30 junho, 2019

Aquele corpo

Double Secret - Rene Magritte

as mentiras da arte são tantas... são plantas artificiais
artifícios que usamos para sermos (ou parecermos) mais reais
         H. Gessinger

Um poeta se alimenta de outros poetas, de alguma filosofia, alguma notícia e alguma fábula. Mas há também a amada e os amigos. Amigos doutos e outros nem tanto, pois erudição e intelecto demais cansam a alma rude do poeta. Não que ele seja prático da vida. Mas também não é um teórico da letra. O poeta é um homem de ação da palavra, com pouca paciência para sua ciência ou contemplação. Ele luta no mundo das palavras. Mas está na vida também, pois tem corpo, casa, trabalho e vai ao supermercado. O poeta toma café, cria filhos, cuida do cachorro e conversa amenidades com vizinhos, parentes e conhecidos. Mas seria demais dizer que ele vive ou sabe viver, que tem profissão (além de seu ofício obscuro de cantar palavras mudas), que é virtuoso, íntegro, generoso – aliás,  não seria surpresa flagrarmos no poeta um ente despedaçado, vaidoso e de caráter duvidoso. Fiquemos então com a primeira impressão: ele está na vida. Já basta para que um homem se perca e não se reencontre jamais – condição imprescindível para que haja, naquele corpo, um poeta.

Estar na vida é ficar fora do mundo, olhando nuvens deitado na rede da varanda, defronte o jardim, sem esperar nada, nem mesmo um poema. Às vezes não há esta paisagem, mas apenas uma cidade infernal e ruidosa se debatendo além da janela, mas não importa, qualquer paisagem serve, mesmo a de um quarto escuro e solitário – se o poeta não vê nuvens, ele dará um jeito de sonhá-las.  Olhar nuvens na rede da varanda... Coisa de preguiçosos. Mas um preguiçoso é muito mais sábio que o poeta, que se gasta em converter seu ócio no trabalho inútil e sem sentido das palavras – esses riscos fugidios que se agarram à página sem nos dizer (quase) nada. Isto quando o poema vem. E uma hora ele vem, para o desespero do poeta que é impelido a grafá-lo na aridez da página. Os poemas escravizam o poeta de tal forma que podemos dizer que ele fez um pacto fáustico com algum demônio: a vida vivida em troca da vida de fachada dos poemas. Só que, ao contrário do Fausto, o poeta não sabe do trato, ou sabe e finge não ver –  o lusco-fusco é um Deus dos poetas. Só que, ao contrário do Fausto, um poeta não vende a alma à prazo, mas à vista – a vida se perde no seu agora. Ou talvez os motivos nem sejam tão dramáticos e literários assim, e seus poemas sejam apenas a fuga e o despedaçamento de um ente que desde sempre nunca soube viver. Em todo caso, a escravidão das palavras é outra condição necessária para que haja, naquele corpo, um poeta.

O poeta vende a vida à vista. A vida escorre por entre seus dedos como água ou areia, enquanto ele a fixa (ou tenta fixá-la) na fluidez da página em busca da eternidade e da consagração, mesmo sabendo que o tempo não perdoa nem as galáxias e que a fama é o ouro de tolo dos vaidosos. No fundo, ele sabe que seu trabalho apenas transforma um fluir em outro: a fluidez da vida no correr da letra. Então, por que este trabalho vão, se ele poderia simplesmente se entregar ao fluir da vida? Não haveria, ali, um poeta, mas seria a alegria do corpo – e da alma. Mas o poeta não é sábio a ponto de tal simplicidade. Se tiver muita sorte, talvez seus poemas guardem alguma sabedoria, a que ele não tem em vida. Sua vida, ao contrário, é uma cumulação de erros, desnorteios e enganos, é o cúmulo da insensatez. Em todo caso, um poeta precisa da vida (amada, amigos, pais, filhos, parentes, conhecidos, bichos, plantas, planeta, casa e rua, cidade e solidão, dias e noites, nascimentos e mortes, o fluir inesgotável da vida) mais do que precisa das palavras que o escravizam. E ele afirmaria sem pestanejar, e sem errar, que a vida é o principal alimento de sua poesia, embora de um poeta não se possa dizer que viva ou saiba viver. Fiquemos ainda com a primeira impressão: ele está na vida, e basta para que precise dela. Precisar da vida mais do que tudo, apesar de não saber vivê-la, é também uma condição para que haja, naquele corpo, um poeta.

O homem que suja a página de poemas se faz então por paradoxos e aporias, pelo descompasso consigo mesmo e com o mundo, pelo excesso de disfarces e pela falta de integridade, senso e sabedoria. Não se louvará nele a virtude e se lamentará sua desorientação geral diante da vida. É um homem atravessado por falhas e acidentes de um rincão ao outro de sua inquieta geografia. Condição para que haja, naquele corpo, um poeta.

Poema do e-book Acerto de contas

02 junho, 2019

Encontros subterrâneos


Poema do livro Acerto de contas

I – Me encontro onde me perco

gnoses interiores
gnoses sombrias
vozes de harpias
me chamam do abismo
do abismo
de mim

a rosa dos ventos
a estrela de vênus
o leite de luz
do centro da galáxia
um buraco negro me atrai
um eu outro      os olhos do espelho
as pupilas se dilatam no escuro
e escurece     o olho inteiro    a cabeça inteira
o corpo todo tomado                      noite
noite densa no meu dentro
eu vejo
a face
do caolho       que me olha         do meu olho
sob as sombras do que sobrou de mim
                               que soçobrou de mim

mergulho no medo mais fundo do medo
com tanto medo que o medo teme
a rosa e a estrela na destra
a voz e a luz na esquerda
um círculo de sal       em torno do vermelho
dos olhos do espelho
(meus olhos não me escapam mais)

agora sou eu
e você
meu caro eu
abissal

II – Diga-me com quem andas...

