudos e o mercado, sua disposição para trabalhar, poupar e consumir, sua racionalidade comedida e sacrificial, voltada para a riqueza e o conforto futuros, sua formação, enfim, voltada para a produtividade do capital, foi fruto exatamente da luta sindical e das políticas sociais democratas da esquerda ocidental do pós-guerra.

Ao invés de desenvolver uma consciência coletiva e politizada, o “homem classe média” produto da luta de classes sindicais ficou cada vez mais individualista e despolitizado, desaguando no “homem pós-moderno” neoliberal que se vê como capital humano individual e empreendedor. Mas este não seria o resultado lógico de uma solidariedade de esquerda que visava, no fim das contas, apenas a redistribuição do capital para as classes trabalhadoras, sem questionar, de fato, as relações sociais de base do capitalismo, entre elas o trabalho que transforma as pessoas em mercadorias?

A partir do momento em que os indivíduos e famílias passam a receber algum excedente que lhe permitem um consumo além do suficiente à mera sobrevivência, as pessoas passam a se comportar como capitais particulares que concorrem, investem e negociam no mercado, reproduzindo a lógica da sociedade mercantil.

O sucesso simbólico das vastas classes médias do primeiro mundo foi tanto que se espraiou como utopia a ser alcançada por todos os países do planeta. E o “homem classe média” passou a ser o modelo a ser atingido pelo pobre, despossuído de excedentes, mas que pode, por meio do sacrifício, do aprendizado e da disciplina, ascender à classe média por mérito próprio. Se não ele, pelo menos seus filhos, criados à maneira das crianças de classe média, com uma férrea dedicação aos estudos e à profissão.

A politização e consciência de classe que certos intelectuais tanto cobram que as esquerdas promovam, junto com o acesso ao consumo e as políticas de distribuição de renda, são simplesmente impossíveis de se realizar, mesmo que haja vontade política para tal. Isso porque, mantendo-se as categorias basilares do capitalismo, como o trabalho, a mercadoria, o dinheiro, o lucro, o mercado de consumo, o estado de direito e todo o arcabouço liberal da sociedade da mercadoria, a promoção do acesso ao consumo e da distribuição da renda resultará, automaticamente, na formação de uma subjetividade individualista e consumista, que se vê como capital individual.

Mesmo que a distribuição de renda promovida pelas esquerdas venha acompanhada com uma vontade educadora de conscientização das massas, a estrutura social e psíquica do capitalismo prevalecerá como constituição fundante dos sujeitos e grupos sociais e o resultado da promoção da justiça social será sempre uma sociedade e uma subjetividade regidas cada vez mais pelo individualismo, meritocracia, autoempreendedorismo e consumismo. Em suma, as lutas políticas e os esforços distributivos das esquerdas, com a intenção de reforma humanista ou superação socialista do capitalismo, ao não criticar e abolir a esfera de produção do capital (principalmente o trabalho), acabam por reforçar a lógica capitalista, tanto na esfera coletiva, quanto individual.

A alma “classe média” como realização final da subjetividade capitalista

E mesmo a atuação das esquerdas, no sentido de conscientização de classe e promoção de lutas solidárias ou socialistas, em situação de aumento da desigualdade social e exploração do trabalho, como ocorre atualmente no Brasil, se torna impossível. Afinal de contas, a partir da década de 1980 a “alma” do “homem classe média” não constitui apenas a subjetividade das classes médias reais, mas também a dos pobres e miseráveis, que se tornaram, em potência, classe média. E procuram se adequar, da melhor forma possível, para realizar esta potência e ascender, de fato, às classes médias.

Este desejo de ser efetivamente (monetariamente) classe média, ao mesmo tempo que já se é em potência (psiquicamente, espiritualmente) não se trata apenas de ideologia, de ideias que beneficiam as elites absorvidas pelas massas. Pelo contrário, o “espírito classe média” constitui uma estrutura real da psique individual, ou melhor, é o desenvolvimento final da subjetividade do homo economicus capitalista.

