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Double Secret - Rene Magritte |
as mentiras da arte são tantas... são plantas artificiais
artifícios que usamos para sermos (ou parecermos) mais reais
H. Gessinger
Estar na vida é ficar fora do mundo, olhando nuvens deitado na rede da varanda, defronte o jardim, sem esperar nada, nem mesmo um poema. Às vezes não há esta paisagem, mas apenas uma cidade infernal e ruidosa se debatendo além da janela, mas não importa, qualquer paisagem serve, mesmo a de um quarto escuro e solitário – se o poeta não vê nuvens, ele dará um jeito de sonhá-las. Olhar nuvens na rede da varanda... Coisa de preguiçosos. Mas um preguiçoso é muito mais sábio que o poeta, que se gasta em converter seu ócio no trabalho inútil e sem sentido das palavras – esses riscos fugidios que se agarram à página sem nos dizer (quase) nada. Isto quando o poema vem. E uma hora ele vem, para o desespero do poeta que é impelido a grafá-lo na aridez da página. Os poemas escravizam o poeta de tal forma que podemos dizer que ele fez um pacto fáustico com algum demônio: a vida vivida em troca da vida de fachada dos poemas. Só que, ao contrário do Fausto, o poeta não sabe do trato, ou sabe e finge não ver – o lusco-fusco é um Deus dos poetas. Só que, ao contrário do Fausto, um poeta não vende a alma à prazo, mas à vista – a vida se perde no seu agora. Ou talvez os motivos nem sejam tão dramáticos e literários assim, e seus poemas sejam apenas a fuga e o despedaçamento de um ente que desde sempre nunca soube viver. Em todo caso, a escravidão das palavras é outra condição necessária para que haja, naquele corpo, um poeta.
O poeta vende a vida à vista. A vida escorre por entre seus dedos como água ou areia, enquanto ele a fixa (ou tenta fixá-la) na fluidez da página em busca da eternidade e da consagração, mesmo sabendo que o tempo não perdoa nem as galáxias e que a fama é o ouro de tolo dos vaidosos. No fundo, ele sabe que seu trabalho apenas transforma um fluir em outro: a fluidez da vida no correr da letra. Então, por que este trabalho vão, se ele poderia simplesmente se entregar ao fluir da vida? Não haveria, ali, um poeta, mas seria a alegria do corpo – e da alma. Mas o poeta não é sábio a ponto de tal simplicidade. Se tiver muita sorte, talvez seus poemas guardem alguma sabedoria, a que ele não tem em vida. Sua vida, ao contrário, é uma cumulação de erros, desnorteios e enganos, é o cúmulo da insensatez. Em todo caso, um poeta precisa da vida (amada, amigos, pais, filhos, parentes, conhecidos, bichos, plantas, planeta, casa e rua, cidade e solidão, dias e noites, nascimentos e mortes, o fluir inesgotável da vida) mais do que precisa das palavras que o escravizam. E ele afirmaria sem pestanejar, e sem errar, que a vida é o principal alimento de sua poesia, embora de um poeta não se possa dizer que viva ou saiba viver. Fiquemos ainda com a primeira impressão: ele está na vida, e basta para que precise dela. Precisar da vida mais do que tudo, apesar de não saber vivê-la, é também uma condição para que haja, naquele corpo, um poeta.
O homem que suja a página de poemas se faz então por paradoxos e aporias, pelo descompasso consigo mesmo e com o mundo, pelo excesso de disfarces e pela falta de integridade, senso e sabedoria. Não se louvará nele a virtude e se lamentará sua desorientação geral diante da vida. É um homem atravessado por falhas e acidentes de um rincão ao outro de sua inquieta geografia. Condição para que haja, naquele corpo, um poeta.
Poema do e-book Acerto de contas