Liberais, conservadores, progressistas e ativistas

Da série "Capitalismo em agonia"

O capital em si é uma grandeza abstrata e cega, cuja finalidade última é a expansão ilimitada de si mesmo. Neste aspecto, é o valor que se valoriza, O valor, por sua vez, é uma grandeza dada pela quantidade de tempo necessária para um trabalhador produzir uma mercadoria. Por isso, o capital, em última instância, é trabalho acumulado, trabalho morto. Como o trabalho é uma relação social, em consequência, o capital também o é. Ou melhor, o capital é a forma social estruturante da sociedade moderna, que molda todas as relações sociais, as instituições e também a subjetividade dos indivíduos. Estes, quando agem no mercado, seja como proprietário ou trabalhador, devem agir encarnando o sujeito automático, que é o próprio capital subjetivado. No ensaio O capital é masculino vimos que as características intrínsecas ao sujeito automático encarnado na pessoa são a racionalidade instrumental e a competitividade, qualidades percebidas, desde antes do capitalismo, como masculinas. Daí se poder afirmar que o capital, embora seja indiferente ao gênero concreto de seus sujeitos, exige que estes sejam, enquanto sujeitos automáticos que agem no mercado, masculinos.

Esta masculinidade abstrata do capital, paradoxalmente, abriu a possibilidade do feminismo, ou seja, que a mulher pudesse pudesse reivindicar igualdade de condições e tratamento em relação ao homem. Para mostrar que a “inferioridade” feminina é uma construção cultural e não um desígnio natural ou divino, um aspecto essencial foi a “prova do mercado”, ou seja, provar que, sob as mesmas condições de competitividade, a mulher tem capacidades idênticas às do homem. Por outras palavras, ela pode ser tão racional e competitiva quanto o homem, o que significa que a racionalidade instrumental e a competitividade não são caracteres essenciais do homem, assim como a irracionalidade e solidariedade não constituem uma suposta essência da mulher. Não há como negar que, no capitalismo, a mulher passou na “prova de mercado”, se mostrando tão capaz de trabalhar e negociar quanto o homem, demonstrando que a racionalidade e a competitividade masculinas e, portanto, a superioridade do homem, não são caracteres essenciais, mas construções culturais.

Liberais

No entanto, como o capital e o sujeito automático não mudaram suas exigências de racionalidade instrumental e competitividade, homens e mulheres necessitam aderir a estas características “masculinas” enquanto sujeitos no mercado (trabalhador ou proprietário). A reivindicação de algum feminismo, de transpor a afetividade e a solidariedade (agora não mais caracteres femininos, mas humanos e humanizadores) para o mundo do trabalho e dos negócios, jamais se realizará no capitalismo, pelo menos no plano da produção de valor, pois tais disposições psíquicas desafiam frontalmente a lógica da acumulação do capital, finalidade última do capitalismo.

A corrente que se costuma designar por liberalismo ou, simplesmente, os liberais são os guardiões dessa lógica implacável de reprodução do valor. Por isso, eles afirmam insistentemente a necessidade da racionalidade instrumental (profissionalismo, autocontrole de si, controle sobre o trabalhador, autodisciplina, produtividade, eficácia etc) e da competitividade (individualismo, egoísmo, agressividade no mercado, superação da concorrência e de si mesmo, encarar o trabalho e os negócios como uma guerra etc).

O liberalismo é fundamentalmente uma liberação do capital de todas as amarras que possam acorrentá-lo.  É deixá-lo livre para fluir como seiva ou sangue, irrigando e alimentando o organismo capitalista. Por isso, os liberais são democratas e defensores do estado de direito, que garante às pessoas (físicas e jurídicas) liberdade ampla de expressão e ação, desde que não fira a liberdade dos outros, ou seja, defendem a liberdade formal das subjetividades abstratas (humanos, empresas e estados). Como tais subjetividades se estruturam primariamente como sujeito automático racional e competitivo, as liberdades subjetivas do liberalismo são sinônimas das liberdades para o trabalho, a circulação do valor e a acumulação do capital.

Por isso, o liberalismo econômico se torna, em consequência, um liberalismo político e de costumes, a favor do estado de direito e apoiador de primeira hora da luta por igualdade das minorias sociais. Pois quando o liberal defende a liberdade formal e abstrata do sujeito automático, pouco importa o sujeito concreto no qual ele irá se encarnar. Por isso, o liberal genuíno é despido de preconceitos de gênero, raça e nacionalidade. Se nas mesmas condições de competitividade, a mulher, o gay, o negro, o indiano já se mostraram capazes de incorporar satisfatoriamente o sujeito automático, provando ser tão racionais e competitivos quanto o homem branco, não há razão para tratá-los como inferiores. 

Isto não implica que os liberais sejam totalmente despidos de preconceitos, que no seu caso, recaem sobre os perdedores do sistema, ou seja, os pobres e miseráveis. O individualismo liberal diz que os que ficaram para trás na competição capitalista, ou são naturalmente irracionais, ou são preguiçosos (não competitivos), ou ambos, Em todo caso, merecem sua condição de explorados, por terem sido incapazes de incorporar satisfatoriamente a racionalidade instrumental e a competitividade do sujeito automático. São pessoas (mas também podem ser empresas e até nações inteiras) irracionais e indolentes, inviáveis na civilização moderna. A estes, os bens sucedidos devem desprezar e esquecer e, por piedade, dar-lhes alguma esmola.

Na seleção “natural” capitalista, se os ganhadores são másculos e viris, os perdedores se feminilizam e se perdem numa passividade inerme e invisível. No liberalismo o preconceito de gênero, portanto, não desaparece, mas é abstraído junto com o sujeito automático e recai sobre os perdedores do sistema, independente de gênero, raça e nacionalidade. Quem fica para trás, lutando contra a pobreza ou miséria, é, diante do mercado, subjetivamente feminino, mesmo que seja um homem branco.

Conservadores

De uma perspectiva estritamente liberal não há sentido em dizer que os perdedores se feminilizaram, uma vez que, ao abstrair tanto os caracteres masculinos (racionalidade e competitividade) quanto femininos e os distribuir independentemente da marca social do sujeito concreto, o capital abole a distinção essencialista entre masculino e feminino, homem e mulher, mas também as distinções concretas de raça, religião, nacionalidade etc., em favor da igualdade formal dos sujeitos, abstraídos de sua concretude social na forma de sujeitos automáticos.