Na aurora da sociedade burguesa, à época da Revolução Industrial, a subjetividade plena da sociedade mercantil, que absorve num único sujeito os pólos conflitantes do trabalho e do capital (do operário e do capitalista, do trabalhador e da elite) estava dada apenas em gérmen, na forma de pequena burguesia, subclasse social acessória e minoritária até a primeira metade do século XX. Com a democratização do capital promovida pela social-democracia no pós-guerra e o consequentemente advento das classes médias, a plenitude do sujeito moderno como homo economicus, patrão e empregado de si, começa a se consolidar, para se tornar dominante, enfim, no período neoliberal, em que a “alma” classe média (capital humano empreendedor de si) estrutura, inclusive, a mentalidade dos pobres.

A classe média realiza a síntese entre os polos do capital e do trabalho. O homem classe média é, ao mesmo tempo, patrão e empregado de si mesmo, seja ele um assalariado ou um proprietário, pois sua autodisciplina e proatividade deve ser tal que ele não necessite de patrões ou feitores para realizar o seu trabalho. Daí à consolidação de uma sociedade “libertária”, pós-moderna, neoliberal, flexível e hiper-individualista, de desregulação total do trabalho é um passo, mais que lógico, necessário.

Necessário ao capital para compensar a queda de lucratividade e desvalorização do valor provocada pela crescente automação da produção, que resulta em massas cada vez maiores de pessoas supérfluas ao capital. Mas a flexibilização do trabalho (na verdade sua precarização) é necessária também à nova subjetividade pós-moderna e sua visão de si como capital individual em concorrência com os demais.

Novamente, não se trata da ideologia neoliberal introduzida nas massas, mas da estruturação psíquica dos sujeitos do capital ― que começa nas classes médias e se irradia para as massas pobres ― a exigir a liberdade/flexibilidade de sua atuação no mercado. A ponto de não mais fazer sentido existir um mercado de trabalho regulado e protegido da competição encarniçada, à parte dos outros mercados, mas apenas o mercado total, onde o trabalho entra como serviço individual (mercadoria a mais) a ser vendido.

Na utopia pós-moderna, partilhada cada vez mais por pobres, elites e classes médias, não há mais trabalhadores, mas pessoas-empresa em concorrência no mercado total capitalista. Não à toa, as reformas trabalhistas, sempre em direção à flexibilização das leis do trabalho, têm encontrado cada vez menos resistência para de serem aprovadas nas democracias ocidentais. O sujeito pós-moderno se identifica cada vez menos com um dos pólos da oposição trabalhador-proprietário e se vê, ao mesmo tempo, como patrão e operário de si-mesmo, empresa individual em concorrência com todos os outros capitais humanos.

Isto implica na impossibilidade de existir uma consciência de classe por parte dos pobres, que se veem e efetivamente funcionam como capitais individuais, só que perdedores ― como as empresas derrotadas na concorrência capitalista. Esta situação psíquica corresponde, por sua vez, à situação social do capitalismo, cujos extratos sociais não se definem mais como classes sociais de acordo com a função dos indivíduos na produção, que até meados do século XX definia claramente uma classe operária e camponesa, uma pequena burguesia e os capitalistas.

A desclassificação das classes

O capitalismo do pós-guerra promoveu um paulatino processo de “desclassificação” das classes sociais, à medida em que a indústria e o campo foram automatizados, expulsando das fábricas e campos a imensa maioria dos operários e camponeses, que passaram a integrar os pobres e as classes médias urbanas, tornando-se trabalhadores, proprietários ou autônomos do setor terciário (comércio, serviços, funcionalismo público).

A partir daí, as classes passam a ser definidas cada vez menos pela função do indivíduo no processo produtivo e mais por seu poder de consumo (renda) e, no caso das classes médias, pela posse do que Jessé Souza chama de capital cultural, ou seja, a disponibilidade de tempo e recursos para se formar instrumentalmente para o mercado e também culturalmente, com a finalidade de delimitar uma esfera elevada de prestígio, bom gosto e autoestima, em oposição aos pobres (desprestigiados, bregas e sem autoestima).

