30 abril, 2020

Quarentena: reflexões sobre a pandemia e depois (e-book gratuito)

É publicado o primeiro livro brasileiro sobre a pandemia de Covid-19, também um dos primeiros em língua portuguesa. Quarentena: reflexões sobre a pandemia e depois é uma coletânea de artigos organizada pelos professores Anjuli Tostes e Hugo Melo Filho.

O livro conta textos de pensadores e personalidades como Noam Chomsky, Slavoj Žižek, o nobel de economia (2001) Joseph Stiglitz, Boaventura de Sousa Santos, Jeffrey Sachs, Michael Löwy, Ciro Gomes, Flávio Dino, Vladimir Safatle, Eduardo Moreira, Marcio Pochmann, Ladislau Dowbor, Tarso Genro, Luiz Beluzzo, Ricardo Antunes, entre outros, além de artigos dos próprios organizadores.


A maior parte dos artigos é inédita, e foi escrita exclusivamente para o livro. O impacto da crise do novo coronavírus é analisado a partir de olhares de diversos campos, como a economia, a filosofia, a sociologia, o direito, as relações internacionais e a política. O livro, de distribuição gratuita no formato ebook (pdf) pode ser baixado no site da Editora Práxis: http://editorapraxis.com.br/quarentena/

Confira abaixo a lista completa dos autores:

Ananda T. Isoni
Anjuli Tostes
Boaventura de Sousa Santos 
Ciro Gomes
Eduardo Moreira
Flávio Dino
Hugo Melo Filho
Jeffrey Sachs
Joseph Stiglitz
Ladislau Dowbler
Luiz Belluzzo
Marcio Pochmann 
Michael Löwy
Noam Chomsky
Pedro Otoni
Ricardo Antunes
Slajov Žižek
Tarso Genro 
Valdete Severo
Vladimir Safatle
Wilson Ramos Filho 
Wilton Cardoso

Alguns trechos de apresentação do livro:

“Uma fotografia desse período importante de reflexões sobre o mundo, a vida e a sociedade.” (Apresentação do livro, escrita pelos organizadores)

“O livro, organizado por Anjuli Tostes e Hugo Melo Filho, traz artigos elaborados no calor do momento em que tudo acontece, por gente experiente e preparada para analisar a conjuntura e projetar os efeitos desta crise mundial nos campos da política, da economia, da sociologia, do direito e da filosofia.” (Site da Editora Práxis)

“Pensadores brasileiros e estrangeiros com percepções sobre o momento que atravessamos e opiniões sobre o pós-pandemia.” (Site da Editora Práxis)

11 abril, 2020

As ilusões keynesianas do pós-coronavírus

As mentes progressistas e humanistas acalentam a esperança de que a tragédia do coronavírus desperte um espírito solidário nas sociedades, que poderia humanizar o capitalismo com a reinvenção de uma social-democracia keynesiana. Esta esperança é uma ilusão. O capitalismo tardio não é humanizável nem reformável.

Os blogs progressistas são admiráveis, pois lutam heroicamente contra a selvageria neoliberal de nossas elites, vocalizadas pela grande mídia que promove o neoliberalismo como se fosse o suprassumo da civilização. Eles são a voz, minoritária, da solidariedade e da justiça social na pátria da desigualdade brutal.

E quase toda a blogosfera progressista é também keynesiana e sonha com o dia em que o país finalmente tomará o rumo do desenvolvimento que significa, basicamente, duas coisas: crescimento da riqueza com distribuição de renda.

Hoje, dois sentimentos atravessam a blogosfera progressista. Primeiro, o justificável medo de que a pandemia seja trágica para os brasileiros, em números de mortes mas também pelo empobrecimento da população causado pela depressão que virá. A equipe econômica atual é a pior possível para enfrentar o desafio: por sua incompetência e rigidez ideológica neoliberal.

O segundo sentimento é a esperança de que a tragédia do coronavírus finalmente faça o país e o mundo acordarem para a necessidade da retomada de um estado democrático forte, que regule e dê direção aos mercados. É a esperança da volta da social-democracia na política e do keynesianismo na economia.

O co-determinismo e a esperança social-democrata e keynesiana

Num ótimo artigo recém publicado, o economista Fernando Nogueira da Costa expõe claramente os princípios da social-democracia keynesiana, contrária ao determinismo econômico apregoado tanto pelos (neo)liberais quanto pelos marxistas ortodoxos.

O determinismo econômico diz que a economia determina os desenvolvimentos e resultados da política e até das outras esferas da vida, desde a intimidade até a ciência e o direito.

Fernando Nogueira diz que o mundo é muito mais complexo e imprevisível e que o modelo mais adequado para abordar suas incertezas é o co-determinismo. Há causalidades e determinismos no mundo, mas eles são múltiplos e imprevisíveis. Há efeitos/resultados aos quais não se pode atribuir causas precisas, como há causas que não desaguam em resultados previstos.