Mas todas estas distinções e preconceitos (de gênero, raça, religião, nacionalidade) permanecem no mundo contemporâneo e são, muitas vezes reforçadas, numa movimento contrário às tendências espontâneas do capital, que é a de abstrair as subjetividades na persona una e homogênea do sujeito automático. As diferenças concretas seriam irrelevantes para o liberalismo e, portanto, para o capital, do qual o primeiro é porta-voz direto. Para  os liberais, tais diferenças formariam identidades pessoais ou coletivas secundárias, que funcionariam como uma espécie de colorido social do mundo moderno. As diferenças minoritárias, tão cultuadas pelos liberais, só são respeitadas por se tornarem, no mundo moderno, diferenças cosméticas, que interessam, no máximo à vida pessoal ou comunitária, e que não constrangem nem questionam a masculinidade abstrata do sujeito automático, racional e competitivo. No limite, tais diferenças no capitalismo se tornam o que o folclore é em relação à cultura: manifestações e imagens vazias de sentido.

No entanto, os preconceitos contra as minorias concretas persistem e contrariam as tendências espontâneas do capital, especialmente o principal deles: a discriminação de gênero, que afirma a superioridade do homem sobre a mulher. Trata-se, sem dúvida, de uma inércia história de séculos, que provém do patriarcalismo medieval, atravessa incólume a modernidade mercantilista e persiste praticamente inalterado até o século XIX, inclusive nas sociedades industriais. Apenas no século XX, a crença da supremacia masculina começa a ceder, às custas de muita luta feminista.

Olhando retrospectivamente, pode-se observar que há uma força por trás desta inércia histórica, que se costuma a chamar de conservadorismo. Ao contrário do que muitos pensam, os conservadores não exigem uma restauração do passado medieval ou que qualquer passado mais idílico (não são restauradores), mas lutam pela conservação de algumas tradições, em contraposição à fúria modernizante (desterritorializante ou descodificante, para usarmos os termos de Deleuze e Guattari) do capital.

Essa fúria modernizante se traduz na abstração de todas as concretudes sociais (o concreto é o territorializado, o codificado) em favor de sua absorção (inscrição) no corpo abstrato do capital, ou seja, a realização da famosa frase de Marx: tudo que é sólido se desmancha no ar (para ser absorvido como valor abstrato). A abstração de uma concretude social é fundamental para o capital agir como sujeito automático, que é a abstração (desencarnação) do masculino (racional e competitivo) do corpo do homem -  e a consequente abstração do feminino da mulher.

Em contrapartida, a preservação da superioridade do homem sobre a mulher como concretude fundamental (terra primeira, código base) da sociedade é a principal luta dos conservadores, das quais derivam todas as demais: pela supremacia nacional, racial, religiosa etc. Mais que um resquício medieval a ser paulatinamente superado, como fazem crer a impassibilidade liberal e a esperança progressista, o conservadorismo é uma força necessária ao capitalismo, fazendo parte de sua estrutura profunda.

Como consequência, a oposição masculino-feminino permanece no capitalismo, mesmo quando abstraída do homem e da mulher concretos, pois o conservadorismo se funda exatamente na oposição homem-mulher. Por mais que, para a lógica do capital, a qual os liberais seguem sem questionar, não faça mais diferença o gênero concreto do sujeito abstrato, esta referência persiste como realidade social. Se, de uma perspectiva estritamente liberal, os vencedores são apenas racionais e competitivos que merecem admiração e os perdedores são irracionais e indolentes a serem desprezados, a perspectiva conservadora vincula (muitas vezes, de forma inconsciente) os primeiros ao masculino e os segundo ao feminino.

Pois para o conservador apenas o homem pode ser racional, competitivo e vencedor; merecendo o louvor social por seus caracteres másculos. Que haja homens perdedores, é da natureza de toda competição, mas que possa haver mulheres entre os vencedores é inaceitável para a mentalidade conservadora. O mesmo ocorre em relação a outros grupos constituídos como minoritários, de acordo com o contexto social: não brancos, LGBTs, estrangeiros, não cristãos, nordestinos etc. Pela regra de ouro do conservadorismo, um indivíduo da minoria (cuja inferioridade se assemelha, por derivação, à da mulher) não poderia jamais ter lugar entre os homens bons.

Mas por que o capitalismo necessita do conservadorismo se este, aparentemente, lhe freia o processo de abstração do masculino por meio do mecanismo arcaico discriminação da mulher? Quantas mulheres potencialmente produtivas para o capital não têm a mesma chance que os homens por conta da persistência de um preconceito medieval, atrapalhando o processo de seleção “natural” capitalista que elege cegamente os indivíduos mais racionais e competitivos, independente se seu pertencimento a um grupo social concreto? É exatamente por frear o furor abstracionista do capital que o conservadorismo lhe é tão necessário.

As forças conservadoras, que persistem principalmente por meio da religião e da família, proporcionam às pessoas uma terra segura em face à desterritorialização descontrolada do capital, que desintegra sem cessar as identidades sociais. Ao preservar a dualidade homem-mulher, o conservadorismo oferece às pessoas uma referência identitária imemorial, anterior à modernização capitalista, com a aparência de solidez e permanência e que permite ao indivíduo se refugiar da desintegração constante da psique que a abstração do sujeito automático promove. O conservadorismo promete, e até certo ponto entrega, a integridade do ser e a restauração da humanidade, num mundo de fluidez permanente em que a única permanência é o capital, cuja essência é abstrata e quantitativa, inumana, portanto.

O conservadorismo constitui um contrapeso fundamental às tendências abstratizantes do capital. Ele tem a função de preservar o tecido social por meio da permanência da oposição concreta homem-mulher (e suas derivadas: nacional-estrangeiro, branco-não branco, cristão-não cristão, hétero-homo etc), sem a qual as pessoas perderiam as referências identitárias e hierárquicas, pois o capital não coloca nenhum sentido, que não seja o de sua reprodução infinita, no lugar das estruturas de sentido que ele desconstrói.