Nesse novo arranjo de classe, o correspondente aos trabalhadores seriam os pobres e miseráveis, que Jessé Souza nomeia respectivamente de classes populares e ralé. Mas eles não são mais trabalhadores assalariados majoritariamente industriais como no início do século XX. Muitos são informais, autônomos, ambulantes, pequenos proprietários e mesmo entre os assalariados há enormes disparidades de renda e direitos: um terceirizado normalmente está, do ponto de vista de direitos e renda, num patamar inferior aos contratados diretamente.

Esta heterogeneidade trabalhista dos pobres e miseráveis, muito bem observada por Maurílio Lima Botelho num artigo recente, impede a formação de uma consciência de classe e, em consequência, de uma frente ampla de luta de esquerda. Mesmo porque, esta realidade social fragmentada é alimentada (e também alimenta, num processo de causalidade mútua) a nova estruturação psíquica dos sujeitos, que se constituem (e se veem) não mais como trabalhadores e sim como capitais individuais em concorrência uns com os outros.

Em última análise, a teoria marxista das classes sociais que alimentam o discurso e a ação das esquerdas, deixam de ser funcionais para a realidade empírica do capitalismo no pós-guerra e, principalmente, na quadra neoliberal, quando o processo de “desclassificação” se completa. Psiquicamente todos os indivíduos do século XXI são, em potência ou efetivamente, de classe média, ou seja, sua identidade estabelecida é a do auto-empreendedor, ao mesmo tempo patrão e empregado de si, microempresa individual em concorrência com as demais, sejam elas outros indivíduos ou empresas de fato.

As esquerdas pouco podem fazer para mudar tal situação, a não ser que elas questionem as categorias básicas do capital na esfera de sua produção: o valor, a mercadoria e, principalmente, o trabalho. A mera solidariedade distributiva, que tenta corrigir as injustiças do capital na esfera de sua circulação, mesmo que se queira socialista e altamente politizada e politizadora, promove apenas a democratização do capital e a consolidação da subjetividade capitalista em que o sujeito se vê e efetivamente se torna um capital individual.

11 maio, 2020

Os perigosos maniqueísmos da esquerda.

Este artigo é um comentário crítico acerca de um texto de Daniel Estulin que Rogério Mattos postou no Blog do Nassif em 10/05/2020.

Depois de desfilar uma série de cenas (takes) da pandemia do coronavírus, envolvendo a OMS e certas pessoas poderosas da elite internacional, Estulin começa seu texto assim:
Agora quero lhes explicar como se gera uma pandemia a nível burocrático. Vamos imaginar que existe um grupo de pessoas em nível supranacional, ou seja, acima dos presidentes e primeiros-ministros. Em suma, essa gente, o “Estado profundo”, que controla a maquinaria do poder, entendem que o mundo está a ponto de se quebrar, que a dívida planetária de 4 quatrilhões de dólares é absolutamente impagável. Então essa gente necessita de alguma forma se livrar dessa dívida. Tentaram fazer através de uma guerra termonuclear quando mataram Soleimani em 3 de janeiro de 2020, esperando que as grandes potências – como Irã, Rússia, China, EUA, Israel, Turquia, quem seja – se metam no Oriente Médio e comecem a guerra termonuclear que, dessa vez, mataria de 4 a 5 bilhões de pessoas e permitiria a essa elite se livrar dessa dívida através do que conhecemos como “força maior”. Mas se deram conta que as grandes potências do mundo não tinham apetite para uma guerra termonuclear, com todas as suas consequências.
Por outras palavras, Estulim afirma que há uma elite global do capitalismo (o estado profundo - deep state) acima ou por dentro dos estados nacionais, que controlam estes estados e, mais ainda, o mundo todo. Que esta elite age de forma coesa em nome de seus interesses e são capazes, para defendê-los, de provocar uma guerra termonuclear que mataria dois terços da humanidade ou um ataque biológico viral com efeitos igualmente desastrosos sobre a humanidade.