Por isso, é absurdo o pensamento liberal achar que basta deixar a economia fluir que tudo o mais vai se ajeitar, como se ela fosse a causa primeira e infalível do movimento do mundo. Pensar assim é sacralizar a “mão invisível” do mercado como se fosse a “mão de Deus”. As sucessivas crises capitalistas mostram que a economia está longe de ser perfeita e autorregulável.

Também é absurdo o determinismo teleológico do marxismo tradicional, que acredita que o capitalismo, embora injusto e imperfeito, é um passo necessário para superarmos a barbárie das tribos e impérios, rumo ao paraíso socialista. Além do ranço cristão de imaginar um paraíso ao fim da história, este pensamento mal disfarça o etnocentrismo de uma suposta superioridade do brancos europeu, criador do capitalismo, sobre os outros povos da Terra.

Diante do fracasso do determinismo econômico, em suas versões (neo)liberal e marxista, Fernando Nogueira proclama a necessidade de assumirmos o co-determinismo como teoria do mundo e o pragmatismo não ideológico como forma de agir nele. E se o receituário keynesiano e social-democrata é pragmático, sejamos keynesianos e sociais-democratas, então, agindo de acordo com a situação e em busca de resultados.

E se a política não é determinada pela economia, mas elas se co-determinam, podemos formar um consenso político em favor do melhor dos mundos: crescimento da riqueza e sua justa distribuição. A tragédia do coronavírus poderia ser o detonador desse consenso mundial, como a Segunda Guerra o foi para o keynesianismo social-democrata dos 30 anos dourados do capitalismo (1945-75).

O co-determinismo não diz que a política determina a economia, pois isto seria um determinismo com sinal trocado. Mas o co-determinismo, embora admita a imprevisibilidade, não nega o poder da ação humana e pressupõe que há previsibilidades parciais.

Portanto, se a maioria da sociedade se convencer da necessidade do keynesianismo e de um estado democrático promotor do bem estar social e indutor do desenvolvimento, as possibilidades de sucesso seriam muito maiores. Seriam quase certas, pois o atual conhecimento econômico aliado à vontade política da maioria jogaria todo o peso dos estados e instituições multilaterais em favor da regulação e correção da economia.

O determinismo econômico como realidade do capitalismo

A visão determinista que marxismo tem da história é, de fato um erro, pois o capitalismo não é uma sociedade superior às anteriores, nem é um passo necessário ao socialismo. Da mesma forma, o determinismo liberal que pressupõe a perfeição dos mercados foi amplamente contrariado pelos fatos.

Mas há uma parte do pensamento marxista, recuperado e depurado por Moishe Postone e pela Crítica do Valor, que reconhece vigorar no capitalismo o determinismo econômico, confrontando a ideia keynesiana e social-democrata de que o sistema é, em princípio, co-determinista. E contestando, em consequência, que a ação política tem alguma chance de alterar os rumos do sistema.

A princípio, Postone e a Crítica do Valor concordam com Fernando Nogueira (e os keynesianos, portanto) ao apontar os equívocos do marxismo ortodoxo: a história humana não é uma evolução rumo à perfeição socialista, na qual o capitalismo seria um passo necessário. Pensam, portanto, que se há alguma “regra geral” do mundo, esta é a da co-determinação, da incerteza fenomenológica e da complexidade causal.

Mas afirmam que o capitalismo, ao se consolidar com a Revolução Industrial, acabou por criar uma sociedade determinista em meio ao real co-determinista. Afirmam ainda que se trata de um fato único na história humana, pois nenhuma outra cultura tomou tal rumo.

Postone fala que o capitalismo é uma totalidade direcional: um todo que tem rumo prévio, ou melhor, leis objetivas. E que Marx descobriu a causa (inicial e final) de seus movimentos, ou melhor o ser que determina essa totalidade. Este ser inconsciente e abstrato, que é uma forma social e também a riqueza do sistema é o capital, objeto principal do pensamento de Marx, juntamente com suas categorias básicas, que só existem no capitalismo: valor, trabalho, mercadoria, dinheiro.

O capitalismo, por esta interpretação que Postone e a Crítica do Valor fazem de Marx, é uma totalidade regida por um ser, o capital, causa inicial e final de todos os movimentos do sistema. Trata-se, portanto, de uma metafísica terrena, de uma segunda natureza de cujas leis (determinações) as pessoas não podem escapar.

