Poesia concreta e visualidade da escrita

A última vanguarda e o primeiro pós-modernismo

Décio Pignatari e os irmãos Campos e Ferreira Gullar na década de 50

No Brasil, o concretismo foi, ao mesmo tempo, a última vanguarda modernista e o primeiro pós-modernismo. Na mesma São Paulo de Oswald e Mário de Andrade, o movimento da poesia concreta da década de 1950 fecha o ciclo da poesia modernista, iniciada com a Semana de Arte Moderna de 1922. Mas também inicia uma nova era da poesia, que vamos chamar de pós-modernista, mais desgarrada de projetos nacionais ou existenciais.

O que há de modernismo na poesia concreta? Grosso modo, pode-se dizer que a poesia (e também o romance) modernista se constitui como uma tensão entre a destruição e a reconstrução, seja como expressão do sujeito, representação social ou artefato formal. O modernismo rompe com a tradição poética do passado em busca do novo, vivendo de revoluções. Estas rupturas, no entanto, devem dar lugar a algo minimamente estruturado, seja esta estrutura um novo sujeito (mesmo que seja o homem desencantado drummondiano), uma nova sociedade (ou pelo menos a utopia por uma) ou uma nova forma.


Beba Coca Cola (Décio Pignatari)

Portanto, apesar de seu furor crítico e revolucionário, fonte de brigas e intrigas entre correntes, escolas e poetas, a poesia modernista ambiciona alguma estabilidade em meio à profusão de metamorfoses que ele mesmo provoca. Pode-se dizer, daí, que na poesia modernista há, ainda, uma utopia da unidade ou da totalidade, seja ela subjetiva, social ou formal.

O concretismo, na melhor “tradição” das vanguardas, surge como um movimento polêmico, ambicioso e com uma retórica de guerra, decretando a morte, por obsolescência, da poesia tradicional e anunciando a nova poesia do futuro.

A abolição do verso, a recusa da sintaxe discursiva e negação da expressão subjetiva são as mortes anunciadas pelos concretistas. Em seu lugar, propõem a disposição espacial das palavras e letras na página, uma sintaxe visual e a primazia da forma poética, à qual devem se subordinar os conteúdos (subjetivos ou sociais) que ela exprime.

Ruptura com a tradição do verso, da discursividade e da subjetividade e tentativa de construção de uma poesia visual radicalmente experimental, em constante revolução formal e que dá à grafia (o desenho da letra e o espaço da página) a mesma importância que os recursos verbais (sintaxe e sentido) e sonoros.

A primazia da voz

Para além do desejo dos poetas concretos de fundar um movimento ou mesmo uma escola poética, com todas as disputas e melindres, muitas vezes pueris, característicos dos grupos literários, eles, pela primeira vez na história da literatura ocidental, liberaram uma potência até então ignorada na poesia: a da visualidade da escrita.

Além de fonêmica, com cada letra representando aproximadamente um fonema da língua, a escrita alfabética é, por óbvio, visual. Ela necessita ser grafada numa superfície, estabelecendo com esta uma relação pictórica de forma e fundo, que embora tenha sido explorada poeticamente desde a antiguidade, nunca foi levada a sério no meio literário ocidental.

                         mar azul

                         mar azul marco azul

                         mar azul marco azul barco azul

                         mar azul marco azul barco azul arco azul

                         mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

                                        Mar Azul (Ferreira Gullar)

Este desprezo pela visualidade pode ser creditado ao caráter fonêmico da escrita alfabética, que acaba por privilegiar a ligação entre a letra e o som, deixando o aspecto gráfico em segundo plano. Mas pode haver uma razão mais profunda para o descaso ocidental com a visualidade da escrita, que é a desconfiança metafísica, que remonta a Platão, em relação à palavra escrita, principalmente por ela se separar da voz autoral e permitir, por meio da interpretação, uma diversidade de sentidos, muitos deles não autorizados pela voz, ou seja, pela origem.

A escrita perpetua a voz, mas o preço cobrado é a duplicidade desta mesma voz: no sentido de duplo sentido (instabilidade do sentido), mas também de inautenticidade da interpretação que a distancia da origem, já que toda leitura é também uma reescrita do original.

À poesia ocidental, principalmente na modernidade, coube sempre um papel metafísico,quase religioso, de resgate ou preservação da origem, da totalidade da voz. Por mais que a conotação metafórica, tão cara à poesia, provocasse a instabilidade do sentido, a leitura que se fazia é que o “duplo sentido” nada mais era que um caminho para se atingir o sentido mais profundo do mundo e da alma humana. Mesmo a teoria psicanalítica, já em pleno século XX, reconheceria na poesia (na literatura em geral) uma antecipação da psicanálise, por conta da capacidade da conotação em descortinar os conteúdos inconscientes da mente humana.

Para a visão metafísica da poesia, a instabilidade do sentido poético é relativa. Ela guarda,no fundo, a plenitude da origem, oculta sob as aparências móveis do mundo: a duplicidade da metáfora seria um caminho tortuoso para a unidade do ser, expressa pela voz poética. Não é de se admirar, portanto, a aliança da poesia ocidental com os aspectos sonoros da palavra escrita, relegando a grafia ao segundo plano poético (na retórica clássica estuda-se apenas figuras de som e sentido). A sonoridade da poesia relembra e resgata a voz original: do poeta, da nação, do ser ou das musas.



Lua na água (Paulo Leminski)

A grafia, embora seja a técnica responsável pela perpetuação da poesia, se identifica, por outro lado, com os demônios que corrompem da voz original: a duplicação incontrolada dos sentidos e a historicidade da leitura. Meio técnico de preservação da poesia, a grafia contesta a metafísica e relembra aos poetas e intérpretes que a instabilidade do sentido pode ser absoluta e que “no fundo” talvez não haja voz original para se decifrar ou se identificar. A poesia passaria, de voz original e sagrada, para um jogo de ilusões, como já fora denunciada por Platão.