Mas há mesmo tal elite global de capitalistas selvagens, demoníaca, coesa e consciente de si, que controla ou quer controlar (pois o autor sugere que ela está perdendo o controle da economia) ferreamente os meios de produção e financeiros globais, além de toda a informação do mundo e, em consequência, nossas mentes?


Ora, se isso for verdade, uma elite dessas seria simplesmente o mal absoluto e, diante de tanta maldade, o melhor para nós seria identificar cada um de seus membros, mesmo que sejam milhares e eliminá-los, um a um.

Veja como tais teorias (há um bando de gente má e poderosa) e suas consequências (vamos eliminar os malvados) se parecem muito com o que os nazistas e fascistas pensavam dos judeus quando, diante dos males decorrentes das crises do capitalismo da época, personificaram estes males num povo, o judeu.

Tais teorias de uma elite global maléfica, que formaria o estado profundo, também se assemelham às ideias de globalismo abraçadas pelos teóricos de extrema-direita mais doidivanas dos governos Trump, Bolsonaro e Orban, entre outros. Só que, neste caso, a conspiração tem sinal trocado e os homens maus, embora sejam os quase os mesmos (George Soros, Bill Gates e Obama frequentam as mesmas listas negras da extrema direita e da esquerda conspiracionista), são taxados agora de comunistas disfarçados.

Todas essas ideias conspiracionistas se baseiam no fato verificável de que o mundo atual se divide, por um lado, entre uma imensa maioria de pessoas exploradas, desempregadas, subempregadas, que transitam entre a classe média baixa, a pobreza e a miséria e, por outro, uma minoria formada pelas classes médias altas, os ricos e muito ricos, que vive confortavelmente às custas do trabalho da ralé.

São os 90% contra os 10%, se incluirmos as classes médias altas na minoria poderosa. Ou os 99% contra o 1% se os privilegiados forem apenas os ricos. Mas creio que Estulin está se referindo a um corte mais milimétrico quando se refere ao estado profundo que controla ou está a ponto de controlar o mundo, algo como os 99,9% manipulados contra o suprassumo da elite, formado por 0,1% da população global, ou menos, talvez 0,01% ― ou poderíamos contá-los na casa das centenas?

Esta brutal concentração do capital nas mão de umas poucas corporações e, em consequências, de pessoas que as controlam (como CEUs, proprietários ou acionistas) é um fato. Como é fato que essas Very Important People têm capacidade de influência política maior do que qualquer um de nós, zés ninguém leitores da grande mídia e dos blogs sujos. E é fato também que tais pessoas defendem ferreamente seus interesses, muitas vezes conspirando com ou contra estados nacionais. Por exemplo, o PIB brasileiro se aliou a interesses do PIB internacional e geopolíticos dos EUA para derrubar o governo Dilma.

Mas estes fatos não provam que:

- Esta elite global é coesa e consciente de si como classe dominante, agindo coordenadamente como estado profundo (seja ele de direita ou comunista);

- Que seu plano é continuar a dominar o resto da humanidade, ou seja, permanecer como classe dominante;

- Que ela é a personificação do mal, capaz de matar dois terços da humanidade para preservar o seu poder;

- Que ela tem meios para controlar a economia real, as finanças e a informação do mundo com mão de ferro;

Ora, as afirmações acima são fruto de uma visão simplista do capitalismo, concebido de uma perspectiva personalista e moralista. Personalista pois pressupõe que o domínio do mundo é exercido por uma elite formada por pouquíssimos indivíduos. Moralista porque acredita que a injustiça do mundo decorre da ganância e da maldade dessa elite, embriagada por dinheiro e poder.

Na verdade, o domínios exercido pelo capitalismo sobre as pessoas é impessoal, abstrato e amoral. É o capital que coage a todos, sejam da elite, das classes médias ou da ralé. Se há alguns poucos bilionários no mundo, isso significa que eles são, de fato, ganhadores ou privilegiados no sistema, mas não dominantes. Ou pelo menos, sua capacidade de domínio sobre o sistema não tem nem a extensão, nem a profundidade nem a previsibilidade e precisão de resultados que os teóricos da conspiração imaginam.