Ora, se há leis objetivas, é possível fazer previsões de evolução da totalidade (de suas direções). Foi exatamente isso que Marx fez, quando afirmou que o capitalismo:

1. Se constitui por contradições internas que inevitavelmente leva a crises cíclicas, cada vez mais graves;

2. Evolui de forma a substituir trabalho humano por máquinas;

3. Que esta substituição tem como consequência a queda tendencial da taxa de lucros a nível global;

4. Para compensar a queda do lucro global, precisa aumentar indefinidamente a produção de mercadorias, tornando-se um regime de produção pela produção (que hoje ameaça o equilíbrio natural do planeta);

5. Tende a se expandir e penetrar em todas as esferas da vida (política, direito, intimidade, cotidiano, arte, religião, ciência…), que passam a ser regidas pela lógica da mercadoria;

6. Leva à globalização da economia, formando um grande mercado mundial regido pela lógica da mercadoria e pela concorrência universal;

7. Captura em sua lógica os estados e instituições públicas, que passam a funcionar primariamente para a reprodução do capital (e apenas secundariamente, portanto, para o bem estar das pessoas);

8. Tende à concentração de riqueza, gerando uma imensa pobreza relativa (perdedores) e uns poucos ricos (ganhadores).

Marx acertou em todas estas previsões: a empiria está com ele, portanto. Até previu que as leis do capital podem sofrer resistências contra-tendenciais, derivadas de decisões políticas deliberadas, mas que as coerções do capital acabariam por se impor ao sistema.

Ou seja, Marx reconhece que circunstancialmente o capitalismo pode funcionar de forma co-determinista e a ação política se torna eficaz por algum tempo e em algumas regiões do sistema. Mas estruturalmente e a longo prazo as leis do capital (o determinismo econômico) se impõem de forma incontornável, submetendo pessoas, instituições e natureza aos imperativos da lucratividade (reprodução do capital).

Assim, os 30 anos dourados da social-democracia keynesiana, saudados e desejados pelos novos keynesianos da atualidade, como Fernando Nogueira e os blogueiros progressistas, foram, na visão marxista, apenas um período contra-tendencial relativamente longo, um represamento do “curso normal” de algumas leis capitalistas (como a do aumento da pobreza relativa). Com o advento do neoliberalismo dos anos 80, o sistema retoma este “curso normal”.

Em muitos aspectos, porém, o keynesianismo aperfeiçoou e aprofundou as tendências “naturais” do capitalismo, como a expansão e consolidação do mercado global e a entrada do estado nacional como participante ativo na concorrência mundial, apoiando a expansão dos capitais nacionais, incentivando os capitais internacionais a se instalarem no país ou mesmo participando diretamente da economia em setores estratégicos.

Outra contribuição do keynesianismo para a consolidação do capitalismo foi a expansão da lógica do capital a todas as esferas da vida, com a criação de uma enorme classe média, cuja vida é inteiramente regida pela lógica do capital, da educação das crianças para o mercado, passando pelo mundo do trabalho que dá sentido à vida adulta, até a aposentadoria consumidora.

O neoliberalismo não foi um corte tão radical assim na lógica keynesiana, mas apenas interrompeu a contra-tendência distributiva (humanitária) do keynesianismo social-democrata. E foi obrigado a substituir o capital produtivo, que não gerava mais lucro suficiente, pelo capital fictício como motor do sistema.

Mas o neoliberalismo manteve os outros aspectos keynesianos que afirmam as leis do capital, como a expansão da lógica da mercadoria para todas as esferas da vida (inclusive a vida dos pobres, cujo modelo é a classe média trabalhadora-consumista) e a forte participação do estado como indutor da economia ― pelo menos nos países industriais vencedores da concorrência mundial, como EUA, Alemanha, Japão, Coreia do Sul e China.

O retorno à social-democracia keynesiana é uma ilusão

O neoliberalismo interrompeu a distribuição de renda keynesiana porque ela se tornou disfuncional para a acumulação do capital, em função da 3a revolução industrial da década de 1970, que introduziu a microeletrônica no chão da fábrica, substituindo o trabalho humano por máquinas inteligentes, processo que se aprofunda, desde então.

Em consequência, o trabalho é cada vez mais secundário na produção real de valor. Mas o valor é, de acordo com Marx, tempo de trabalho humano. Com a diminuição do trabalho na produção, o que ocorre, então, é uma desvalorização do valor a nível global.

O resultado observável desta desvalorização é que cada vez mais pessoas se tornam supérfluas para o capital (desemprego estrutural), o lucro global das empresas produtoras de mercadorias tende a cair (queda da taxa de lucro) e os estados arrecadam cada vez menos tributos para manter os gastos sociais (desmonte do estado do bem estar).

O advento atual da indústria 4.0 aprofunda a automação industrial e a estende, numa escala sem precedentes, para a distribuição e venda de bens e serviços, aprofundando a crise do valor e, consequentemente, a diminuição do emprego regular, do lucro produtivo, da arrecadação estatal e dos gastos sociais.