A explosão da grafia

O concretismo, pela primeira vez na história da literatura ocidental, ousa trazer a grafia e a visualidade da página para o primeiro plano poético, igualando sua importância com a manipulação do sentido e do som. O poema concreto seria, agora, verbi-voco-visual, um amálgama de sentido, sonoridade e visualidade, sem que haja hierarquia entre estas três dimensões da palavra escrita.

O uso da visualidade não é novo na poesia ocidental, pois remonta à antiguidade. No início século XX, os dadaístas e futuristas intensificaram o uso da visualidade no poema, mas nada comparado com a fusão promovida pelos concretistas que, ao mesmo tempo que criavam poemas visuais, teorizavam sobre sua prática. O que permitiu que avançassem numa poética enxuta e despida de discursividade, suprida pela visualidade em simbiose com a semântica das palavras e até mesmo das sílabas e letras.


SOS (Augusto de Campos)

Assim como os dadaístas e futuristas, os concretistas estavam incorporando na sua poesia a explosão gráfica e visual do século XX, com os letreiros, as logomarcas e as experiências gráficas da imprensa e da publicidade, sem falar na imagem-movimento do cinema e da TV. O demônio da grafia, antes ocultado pela poesia, foi definitivamente solto pelos concretistas. E este demônio carrega consigo a corrupção da voz original, como visto acima.

Os concretistas abriram a caixa de pandora da poesia ocidental. Sua herança é riquíssima e, se a poesia não estivesse praticamente morta nos dias de hoje, o mundo estaria escrutinando e debatendo ferozmente (contra ou a favor) o poema visual, a fusão entre imagem e escrita, vídeo e poesia etc, tudo a partir das comportas abertas pela teoria e prática da dos poetas concretos, que sintetizaram e potencializaram o uso da visualidade na poesia na década de 1950.

A contenção da grafia

Ao mesmo tempo que liberaram a visualidade da poesia, os concretistas tentavam, principalmente por meio da teoria aprisioná-la numa outra totalidade, desta vez formal, muito próxima das teorias estruturalistas da linguística. A obsessão teórica pelo projeto, pelo “plano-piloto”, pela estrutura enfim, deslocava a unidade desejada de um passado original para o futuro a se construir.


(Augusto de Campos)

O movimento da forma poética, ao invés de revelar as origens da voz, seria a execução revolucionária do projeto de uma poesia total (verbivocovisual), em diálogo tenso com o mundo tecnológico do século XX. A grande narrativa não estava mais no passado (nas origens) do sujeito, da nação ou da humanidade e sim no futuro. Na verdade, o que se buscava não era mais uma narrativa e sim uma estrutura porvir, a ser constantemente revolucionada, como a ciência e a tecnologia.

Se a poesia concreta liberou as potências da grafia e se libertou do jugo totalitário da voz original, ela tentou se impor uma outra coerção, a da estrutura formal, voltada para o futuro, mas ainda assim, em busca de uma totalidade.

Enfim

O saldo da poesia concreta foi o da liberação da visualidade (desde sempre presente) da poesia escrita, para além das tentativas concretistas de enquadrar a explosão da grafia nas totalidades formais da estrutura. Alguns poetas aprofundaram a exploração das potencialidades da grafia em suas obras demonstrando a fecundidade do movimento. Assim foi com o concretista Augusto de Campos, em sua fase pós-concreta, e com Arnaldo Antunes.
Humanos (Arnaldo Antunes)

Se a poesia ainda causasse algum impacto nos dias de hoje, o concretismo brasileiro seria um divisor de águas da poesia ocidental, entre uma era quase que exclusivamente pré-visual, voltada para a voz original, e os tempos atuais, em que esta sacralidade poética fora abalada pela libertação das potências gráficas da escrita.

Mas esta condicional é uma falácia, pois a crescente desimportância da poesia (da literatura em geral) na contemporaneidade decorre da mudança de sensibilidade que ocorreu ao longo do século XX, fato observado tanto pela Escola de Frankfurt, com seu conceito de indústria cultural, quanto por Marshall Mcluhan e sua aldeia global. 

 
(Augusto de Campos)

O século XX é a era da velocidade, da padronização industrial e das mídias elétricas (rádio, TV, cinema e, depois, internet), que privilegia a visualidade e a instantaneidade da mensagem, condenando o livro e a escrita exigente da literatura a um segundo plano. As pessoas da segunda metade do século XX e do XXI não têm mais a cultura de se aprofundar num livro de poemas, lendo, relendo e meditando sobe a obra poética. Nem mesmo a mudança de suporte para a tela do computador ou celular muda esta realidade, pois o poema ainda continua pedindo uma leitura lenta e imersiva, que o receptor atual não pode mais realizar.

Ao liberar as potências da grafia, os concretistas absorvem esta nova era visual das mídias elétricas em seus poemas, mas estes continuam a ser artefatos literários da era da escrita, com a exigência de uma sensibilidade que os novos leitores não podem mais oferecer. O lirismo do século XX passa ser cada vez mais o da canção, assim como a narrativa se desloca do romance para o cinema e a TV. A escrita perde sua centralidade como mídia de base da lírica e da narrativa, que passam a ser veiculadas pela indústria cultural e suas mídias elétricas.

As potências da visualidade liberadas pelo concretismo será a última revolução da poesia escrita ocidental, antes de sua decadência na cultura capitalista. 


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Tvgrama I (Augusto de Campos)

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