Da forma como Estulin fala, parece que o resto do mundo é uma marionete nas mãos da elite que compõe o estado profundo ou, pelo menos, tal elite está muito perto de tal controle total.

A verdade, porém, é que as elites mundiais que se formam no capitalismo estão em constante perigo, não de serem reduzidas à pobreza, mas de perderem o topo. O próprio Bill Gates, demonizado à esquerda e à direita, já perdeu sua posição imperial no mercado digital para o Google e o Facebook que, por sua, vez, podem perdê-lo para concorrentes chineses, por exemplo.

As elites não são nem permanentes nem coesas. São precárias, segmentadas, em constante guerra ou alianças táticas entre si e com os estados nacionais, tentando surfar a onda capitalista do momento. Talvez a imagem do surfista seja uma boa metáfora para as corporações e suas elites dirigentes e proprietárias: uma hora podem estar bem preparadas, pegar uma boa onda e vencer a competição. Outra hora podem haver surfistas melhores ou a onda pode não ser boa e elas caem da onda - e do topo.

O mar onde as corporações-surfistas se lançam é o capitalismo, um sistema turbulento onde as corporações e as pessoas que as dirigem ou as representam se movem numa competição acirrada por lucro. Imaginar, portanto, que há uma elite mundial coesa (deep state) que controla o capitalismo ou que tenha meios para controlá-lo é o mesmo que imaginar que existe uma trupe de surfistas superpoderosos capazes de encantar o mar e os surfistas adversários, fazendo-os dobrar a seus caprichos.

Não havia, nas décadas de 1920-30, os judeu poderoso e malvado que manipulava a economia para seu ganho em desfavor do trabalhador alemão e italiano. Assim como não existe, agora, uma elite malvada e dominadora que conspira para controlar o mundo todo, seja ela o deep state capitalista, seja o globalismo comunista. Isto é fábula para tempos de crise capitalista, quando nós, humanos, precisamos personificar o mal que nos assola, projetando-o em algum grupo social supostamente demoníaco - o Demônio é, ao mesmo tempo, insondável, manipulador e muito poderoso e mau, ou melhor, é a personificação do mal.

Esse pensamento paranoico, que vê conspiradores poderosos e quase infalíveis no topo do mundo, nos guiando como marionetes é muito perigoso  e abunda na extrema direita neofascista dos gurus e apoiadores de Trump e Bolsonaro. Para eles há um conluio globalista a espalhar um tal marxismo cultural, do qual participam gente como George Soros e Bill Gates.

Mas ando vendo o mesmo tipo de raciocínio em parte da chamada esquerda mundial (inclusive em certos nichos marxistas), um pouco mais elaborado e menos doidivanas, é certo, mas ainda assim muito ingênuo e fantasioso, pois personifica e moraliza as crises do capitalismo atual, que são, no fundo, impessoais e amorais, dada a natureza do capital: uma riqueza abstrata, inconsciente de si e do mundo a sua volta, cujo domínio sobre nós é impessoal e que tem como único objetivo se valorizar mais (se reproduzir, como um vírus).

Sites como o resistir.info e seus comentaristas como Pepe Escobar, Paul Craig Roberts, Michael Hudson e outros estão se transformando em teóricos da conspiração de esquerda, moralistas que enxergam um lado bom e um lado mal (dark side) no mundo. E o lado mal, ao que parece, costuma estar no Primeiro Mundo (EUA, Europa, Japão), enquanto o lado bom emerge da Eurásia (Rússia, China, Irã, Síria). O mundo conspiratório dessa esquerda parece um negativo do globalismo que a extrema direita enxerga. Num, os EUA são o mal absoluto e, no outro, o bem, mas a visão maniqueísta é parecida.