A alternativa keynesiana é a expansão de dívidas em tempos de crise, para sua diminuição posterior em tempos de bonança. Mas esta tem sido a receita neoliberal desde a década de 1980 e as dívidas não param de crescer, tornando o sistema capitalista ainda mais turbulento, ao assentá-lo em imensas bolhas de capitais fictícios que sempre estouram.

Mas desta vez, dizem os novos keynesianos, como Fernando Nogueira e os recém convertidos Monica de Bolle e André Lara Rezende, a expansão da dívida seria destinada principalmente ao socorro da economia real e dos pequenos empresários, aos gastos sociais do estado e à renda básica universal, beneficiando diretamente os mais vulneráveis.

A questão é que, por conta da tendência inevitável de crescimento do desemprego estrutural, os vulneráveis (improdutivos para o capital) também tendem a crescer numericamente, numa conta que não fecha: para sustentá-los a dívida pública teria que crescer indefinidamente, sem perspectiva de tempos de bonança em que ela diminuiria.

Ora, isto é o que já acontece na fase neoliberal. A nova receita keynesiana, portanto, é apenas um acréscimo humanitário (dar dinheiro aos pobres e não só ao grande capital) na fracassada solução neoliberal, assentada no crescimento das bolhas de capital fictício para manter a economia girando. Não vai funcionar.

Todo esse raciocínio é, de fato, muito determinista e baseado nas leis “quase naturais” do capital, descobertas por Marx e enfatizadas por Moishe Postone e pela Crítica do Valor. Mas é assim que as coisas são na realidade do capitalismo e, por essas leis, não há a possibilidade lógica de haver, no pós-coronavírus, uma social-democracia keynesiana de alcance global, distributivista e solidária, mesmo que haja uma grande vontade política de toda a população mundial, incluindo ralé e elites.

No capitalismo, a política quase nada pode fazer contra as leis (determinações) da economia. No máximo pode mitigar a miséria com programas sociais distributivos ou utilizar o Estado para fortalecer um país na guerra capitalista mundial (como fazem Alemanha, EUA e China), em detrimento dos países perdedores. Estes herdam o pior dos mundos, pois além de terem um percentual maior de pobres em sua população, terão menos recursos para ajudá-los, como é o caso dos países africanos e latino-americanos.

As esperanças do ressurgimento de um novo keynesianismo social-democrata são ilusões típicas de tempos de crise, quando a boa vontade de muitos emerge. Mas a boa vontade política é inútil no capitalismo, em que só a busca de lucro (mais capital) importa, e a vida das pessoas e a natureza se subordinam às coerções (determinações) da economia.

A não ser como adaptação dos países vencedores às leis do mercado mundial, o keynesianismo não tem nada de pragmático. Ao acreditar que o capitalismo atual é um sistema co-determinista, o keynesianismo faz uma leitura equivocada de sua realidade sistêmica e suas leis quase objetivas. Sua postura, teórica e prática, se revela tão ideológica (baseada na fé de um co-determinismo que não há) quanto a dos liberais e marxistas ortodoxos.

Os novos keynesianos acreditam que as ideias e receitas de Keynes, por ter funcionado parcialmente no pós-guerra, podem ser adaptadas e aplicadas à crise atual do capitalismo, inteiramente diferente daquela situação.

O que ocorre, hoje, é um colapso estrutural do capitalismo, cujas crises financeira de 2008 e sanitária de agora são apenas os gatilhos, que disparam e aceleram a descida ao abismo. A solução pragmática não é a keynesiana, de reforma do sistema, de resto irrecuperável. Esta é uma solução de fé, tão ilusória quanto a austeridade neoliberal e a revolução proletária do marxismo ortodoxo.

A solução verdadeiramente pragmática (realista) é a que quase todos consideram ilusória: a abolição do capital e a emancipação do capitalismo e sua lógica impessoal de valorização do valor. E o capitalismo permite tal solução, pois embora seja um sistema total, cuja lógica impessoal é quase tão objetiva quanto as leis da natureza, seu desenvolvimento é contraditório. E em suas contradições imanentes ele possibilita que vejamos suas falhas e possibilidades de superação.

Só a abolição do capital e suas categorias (trabalho, valor, dinheiro) pode restaurar, pragmaticamente, a realidade co-determinista do mundo, resgatando o poder de ação das pessoas sobre a realidade social e interrompendo o determinismo econômico do sistema capitalista, que nos arrasta inevitavelmente ao duplo precipício de uma crise ecológica e social sem precedentes e, talvez, sem retorno.

06 abril, 2020

Reino de Vera Cruz



Envolta num mar de favelas

a ilha minúscula de conforto

erguida sobre os corpos

de índios, mulheres, e negros.


Na fundação do castelo

os ossos da miséria.

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...