Não seja ingênuo,
tantos anos
em tais companhias,
vagando por ruas tortas, noturnas
e mal iluminadas
de sua obscura cidade
do interior,

quem você
esperava encontrar
em você?

III – Mar adentro

O passado não existe,
o futuro não existe,
só há
o agora
e já
é outra hora.

O vento
que não se agarra
agarra folhas secas e sacos plásticos
e os leva pelo ar poluído, ao acaso,
a rua caminha para um onde
de sombras inesperadas engolindo
folhas e plásticos soprados no mau tempo
da cidade. Sombras, lá estavam
elas, suspensas no escuro,
no sempre das horas
no dentro dos mares
de ruas e muros.

Adeus Sr. Wilton e seu doce passado
salgado e amargo, nada de saudades,
mate o ontem e o enterre no porvir.
Só restam as sombras do agora.
Restam sombras e talvez... um talvez
soprado pelo vento dos acasos
do existir.

Restam os cacos (e o caos)
desta nave de carbono e o resto
da viagem: mundo afora,
mar adentro.
Mar de pedra e sal, sobras de oceanos
fervilhando auroras perdidas,
manchadas de nuvens de chumbo
despencando sobre um mar de pedra
e sal.
Adeus ruas da cidade adolescente
sonhando mundos que se quebram,
mar de vidro e cimento, pedra e sal
cortando a carne dos sonhos. Emergem
os olhos do espelho: cor de chumbo
e sangue chovendo um mar vermelho
de sombras. Um mar amargo ardendo
na boca e olhos do passado e do futuro,
que não existem mas corroem
a flor do agora aberta no escuro
mar interior de pedra e vidro,
cimento e sal, sangue e chumbo.

Adeus saudade e espera. Apenas
olhe-se agora, (neste) mar
de pedra e sal e tente
se manter em si e navegar
sobre as ondas de chumbo
e sangue, cimento e vidro,
sob o peso do abismo
de si mesmo. A alma é uma coisa
que não existe e pesa um mar de chumbo.
Tente se manter inteiro sob o peso
do mar de sombras da alma
que você carrega nesta nave,
ouro escuro, estrume de demônios,
adubo desta letra negra, deste lodo
que cresce e toma a nave toda. A alma
naufraga lenta nesse mar de sombras
e noites, sangue e chumbo, cimento e vidro,
pedra e sal. E o piloto mais perdido
que um Deus extinto...

IV – Psychocandy

uma guitarra suja enterrada
no lodo podre da alma
demônios dançam aturdidos
um martelo de som despenca das nuvens de chumbo
um martelo de chumbo vibra no ar de fogo
dos anjos abismados     um martelo sujo de voz
bate a carne da alma   bate às portas internas
a ferrugem das guitarras rasgando a carne

nada de fábulas    ou pessoas
nada de erudições   de som e palavra
apenas                 esta fratura    este outro 
imundo saber             das sombras
selvagem saber      da poesia tosca
de vozes inglesas          de bestas loiras enlouquecidas
que me queimam as sombras       com ritmos negros
apenas a poesia absorvida          pelo mercado
negro das almas dos negócios        a poesia corrompida
pelo ouro  (e pelo ócio dos vadios)      a poesia ainda
deixa um rastro de veneno             que eu sorvo
ávido como se fosse          o néctar dos deuses
um bando de demônios             uma alcateia de anjos
voando nuvens de lama      do fundo da alma
estrada para a loucura           não sei o que cantam
não é preciso                  não é preciso o saber   
nada é preciso

nada de gentes   não se aproximem
suplica o misantropo carregado de diabos
quero apenas o martelo de aço corrosivo
lacerando os ossos do espírito
apenas o grito enferrujado da guitarra
se afundando na carne da alma

uma dor morde (seus dentes
impregnados de ácido e ver-
mes) a medula da mente
a dor     (sem cura)    de viver
o amor
corrompido dos vampiros
o conhecimento bêbado
a gnose dos anjos perdidos
o saber errante dos loucos
         preciso saber
hipnotizar um demônio enfiando
uma faca de som nos meus olhos
                                  (seus olhos
                                   não me escapam mais)

V – Eis-me

Me perdi de todo conhecimento e sentir,
entre máscaras sem rosto por trás.
Se houve alguém atrás das cortinas
deste teatro do absurdo que sou,
está partido em mil pedaços
pela faca da ironia e do disfarce
que eu mesmo criei e acreditei.
Me dei a mim – ou me foi dado
por algum demônio que sou? –
um ver de sombras e restos,
um viver incompleto e revolto,
um rosto de fumaça e medo,
um amor sombrio e sem entrega
e um olhar de morcego perdido
na luz, em busca da noite, do outro
que nunca inteira as metades esvoaçadas
desta ave noturna e sem penas, voando
sem rumo e rumor o mundo dos homens,
deixando um rastro de sangue e sede
insaciável na página indiferente...
Eis-me morcego,
o que conhece as noites da alma
e experimentou os sentimentos mais vis
e violentos, filhos do medo e do desejo
frustrado, o que ensina pelo não e pela dor,
pelo engano e pelos desvãos da virtude.
Eis-me, e meu único saber: o saber
dos infernos.

minutos milênios






Do e-book Móbiles

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...