Esta preservação da identidade torna-se ainda mais importante nas classes populares (classe média baixa e pobres), exploradas e, portanto, feminilizadas, pela classe média alta e a elite. Como compensação à frustração por sua derrota no plano abstrato do sujeito automático, estas massas perdedoras afirmam sua virilidade recorrendo aos códigos conservadores da tradição patriarcal, que restauram a concretude do masculino e do feminino, reencarnando-os no corpo do homem e da mulher e afirmando a superioridade do primeiro. Do modelo primário da supremacia masculina derivam as outras dualidades hierárquicas, que têm como característica comum a feminilização das minorias discriminadas, cujos indivíduos são, da mesma forma que a mulher, considerados irracionais (menos humanos, mais selvagens) e não competitivos (preguiçosos, lânguidos, passivos), em oposição à racionalidade e competitividade da maioria dominante. Assim são construídas, conforme o contexto social, as supremacias do branco sobre negro, do hétero sobre o LGBT, do nacional sobre o estrangeiro, do evangélico sobre o católico, do cristão sobre pagão, do local sobre o migrante nordestino etc.

Uma questão que se coloca é o porquê de, ao recuperar a identidade binária homem-mulher de sistemas patriarcais pré-capitalistas, se torna necessário também resgatar (e até reforçar) o caráter hierárquico da dualidade, mantendo, inclusive, a supremacia do masculino nos dualismos derivados: branco-negro, homo hétero etc. Esta recuperação identitária poderia muito bem ser marcada apenas pela diferença, sem a necessidade de hierarquias, como, aliás, reivindicam os ativistas de várias minorias, que desejam manter orgulhosamente sua identidade sua minoritária (feminina, negra, LGTB, judaica, afro-religiosa etc) sem a noção de superioridade.

Ora, a resposta está na própria constituição da subjetividade capitalista, expressa pelo sujeito automático que deve ser, além de racional, competitivo. A competição, como a guerra, resulta em vencedores e perdedores e, aos primeiros é reservada a glória, a admiração, os privilégios materiais e morais e até mesmo o monopólio da verdade (que Marx chamou de ideologia). As subjetividades capitalistas são ávidas pela vitória e desejam fazer parte do grupo dos vencedores, que exploram e humilham os perdedores. Embora tenha suas peculiaridades modernas, o sujeito automático preserva as tendências psíquicas do sadismo e da ostentação vaidosa, próprias do nobre (e do coronel, no nosso caso), exploradores dos extratos inferiores.

O capitalismo é, em última instância, uma impiedosa guerra social e o sujeito automático, um guerreiro másculo. Ele deseja estar entre os vencedores. Se isto não é possível de se realizar no plano estrito da competição capitalista (no plano abstrato), na qual a maioria é perdedora, que seja pelo menos no plano das subjetividades concretas mantidas pelo conservadorismo, nas quais, para ser um vencedor/másculo basta pertencer a uma ou várias (quanto mais, melhor) maiorias constituídas de forma concreta: ser homem ou branco ou hetero ou nacional ou cristão etc. Por isso, a penetração do conservadorismo é sempre muito forte nas classes populares, pois ele oferece uma identidade concreta e vencedora (máscula) como compensação aos perdedores, feminilizados e humilhados pelas classes superiores na guerra capitalista. Os indivíduos da elite e das classes médias, como bons sujeitos automáticos que são, não se furtam de exercer seu sadismo e sua vaidade ostentatória em relação às classes inferiores, gerando, nelas, frustração, ódio e ressentimento que, muitas vezes, são descarregados na forma de preconceitos conservadores contra minorias concretas: mulheres, gays, negros etc. [progrssistas tentam reverter este ressentimento numa luta contra a elite e a injustiça social]

O conservadorismo, portanto, é um necessário contra-peso identitário ao capital, que permite a canalização do medo, da frustração e do ódio gerado pelo capitalismo, para subjetividades concretas, pertencentes a grupos sociais minoritários. Ele é forte especialmente entre os perdedores do sistema, que mantêm a chama acesa do conservadorismo, principalmente por meio da religião. Sua característica compensatória perde peso, à medida que se sobe na escala social. Ainda assim, muitos vitoriosos das classes médias e da elite são conservadores, pois a adesão e manutenção de um sujeito automático vencedor exige do indivíduo uma autodisciplina rigorosa que  deve se dobrar servilmente às exigências da racionalidade instrumental e da competitividade, submetendo a vida humana quase que integralmente aos imperativos abstratos e impessoais da valorização do valor.

Para se tornar esta máquina de multiplicar o capital, o indivíduo se vê obrigado a abrir mão de sua concretude existencial ou, pelo menos, colocá-la em segundo plano. Afetividade, arbítrio, erotismo, ócio, atividades lúdicas, sensibilidade estética e sensitiva não desaparecem, mas acabam por se subordinar ao mundo do trabalho e do dinheiro, do ganhar e gastar, se transformando em meio (mercadológico) de vida ou consumo. Esta submissão aos ditames do capital, embora seja parcialmente compensada, nas classes mais altas, pelo sabor da vitória social, não deixa de provocar um grande mal-estar, pois significa, na prática, subordinar a humanidade do humano à tirania abstrata e impessoal do valor, do trabalho e da mercadoria, categorias que, no fim das contas, são profundamente inumanas.

Por isso, o conservadorismo, embora seja mais forte nas classes populares, tem uma penetração não desprezível nas classes médias e na elite. Independente do quão injusto, irracional e preconceituoso seja o universo conservador, ele preserva o calor de uma humanidade concreta, constituída por grupos humanos cujas identidades são estabelecidas por outros caracteres que não a frialdade abstrata e impessoal do capital, como gênero, raça, cor, região de origem etc.

O conservadorismo aquece e acolhe o indivíduo num grupo, em oposição a outros grupos; e resgata, à sua maneira, um sentido de coletividade em meio à modernidade capitalista, fragmentadora e hiperindividualista - no limite, o sujeito abstrato é apenas capital humano em competição com os outros indivíduos isolados. Ele resgata a importância do sentimento e da pessoalidade, mesmo que seja na forma do ódio e do arbítrio tirânico. Por isso, as forças conservadoras são tão necessárias ao capital, pois elas contestam, de forma reacionária e inconsciente, a abstração do masculino e do feminino promovida pelo sujeito automático. Assim, elas promovem o resgate de uma certa humanidade perdida, mesmo que delirante e opressora, proporcionando um alívio e uma distração às frustrações provocadas pelo capitalismo que, de outra forma, poderiam se voltar contra o próprio sistema.   

