Poema do livro Acerto de contas
I – Me encontro onde me perco
gnoses interiores
gnoses sombrias
vozes de harpias
me chamam do abismo
do abismo
de mim
a rosa dos ventos
a estrela de vênus
o leite de luz
do centro da galáxia
um buraco negro me atrai
um eu outro os olhos do espelho
as pupilas se dilatam no escuro
e escurece o olho inteiro a cabeça inteira
o corpo todo tomado noite
noite densa no meu dentro
eu vejo
a face
do caolho que me olha do meu olho
sob as sombras do que sobrou de mim
que soçobrou de mim
mergulho no medo mais fundo do medo
com tanto medo que o medo teme
a rosa e a estrela na destra
a voz e a luz na esquerda
um círculo de sal em torno do vermelho
dos olhos do espelho
(meus olhos não me escapam mais)
agora sou eu
e você
meu caro eu
abissal
II – Diga-me com quem andas...
Não seja ingênuo,
tantos anos
em tais companhias,
vagando por ruas tortas, noturnas
e mal iluminadas
de sua obscura cidade
do interior,
quem você
esperava encontrar
em você?
III – Mar adentro
O passado não existe,
o futuro não existe,
só há
o agora
e já
é outra hora.
O vento
que não se agarra
agarra folhas secas e sacos plásticos
e os leva pelo ar poluído, ao acaso,
a rua caminha para um onde
de sombras inesperadas engolindo
folhas e plásticos soprados no mau tempo
da cidade. Sombras, lá estavam
elas, suspensas no escuro,
no sempre das horas
no dentro dos mares
de ruas e muros.
Adeus Sr. Wilton e seu doce passado
salgado e amargo, nada de saudades,
mate o ontem e o enterre no porvir.
Só restam as sombras do agora.
Restam sombras e talvez... um talvez
soprado pelo vento dos acasos
do existir.
Restam os cacos (e o caos)
desta nave de carbono e o resto
da viagem: mundo afora,
mar adentro.
Mar de pedra e sal, sobras de oceanos
fervilhando auroras perdidas,
manchadas de nuvens de chumbo
despencando sobre um mar de pedra
e sal.
Adeus ruas da cidade adolescente
sonhando mundos que se quebram,
mar de vidro e cimento, pedra e sal
cortando a carne dos sonhos. Emergem
os olhos do espelho: cor de chumbo
e sangue chovendo um mar vermelho
de sombras. Um mar amargo ardendo
na boca e olhos do passado e do futuro,
que não existem mas corroem
a flor do agora aberta no escuro
mar interior de pedra e vidro,
cimento e sal, sangue e chumbo.
Adeus saudade e espera. Apenas
olhe-se agora, (neste) mar
de pedra e sal e tente
se manter em si e navegar
sobre as ondas de chumbo
e sangue, cimento e vidro,
sob o peso do abismo
de si mesmo. A alma é uma coisa
que não existe e pesa um mar de chumbo.
Tente se manter inteiro sob o peso
do mar de sombras da alma
que você carrega nesta nave,
ouro escuro, estrume de demônios,
adubo desta letra negra, deste lodo
que cresce e toma a nave toda. A alma
naufraga lenta nesse mar de sombras
e noites, sangue e chumbo, cimento e vidro,
pedra e sal. E o piloto mais perdido
que um Deus extinto...
IV – Psychocandy
uma guitarra suja enterrada
no lodo podre da alma
demônios dançam aturdidos
um martelo de som despenca das nuvens de chumbo
um martelo de chumbo vibra no ar de fogo
dos anjos abismados um martelo sujo de voz
bate a carne da alma bate às portas internas
a ferrugem das guitarras rasgando a carne
nada de fábulas ou pessoas
nada de erudições de som e palavra
apenas esta fratura este outro
imundo saber das sombras
selvagem saber da poesia tosca
de vozes inglesas de bestas loiras enlouquecidas
que me queimam as sombras com ritmos negros
apenas a poesia absorvida pelo mercado
negro das almas dos negócios a poesia corrompida
pelo ouro (e pelo ócio dos vadios) a poesia ainda
deixa um rastro de veneno que eu sorvo
ávido como se fosse o néctar dos deuses
um bando de demônios uma alcateia de anjos
voando nuvens de lama do fundo da alma
estrada para a loucura não sei o que cantam
não é preciso não é preciso o saber
nada é preciso
nada de gentes não se aproximem
suplica o misantropo carregado de diabos
quero apenas o martelo de aço corrosivo
lacerando os ossos do espírito
apenas o grito enferrujado da guitarra
se afundando na carne da alma
uma dor morde (seus dentes
impregnados de ácido e ver-
mes) a medula da mente
a dor (sem cura) de viver
o amor
corrompido dos vampiros
o conhecimento bêbado
a gnose dos anjos perdidos
o saber errante dos loucos
preciso saber
hipnotizar um demônio enfiando
uma faca de som nos meus olhos
(seus olhos
não me escapam mais)
V – Eis-me
Me perdi de todo conhecimento e sentir,
entre máscaras sem rosto por trás.
Se houve alguém atrás das cortinas
deste teatro do absurdo que sou,
está partido em mil pedaços
pela faca da ironia e do disfarce
que eu mesmo criei e acreditei.
Me dei a mim – ou me foi dado
por algum demônio que sou? –
um ver de sombras e restos,
um viver incompleto e revolto,
um rosto de fumaça e medo,
um amor sombrio e sem entrega
e um olhar de morcego perdido
na luz, em busca da noite, do outro
que nunca inteira as metades esvoaçadas
desta ave noturna e sem penas, voando
sem rumo e rumor o mundo dos homens,
deixando um rastro de sangue e sede
insaciável na página indiferente...
Eis-me morcego,
o que conhece as noites da alma
e experimentou os sentimentos mais vis
e violentos, filhos do medo e do desejo
frustrado, o que ensina pelo não e pela dor,
pelo engano e pelos desvãos da virtude.
Eis-me, e meu único saber: o saber
dos infernos.
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