Eu não tenho simpatia nenhuma pela geopolítica imperialista dos dos EUA e Europa, mas francamente, não consigo enxergar o lado bom da força nas ditaduras ou quase ditaduras que são a China, o Irã, a Síria e a Rússia. Para mim, todos esses países acima jogam o mesmo jogo sujo da geopolítica internacional, disputando, com seus estados, empresas e poderio militar e diplomático, a feroz concorrência global para se manterem na crista das ondas turbulentas do capital.

No fim de seu texto, Estulin finalmente identifica o estado profundo que conspira contra o resto da humanidade:
Nesse sentido, a luta mortal segue sendo entre os liberais-banqueiros-financistas (que não tenho nenhuma dúvida que está por detrás da operação coronavírus) e os grupos alternativos nacionalistas, isolacionistas, que querem criar um mundo baseado nas necessidades produtivas de cada país.
Trata-se, enfim da velha e “boa” luta entre a finança global e as economias reais nacionais, uma perspectiva que a esquerda conspiratória compartilha com a esquerda keynesiana. Ambas acreditam que a virada financista do mundo, ocorrida na década 1980, foi obra de erros políticos combinados com a ganância da banca, e não uma necessidade estrutural do capitalismo, cujo keynesianismo já não permitia o capital se reproduzir de forma satisfatória.

Este raciocínio maniqueísta também comporta, além da oposição entre finanças e economia real, o confronto entre o global e o nacional. Neste aspecto, o pensamento da esquerda conspiratória se encontra com as teorias paranoicas da extrema-direita em favor da revitalização da nação contra a hegemonia do liberalismo globalista, o qual, para alguns “pensadores” fascistas mais delirantes, como Olavo de Carvalho, nada mais é que um comunismo disfarçado.

Portanto, a esquerda conspiratória não fala sozinha quando vê uma elite do mal querendo nos controlar. Ela explicita a teoria conspiratória implícita na visão política dos keynesianos, que creem que a mudança do fordismo para o financismo e vice-versa depende de vontade e decisões políticas. Esta esquerda acaba também por ecoar, mesmo que a contragosto, várias posições localistas da extrema-direita fascista e fundamentalista que assola o mundo atual.

Se há algum eixo do mal no mundo, ele não é nenhum deep state ou marxismo cultural nos controlando. Mas ele pode brotar justamente dessa visão distorcida da extrema direita e, agora, de alguma esquerda, que julgam ver a encarnação do Mal nas outras pessoas, os demônios que supostamente estão do lado de lá do muro: os banqueiros, os comunistas, o 1%, os imigrantes os chineses, os norte-americanos etc. Ora, contra o Diabo é justificável e até desejável sentir medo e ódio, a ponto da raiva se transformar em vontade de matar. Afinal, quem mata o Mal encarnado nas pessoas é herói.

Os membros da SS e da Gestapo, assassinos de judeus, eram considerados heróis pelos nazistas, afinal estavam eliminando o Mal do mundo. E o Mal é o Mal, mesmo quando se disfarça ardilosamente de humanos indefesos, tomando a forma de velhos, mulheres e crianças. Esse é o perigo do fascismo: eles creem piamente que suas atrocidades são para o bem da humanidade.

Não nego que haja conspirações e jogadas barra-pesadas no xadrez geopolítico mundial. Mas aí ninguém é santo e muito menos existem grupos ou estados com poderes quase sobrenaturais (estado profundo capitalista, globalistas do marxismo cultural, império onipotente do EUA, PC chinês manipulador etc) controlando ou a beira de controlar a tudo e a todos.

A crise atual do capitalismo é grave e complexa demais para caber nesses maniqueísmos simplistas de Siths (liberais e banca mundial) versus Jedi (nacionalistas e produção industrial). É hora de certa esquerda parar com essas fantasias da conspiração perfeita (a extrema direita já não tem mais concerto) e começar a pensar o mundo de forma mais realista e adulta. Delírios pueris em política costumam dar no fascismo. E sabemos bem dos horrores deste caminho.

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...