Embora questione a abstração do masculino, tentando resgatar a masculinidade do homem e, a partir daí, as identidades e hierarquias pré-capitalistas dos grupos sociais, o conservadorismo não questiona as categorias básicas do capital, a saber, o valor, o trabalho e a mercadoria, todas abstratas. O que não deixa de ser uma contradição que acaba por gerar uma constante tensão entre conservadores e liberais, mas que nunca a chega à uma ruptura, pois o questionamento da abstração se dá a nível fenomenológico, esquecendo-se do núcleo causal, formado pelo valor e trabalho abstratos, que permanecem intocados pela crítica conservadora. A função dos conservadores é a de um necessário contra-peso sistêmico que, em situações normais, não é disfuncional, embora possa se tornar quando assume rumos fascistas. Portanto, embora seja um contra-peso contestador e às vezes inconveniente ao liberalismo, o conservadorismo jamais será uma força anticapitalista, no sentido de ter a potência ou o desejo de desencadear algum tipo de quebra ou restauração reacionária que revolucione o sistema.

Progressistas

O termo “progressista” remete à ideia de evolução, melhora contínua. Esta acepção da palavra, como marcha para frente, foi concebida no século XIX pelo positivismo. Em algum momento do século XX, as esquerdas ressignificaram o termo, dando-lhe a conotação atual de melhora contínua do capitalismo, por meio da democratização e humanização do capital, possibilitadas pela forte regulação legal da economia, da política e da vida cotidiana e de uma maciça intervenção estatal, como investidor de peso, mas também como agente redistribuidor de renda, que, no fim das contas, é o objetivo principal do progressismo.

Os progressistas não negam o capitalismo, mas creem na possibilidade de domesticá-lo democraticamente, construindo uma sociedade que tende à uma justa distribuição de renda, cada vez mais próxima do igualitarismo econômico. Ao mesmo tempo, a exploração do trabalho diminuiria à medida que os ganhos de produtividade do capitalismo são distribuídos entre os trabalhadores, via legislação, com o aumento de salário real e diminuição do tempo de trabalho diário e ao longo da vida.

O objetivo é usar as instituições liberais, como impostos, direito, monopólio estatal da violência e emissão de moeda, democracia representativa, em favor de um maior equilíbrio entre capital e trabalho, corrigindo, pela via da política democrática e da intervenção estatal, o desequilíbrio tendencial do mercado que desfavorece o trabalho. Principalmente pela instituição de impostos progressivos, o estado deve arrecadar dos ricos para prover as necessidades dos pobres, como na fábula de Robin Hood.

A sociedade ideal dos progressistas é a de um capitalismo humanizado, cuja imensa maioria da população formaria uma robusta classe média consumidora, havendo poucos ricos e pobres. E mesmo assim, estes últimos viveriam uma pobreza digna e assistida pelo estado do bem estar social. O modelo do progressismo são os países de primeiro mundo do período intitulado “30 anos dourados”: Europa, Japão e EUA, de 1945 a 1975. É a este éden social-democrata que os políticos de esquerda e os economistas neokeynesianos prometem reconduzir todas as sociedades do globo, inclusive a dos países centrais, que se distanciam cada vez mais do estado do bem estar que um dia vivenciaram.

O fulcro central do progressismo é a distribuição da renda e, se possível, da riqueza produzida pelo capitalismo. Distribuição de rendimentos, seja pela via direta dos salários e aposentadorias, seja pela via indireta do crescimento econômico e o pleno emprego, dos serviços gratuitos e redes de proteção social. Ao contrário dos positivistas, para os quais o progresso significa a constante racionalização (técnica e científica) da sociedade, a esquerda progressista concebe o progresso principalmente como uma paulatina humanização do capital, pela via de sua distribuição igualitária entre o povo. Esta injeção de solidariedade social seria tarefa do estado, cuja frialdade milenar os progressistas converteriam numa espécie de lar paternal, onde todos os cidadãos são igualmente acolhidos numa grande família nacional. Mas o estado não seria nem o pai frio e racional dos liberais, nem o pai viril e vingativo dos conservadores, e sim um pai afetuoso e solidário, na verdade, um pai castrado, mais próximo da mãe. O estado democrático do bem estar é, idealmente, o colo materno que aconchega e acolhe o cidadão como a mãe cuida do filho, independente de seu sucesso ou fracasso no mundo da competição capitalista.

Aqui chegamos a um ponto importante, que é o do resgate que o progressismo faz do feminino, em seu aspecto afetivo e solidário, como contraposição à masculinidade fria e competitiva inerente ao sujeito automático e, portanto, ao capital. Um afeto necessário ao progressista é a compaixão pelos desfavorecidos, pelos feridos que foram deixados para trás na guerra capitalista. Este afeto impulsiona as ações políticas e econômicas distributivistas (solidárias) que a esquerda progressista põe em prática para corrigir as injustiças sociais do capital.

Mas esta contraposição feminina que os progressistas fazem ao capitalismo não se dá no plano da produção do valor, ou seja, a nível do sujeito automático que atua no mercado como trabalhador ou capitalista. Este continua a se guiar pela racionalidade instrumental e a competitividade. É na esfera da circulação do capital que a política distributivista das esquerdas atuam, capturando, com os impostos estatais, parte da mais valia produzida e a redistribuindo ao povo. Aliás, a oposição entre estado e mercado, com o primeiro contrabalanceando as tendências concentradoras do segundo, embora tenham se tornado lugar comum nos dias de hoje, é uma ideia progressista. Que os liberais aceitaram, mas para combatê-la.

O estado capitalista, em sua concepção liberal original, nunca foi opositor ao mercado, mas seu apoiador e garantidor, formando com este um mesmo sistema. Mas é engano pensar que o estado concebido pelos progressistas deixa de apoiar o capitalismo: ele apenas acumula a função de correção de suas falhas distributivas e seus desequilíbrios cíclicos. A impressão de oposição se dá porque tal correção exige uma absorção de valor cuja distribuição vai na contramão da tendência imanente do capital, que é a concentração e centralização do capital. Os progressistas dizem que a “oposição” do estado ao capital é necessária e benéfica, pois corrige as injustiças sociais. Enquanto isso, os liberais acusam o estado do bem estar de ser pesado (para a produção de valor) e criar amarras que prejudicam o desenvolvimento econômico. Mas no fim das contas, o estado, sob a forma liberal ou progressista, pouco muda em sua essência como garantidor da ordem capitalista onde ela realmente importa, que é na esfera da produção de valor. Aí o capital continua abstratamente masculino, encarnado nos indivíduos como sujeito automático racional e competitivo, sejam estes trabalhadores, gerentes e capitalistas.

O progressismo atua, portanto, nos efeitos distributivos da guerra capitalista que ameaça colapsar o tecido social. O foco de atuação dos progressistas é o grupo dos perdedores feminilizados, em primeiro lugar de forma preventiva, evitando que as pessoas se tornem perdedoras por meio de investimentos maciços na proteção familiar, educação e saúde, para que as pessoas, independente do estrato social a que pertençam, possam participar da guerra do mercado em condições de igualdade. Neste aspecto, o progressismo se torna uma espécie de liberalismo aperfeiçoado, que procura realizar de fato, as idealizações liberais de condições iniciais igualdade para a entrada no mercado. Em segundo lugar, os progressistas procuram resgatar os perdedores feminilizados e humilhados pela competição capitalista, por meio de redes de proteção social, para que retornem à classe média ou vivam, pelo menos, uma pobreza relativamente digna.

A força dos conservadores entre as massas perdedoras se dá pelo apelo ao pertencimento a um ou vários grupos sociais concretos, cuja delimitação não é dada pelo capital (homem, branco, hétero, nacional, cristão etc). O mecanismo de sedução conservador é o da compensação das frustrações provocadas pelo capitalismo nos perdedores (e até nos vencedores, como se viu) com a oferta de uma identidade vencedora e máscula, reencarnando o masculino no homem concreto ou, por derivação, num indivíduo pertencente a uma maioria estabelecida por outros meios que não a competição capitalista.

A sedução progressista, por seu turno, reside na solidariedade para com os perdedores. Enquanto os conservadores oferecem a virilidade, ao propor reencarnar o masculino no indivíduo concreto, os progressistas oferecem o acolhimento maternal e, portanto, feminino, às massas perdedoras feminilizadas. Trata-se de uma tentativa de feminilizar o capitalismo a posteriori, por meio da distribuição solidária do valor, cuja produção continua, contudo, a exigir um sujeito automático másculo. A utopia progressista é que as equalização distributiva anule a feminilização humilhante dos perdedores. No limite, nem haveria perdedores ou quem se sentisse como tal), o que possibilitaria finalmente a anulação da dualidade masculino-feminino no plano abstrato do sujeito automático, mas também no plano concreto dos indivíduos.

No mundo ideal do progressismo não haveria massas perdedoras feminilizadas pelo capital e, em consequência, não haveria a necessidade de compensação das frustrações pelo conservadorismo, que seria então completamente derrotado. De fato, as forças conservadoras refluíram significativamente no Primeiro Mundo durante os 30 anos dourados do capitalismo, marcados pela administração social democrata, modelo do progressismo. Mas hoje se sabe que tais forças, ao invés serem derrotadas, entraram num estado de latência, pois foram paulatinamente ressurgindo à medida que o estado neoliberal foi se impondo e desconstruindo as redes de proteção social nos países centrais, até tomar os contornos patológicos da atualidade, quando o conservadorismo ameaça se radicalizar em neofascismos de cunho misógino, nacionalista, religioso, racial etc.

O ideal progressista que, em última instância, é um liberalismo aperfeiçoado, tem dois obstáculos para se realizar. Em primeiro lugar, mesmo que se consiga restaurar um estado do bem estar social nos moldes dos 30 anos dourados (o que parece cada vez mais impossível no capitalismo atual), o sucesso distributivista progressista nunca irá derrotar o conservadorismo por completo. Isto porque a frustração das pessoas com o capitalismo não se dá apenas pela má distribuição de renda, embora seja na massa de perdedores que as forças conservadoras ganham musculatura. Mas os próprios ganhadores se tornam frustrados, na medida em que o esvaziamento vida concreta exigida pelo sujeito automático, abstrato e impessoal, transforma o ser humanos numa subjetividade vazia, voltada prioritariamente para a reprodução do capital. A vida do indivíduo de classe média, que seria maioria esmagadora numa sociedade progressista, é uma sucessão de eventos e ações sem sentido verdadeiramente humano, marcada pelo aprendizado técnico, trabalho e consumo, inclusive em seus momentos de ócio. A frustração com a humanidade perdida, neste caso, se torna latente, encoberta pelo conforto proporcionado pelo estado do bem estar social. O ressentimento, o medo e o ódio, motores do conservadorismo, se mantêm em estado de latência por sob a camada de conforto e prosperidade, apenas esperando um momento de crise capitalista para vir à tona. Na crise, estes afetos adormecidos despertam num ressurgimento conservador ou, em caso de crises amplas agudas do capital, como espiral fascista.

Um segundo obstáculo à realização da utopia progressista é o caráter abstrato de sua feminilidade maternal e solidária. O ponto de partida progressista é o sentimento afetuoso em relação aos perdedores, ou seja, é genuinamente humano, concreto e feminino - ou culturalmente construído como feminino, para ser mais exato.  No entanto, a ação em prol dos desamparados ou para se evitar a situação do desamparo social se dá por via distributiva, no nível da circulação do capital, deixando intacto o sujeito automático masculino. Mais precisamente, o progressismo não contesta a abstração do masculino e a constituição do sujeito automático promovidas pelo capital, bem como suas categorias básicas: trabalho, mercadoria e valor. Seu resgate da solidariedade se dá, portanto, no nível do feminino abstrato, definido negativamente como não produtivo de valor.

Normalmente, tal caráter feminino é acrescido no sujeito moderno com a noção de cidadania, sintetizada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A feminilidade solidária do sujeito cidadão se sobrepõe, como uma capa civilizatória, à virilidade agressiva do sujeito automático, núcleo ativo da subjetividade capitalista. O resultado é o sujeito moderno da segunda metade século XX. Mas tanto o sujeito automático quanto o cidadão são abstrações universalistas e, como tais, exigem do indivíduo um esvaziamento de sua humanidade concreta.

Por se dar no nível abstrato do sujeito moderno, o resgate do feminino ou mesmo a ambição da abolição da dualidade masculino-feminino que o progressismo promove, acaba por não se efetivar no plano concreto, no qual as dualidades (homem-mulher, branco-não branco, nacional-estrangeiro etc) e suas tensões persistem, encobertas pelo conforto da classe média. O progressismo ambiciona a construção de uma identidade concreta na qual o feminino (e, por extensão, qualquer caráter minoritário) seja valorizado ou mesmo que não haja mais dualidade feminino-masculino, mas ele não tem condições de realizar tal intento, pois tudo o que oferece às pessoas é o sujeito-cidadão abstrato e universal, tão frio e distante da concretude identitária quanto o sujeito automático.

A realização da solidariedade progressista, a cargo do estado, acaba por exigir uma intrincada teia de leis e regulamentos, postos em práticas pela burocracia estatal, que trata as pessoas concretas de forma impessoal e abstrata, como sujeitos do direito. A solidariedade, no estado do bem estar social, se torna ação burocrática. À razão instrumental que caracteriza o sujeito automático como assujeitado ao capital, se soma a razão burocrática, tão abstrata e impessoal quanto a primeira e que se impõe ao sujeito cidadão, agora assujeitado, também, à burocracia do estado capitalista.

Ao contrário das minorias concretas da sociedade, como os negros e mulheres, por exemplo, a minoria que o progressismo visa resgatar é constituída a partir da abstração do capital: a classe média baixa, os pobres e os miseráveis são sujeitos automáticos fracassados e, por isso, humilhados e feminilizados na disputa capitalista. Não se quer dizer, aqui, que se trata de uma minoria inexistente, pois trata-se de uma massa real que, em muitos contextos, pode até atingir graus variados de coesão e consciência de classe.

Se o progressismo quisesse mesmo eliminar a massa de excluídos, teria de questionar as categorias básicas do capital (trabalho, mercadoria e valor), bem como a abstração do masculino e a consequente constituição do sujeito automático universal, racional e competitivo, a partir dos quais o desenvolvimento capitalista inevitavelmente gera uma massa frustrada de perdedores feminilizados e uma minoria numérica (mas majoritária em termos de poder) de vencedores másculos. 

O problema do progressismo é que, ao invés de questionar o processo de produção de valor que inevitavelmente produz esta massa de excluídos, ele se propõe atuar nas consequências deste mesmo processo, via distribuição de renda. Por isso, o progressismo não se configura como uma negação do sistema capitalista, e sim como um necessário contrapeso sistêmico, a exemplo do conservadorismo, embora seu foco de ação e seus objetivos práticos sejam completamente diferentes deste último.

Ao aceitar as categorias básicas do capital e a constituição do sujeito automático como abstração do masculino, o progressismo pode oferecer, como face humanizadora do capitalismo, apenas o acréscimo do sujeito cidadão compassivo e solidário. Mas, uma vez aceitas as categorias abstratas do capital, sua compaixão e solidariedade “feminina” só pode se manifestar pela via fria da burocracia estatal e como distribuição de renda, num momento posterior à produção de valor, que continua a ser o momento essencial do capital e que continua a exigir a racionalidade instrumental e a competitividade (masculinidade) do sujeito automático.

O progressismo tenta, pela via distributiva, valorizar e difundir o feminino solidário e compassivo entre as massas de excluídos, mas também entre a classe média “bem de vida”. Na verdade, desde as primeiras lutas de classe no século XIX, os progressismos de variados matizes tentam construir uma identidade minoritária concreta, que seja universal e una os trabalhadores em geral, ressignificando como positivos os caracteres femininos que lhes são atribuídos como humilhação e subserviência na disputa capitalista. Mas o caráter universalizante, impessoal e abstrato do trabalhador como sujeito-cidadão pode ser tudo, menos uma identidade concreta, exatamente porque as identidades coletivas são, por definição, constituídas concretamente num determinado contexto histórico, ou seja, não podem ser universais, impessoais e abstratas.

O que o progressismo estatizante e distributivista tem a oferecer às pessoas é apenas o “feminino” frio, burocrático e controlador de um estado de direito aperfeiçoado para mitigar os excessos concentradores do capitalismo. Os liberais e conservadores argumentam, com razão, que o estado do bem estar social não é apenas caro, mas flerta com o totalitarismo, pois no afã de cuidar maternalmente do cidadão, tende a regular sua vida nos mínimos detalhes. Este fracasso do progressismo em criar uma identidade concreta do indivíduo por meio da legislação, acrescendo ao sujeito automático (racional e competitivo) o sujeito-cidadão compassivo e solidário, deixa o espaço social livre para a atuação do conservadorismo e do ativismo, forças que atuam a partir de identidades sociais realmente concretas, constituídas num dado contexto histórico. 

Ativistas

O sujeito automático (e seu atenuador, o sujeito cidadão) é uma abstração internalizada pelos indivíduos concretos no capitalismo. À partir desta abstração são moldados os valores, a visão de mundo, a sensibilidade e a afetividade das pessoas. O sujeito automático, portanto, age nos vários contextos históricos, sendo, portanto, um elemento importante na constituição da identidade concreta das pessoas e grupos sociais, minoritários ou não. Mas, como se viu acima, o sujeito automático sozinho é incapaz de perfazer uma identidade concreta, exatamente pelo seu caráter abstrato, impessoal e universal. Tampouco o sujeito cidadão suprirá esta carência identitária do sujeito automático, pois, como este último, é uma forma abstrata e vazia de sentido.

O capitalismo e seu sujeito automático deixam, portanto, um vácuo identitário nas pessoas e também nas coletividades. O que não causa surpresa pois sua finalidade última não é o bem estar individual nem coletivo, mas sim a reprodução do capital, para a qual as pessoas e as coletividades, assim como as máquinas e a natureza, são meros instrumentos. Este vácuo identitário causa um profundo mal-estar psíquico, tanto a nível individual quanto coletivo, uma vez que os seres humanos são essencialmente seres sociais e, como tais, necessitam de laços comunitários concretos, que demandam construções identitárias também concretas, ou seja, constituídas num dado contexto histórico, nas quais não apenas a racionalidade instrumental e a competitividade tenham lugar preponderante, mas que abarque todas as esferas e vivências do humano, como a afetividade e o espírito cooperativo, por exemplo.

Neste vácuo identitário atua o conservadorismo, resgatando as identidades do passado, notadamente o patriarcal, que afirma a dualidade homem-mulher. Mas é também neste vácuo que atuam os vários ativismos identitários, cuja luta parte das minorias constituídas concretamente, como negros, índios, mulheres, LGBTs, praticantes de umbanda, candomblé etc. Os progressistas atuam em defesa de uma minoria real, mas constituída a partir da abstração sujeito automático: os perdedores do capitalismo, ou seja, os pobres. Os conservadores, ao mesmo tempo que se constituem a partir das identidades tradicionais que teimam em se conservar no capitalismo, lutam contra as abstrações do sujeito automático para preservar e fortalecer tais identidades, especialmente seu caráter hierárquico, cujo modelo basilar é superioridade natural do homem sobre a mulher.

Os ativistas, assim como os conservadores se constituem a partir das identidade tradicionais e procuram preservá-las, mas, ao contrário dos segundos, lutam contra as hierarquias identitárias, negando a suposta superioridade natural da maioria. Como o modelo hierárquico dos conservadores é o patriarcado, a primeira hierarquia a ser contestada pelos ativistas é a superioridade do homem sobre a mulher. Todas as lutas minoritárias passam, necessariamente, pelo feminismo, ou como diriam Deleuze e Guattari, todos os devires libertadores devem, primariamente, devir mulher.

Como disputam o mesmo terreno identitário, conservadores e ativistas são antagonistas ferrenhos. Enquanto os ativistas lutam para libertar as minorias do jugo das maiorias, os conservadores tentam, a todo custo, evitar que suas ideias emancipadoras sejam difundidas entre o rebanho, não se furtando, inclusive, em utilizar táticas desleais, como a de projetar sua visão preconceituosa no outro, argumentando que os ativistas pregam a discriminação da maioria; e a de desqualificar previamente o inimigo, descambando facilmente para sua demonização. Como exemplo desta última, é muito comum, nos grupos evangélicos, a demonização das feministas, acusadas de incentivar a devassidão e a prostituição, bem como dos praticantes de religiões de matriz afro-indígena e dos ativistas LGBTs, acusados de propagar de crenças e comportamentos demoníacos, condenados pelo cristianismo.

Em geral, os liberais apoiam as lutas ativistas e se posicionam contra qualquer tipo de discriminação contra as minorias concretas (exceto a dos pobres, mas esta é definida de forma abstrata, a partir do sujeito automático), o que é um comportamento lógico, em virtude de sua perspectiva de mundo ser dada pelo sujeito automático. Segundo esta perspectiva, o que importa é a capacidade do indivíduo se tornar racional e competitivo, ou seja másculo, mas de uma masculinidade abstrata, que independe do grupo social concreto a que ele se vincula.

Já vimos que a luta feminista só se tornou possível por conta da consolidação do sujeito automático, abstrato e impessoal. Como a mulher é a minoria modelar, cuja suposta irracionalidade e passividade são projetadas em todas as outras, os demais ativismos devem sua existência a esta abertura que a cultura capitalista proporcionou à reivindicação de igualdade das mulheres. Essa ligação umbilical se mantém e os liberais e ativistas frequentemente são aliados nas disputas sociais contra os conservadores, principalmente quando se trata de costumes.

Os ativistas, por sua vez, costumam se distanciar dos liberais quando o assunto são a remuneração e as condições sociais das minorias, frequentemente inferiores às da maioria. Os liberais são adeptos da correção das desigualdades pelas regras abstratas do mercado (meritocracia), pois sendo o sujeito automático impessoal e abstrato, no fim das contas os indivíduos das minorias que tiverem competência para incorporá-lo serão premiados com a prosperidade. No máximo, os liberais concordam em equalizar as condições iniciais de competição, por meio de políticas universalizantes, como as aplicadas à educação e saneamento básico, por exemplo.

Quando os ativistas propõem políticas afirmativas, que visem corrigir, de forma explícita, a marginalização histórica das minorias, em geral os liberais se tornam adversários dos ativistas, argumentando que tais políticas afrontam a meritocracia, regra de ouro do sujeito automático: sob hipótese alguma deve-se compensar a insuficiência do indivíduo em incorporar a racionalidade instrumental e a competitividade. Neste aspecto, os liberais estão apenas sendo coerentes com a lógica implacável do capital, pois apenas os indivíduos mais capazes para a valorização do valor, sejam trabalhadores, gerentes ou capitalistas, devem ser premiados pela seleção “natural” capitalista com a sobrevivência e, para os mais fortes, com o conforto da riqueza.

Para corrigir esta falha distributiva em relação às minorias historicamente marginalizadas, os ativistas se aliam então aos progressistas e incorporam e reivindicam, para além do sujeito automático, o sujeito cidadão da social democracia, que tem o direito à solidariedade, mas também o dever de ser solidário caso seja bem sucedido economicamente. As políticas afirmativas são então encampadas pelos progressistas que, sob o guarda-chuva universalizante do sujeito cidadão, passam a abrigar as minorias concretas identitárias, cujos indivíduos frequentemente pertencem também à minoria econômica (abstrata) formada pelos pobres.

Mas esta incorporação do ativismo pelo progressismo é sempre acompanha de tensões, pois as duas correntes priorizam minorias constituídas de formas diferentes. Enquanto os pobres são definidos de forma abstrata, como destituídos de capital (monetário ou cultural), as minorias concretas perfazem uma identidade constituídas num dado contexto social em função de comportamentos “desviantes” (LGBTs, feministas, religiosos) ou “marcas” inatas (negros, mulheres, hispânicos) que os diferenciam da maioria.

Esta diferença de constituição entre a minoria pobre e as identitárias impede que a luta ativista e a progressista se fundam completamente. É comum, por exemplo, que a mulher ou o LGBT de classe média sejam ativistas ou pelo menos libertos do machismo e da homofobia, mas tenham um preconceito de classe, tipicamente liberal, em relação aos pobres. Da mesma forma, os homens das classes populares, para compensar a feminilização abstrata a que são submetidos pelas classes médias e altas, se tornam machistas e homofóbicos como forma de afirmar sua masculinidade. Por isso, não raro, tais homens são progressistas em assuntos econômicos e conservadores quando se trata de costumes.

Como se vê, ora os ativistas se aliam aos liberais, ora aos progressistas. A aliança com os primeiros é fundamental e, mais que isso, umbilical, pois é o liberalismo que, como porta voz do capital, abstrai a racionalidade e a competitividade do indivíduo concreto (homem branco ocidental) tornando-a atributo do sujeito automático, universal e abstrato, que pode, em tese, ser assumido por qualquer pessoa, independente de qual minoria concreta pertença.

A aliança dos ativistas com os progressistas se dá no momento em que há a percepção de que, na prática, as minorias historicamente discriminadas, em geral não estão em igualdade de condições iniciais com os homens brancos para se tornarem sujeitos automáticos eficientes e competitivos. O progressismo oferece às minorias mecanismos sociais preventivos ou corretivos que tentar igualar efetivamente as condições iniciais de competição.

Mas a aliança dos ativistas com os liberais ou os progressistas está fundada numa contradição fundamental, na medida em que, tanto o liberalismo quanto o progressismo, constituem a subjetividade do indivíduo na esfera da abstração do capital, seja como sujeito automático, seja como sujeito cidadão. Enquanto isso, o ativismo, como o conservadorismo, procura constituir a subjetividade das pessoas com base em indivíduos e grupos sociais concretos, cujas identidades se constroem socialmente a partir de seus comportamentos e/ou marcas inatas, diferenciando-os da maioria historicamente estabelecida. O que coloca ativistas e conservadores em pólos opostos é que estes últimos insistem na diferença hierárquica entre a maioria (homem branco ocidental) e as demais minorias, enquanto os ativistas lutam para abolir qualquer noção de superioridade, afirmando a diferença.

O capitalismo, por meio das ideias liberais, possibilitou o surgimento e muitas vitórias parciais dos vários ativismos identitários. O progressismo e seu sujeito cidadão possibilitou que a incorporação de várias minorias na sociedade capitalista pudesse se efetivar de maneira mais ampla e profunda. Mas na medida em que liberalismo e progressismo agem constituindo uma subjetividade abstrata (sujeito automático e cidadão), as identidades concretas, cuja afirmação é reivindicada pela luta ativista, acabam por ficar em segundo plano, relegadas à vivências individuais e fragmentárias, subordinadas às abstrações universalizantes da subjetividade capitalista, seja o sujeito automático liberal, seja o cidadão progressista.

As minorias identitárias são antagonistas “naturais” dos conservadores e é deste grupo que sofre a maior discriminação. Na verdade, a principal razão de ser do conservadorismo, mais que seu confronto com os liberais e progressistas, é sua contraposição às minorias. Por isso, em relação à força das ideias conservadoras, as vitórias do ativismo têm um papel ambíguo. Na medida em que a luta ativista ganha posições, ela constrange o conservadorismo, inclusivo ao denunciar e até criminalizar atitudes e linguagens preconceituosas (politicamente incorretas). Como, no entanto, o conservadorismo é uma força estrutural do capitalismo e se alimenta do confronto e da discriminação das minorias, as vitórias parciais do ativismo acarretam um efeito colateral imprevisto, que é de reforçar o ódio às minorias. Em momentos de expansão econômica e de afirmação destas minorias, via inserção no mercado, o ódio permanece latente na coletividade, mas na crise, ele emerge de forma inesperada e vigorosa e as conquistas identitárias do período de bonança se tornam combustíveis para o ressurgimento conservador que, em caso de crises agudas, pode descambar para o fascismo. Neste caso, algumas minorias serão apontadas como bodes expiatórios, responsáveis pela corrupção política, econômica ou moral da sociedade.

A luta identitária dos ativistas, portanto, embora só tenha se tornado possível com o capitalismo, encontra neste mesmo sistema a impossibilidade de se realizar plenamente no seu intuito libertário de afirmar as diferenças concretas de indivíduos e grupos sociais, sem, no entanto, hierarquizá-las, seja de forma abstrata, como acontece no liberalismo, com os vencedores e perdedores da guerra do mercado, seja de forma concreta, como quer o conservadorismo, que concebe certo grupo social, normalmente o homem branco ocidental, como predestinado (por deus ou pela natureza) à superioridade.

Por um lado, ao se associar ao liberalismo e progressismo, os ativistas abrem mão da primazia dos sujeitos concretos em favor da subjetividade abstrata, impessoal e universalizante, meramente formal e vazia de conteúdo concreto, do sujeito automático liberal e do sujeito cidadão. Por outro lado, as vitórias parciais da luta identitária, além de nunca serem completas e definitivas, acabam por alimentar o ressentimento conservador que em momentos de crise ressurge revigorado como ódio às minorias, descambando, não raro, para o fascismo. O rancor dos conservadores em relação às minorias é análogo ao ressentimento liberal (que muitas vezes tem também um caráter conservador) das classes médias e das elites em relação aos pobres, que se ressurge revigorado nas crises capitalistas como ódio aos perdedores, vistos como irracionais e preguiçosos que foram  beneficiados injustamente pelas políticas de inclusão social progressistas.

A única maneira das lutas minoritárias dos ativistas e das utopias progressistas terem êxito em afirmar as diferenças entre indivíduos e grupos sociais, abolindo, no entanto,  as hierarquias sociais, sejam elas constituídas de forma abstrata ou concreta, será pela superação do sujeito automático e do sujeito cidadão. Como estas duas subjetividades são, na verdade, a encarnação do capital nos indivíduos concretos, a emancipação humana desejada pelo ativismo e pelo progressismo só se dará com a abolição do próprio capitalismo e suas categorias básicas (valor, trabalho, mercadoria) em torno das quais sua forma sujeito, abstrata, impessoal e vazia de sentido, se constitui.

Comentários

  1. Oi, Wilton!

    E o neoliberalismo e o populismo (pensando em Jorge Alemán, conhece?)?

    Dheyne

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    1. Olá Dheyne,
      O que fiz foi tentar mapear as forças e grupos políticos no capitalismo. Neste aspecto, o neoliberalismo é a versão contemporânea do liberalismo. Já o populismo, não acho que seja uma força política, mas uma forma de governo que adere e manipula as vontades e preconceitos populares, e pode tender tanto ao progressismo quanto ao conservadorismo (ou ambos), assumindo, às vezes, ares fascistas.
      Abraço!

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  2. Ótimo seu post para pensar essas forças; muito necessário agora. Perguntei do Jorge Alemán porque ele parece trabalhar (ou retrabalhar) com Populismo como um conceito diferente, mas não sei se entendi muito bem a ideia dele. Li em espanhol, então nunca fica muito encaixado na minha cabeça. Aí queria saber sua opinião sobre esse teórico. Obrigada pela resposta e pelo conteúdo resistente do blog.

    Abraço!

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    Respostas
    1. Eu é que agradeço por sua leitura atenciosa Dheyne.
      Na outra resposta, me esqueci de dizer que não conheço a obra de Jorge Alemán.
      Vivemos tempos sombrios e, cada um a seu modo, resistir é o que nos resta.
      Abraço!

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