20 outubro, 2020

As teorias da conspiração e suas meias verdades

Os tempos sombrios em que vivemos é um terreno fértil para o florescimento das teorias da conspiração, desde as suas versões mais delirantes da extrema direita até as que se assentam em dados da realidade, que costumam ser desenvolvidas à esquerda, inclusive nos meios acadêmicos. 

O marxismo globalista, o vírus chinês, o comunismo de Soros e Gates, a aliança dos progressistas e ativistas com o diabo são exemplos dos delírios conspiratórios dos neofascistas e cristofascistas atuais que infelizmente ganham cada vez mais adeptos no Brasil e no mundo.

As teorias conspiratórias elaboradas pela esquerda são mais inteligentes e baseadas em dados da realidade, tratando, geralmente, do estado profundo (deep state) norte-americano e do imperialismo dos países centrais do capitalismo (EUA, Europa Ocidental e Japão) e sua luta sem tréguas para manter seu domínio geopolítico mundial, estabelecido no Pós-Guerra, impedindo que as nações periféricas se desenvolvam e se tornem competidores poderosos.

As conspirações existem? Sim, existem

As conspirações imaginadas pela extrema direita obviamente não existem ou suas teorias se assentam muito fragilmente em bases reais. O caso do marxismo globalista, por exemplo, se funda no fato de Marx ser um teórico importante nas chamadas humanidades do meio acadêmico mundial. E no fato de Marx apregoar que o comunismo deveria ser um movimento mundial, mas só porque o capitalismo é global, o que torna ineficaz combatê-lo localmente. 

Ou seja, há no marxismo um detalhe da realidade (facilmente verificável) e um raciocínio lógico que são convenientemente esquecidos pelos delírios da conspiração do neofascimo atual: que o capitalismo é globalista desde seu início e, em consequência, a luta contra ele também deveria ser global. E há outro detalhe empírico ignorado pela extrema direita, também fácil de se verificar, que é a fragilidade e a falta de popularidade de todos os movimentos anticapitalistas na atualidade, sejam marxistas ou não. Se o progressismo e as esquerdas reformistas ganham força em alguns lugares, quase ninguém questiona o capitalismo em si. Mas cobrar tal percepção de quem acha que Soros e Gates são comunistas seria exigir demais.

Já as conspirações teorizadas pelo chamado campo progressista geralmente são mais factíveis. Não há como negar a existência do estado profundo norte-americano e da aliança imperialista do chamado Ocidente desenvolvido, capitaneada pelos EUA. Os golpes de 1964 e 2016 nos fizeram a nós, brasileiros, provar o veneno amargo das conspirações imperialistas dos EUA e seus aliados, em sua obstinada determinação de nos manter pobres e humilhados latino-americanos de Terceiro Mundo.

E devemos nos lembrar que China e Rússia, nossos supostos aliados do BRICs, não moveram uma palha a nosso favor em 2016. Sem falar que a primeira ainda apareceu depois para dividir o butim do golpe, comprando avidamente muitos ativos nacionais na bacia das almas. Para a China ascendente, tal como para o Primeiro Mundo, somos apenas fornecedores de matéria-prima. 

É uma ilusão das nossas elites achar que um dia seremos aliados-subordinados estratégicos de alguma potência mundial, como o Canadá e a Austrália são para os EUA. Para isso, seria preciso compartilhar cultura e carga genética com o povo do império e nós, mestiços de negros e latinos (estes considerados quase negros pelos loiros europeus) não temos “pedigree” cultural nem racial para a posição privilegiada de capataz do império, seja ele de olhos azuis ou de olhos puxados.

Em todo caso, o mundo capitalista se organiza por meios de uma competição ferrenha e desleal não apenas entre empresas e indivíduos, mas também entre estados e blocos de estados. A competição econômica se confunde com a competição geopolítica e as grandes empresas forjam, o tempo todo, alianças com as forças obscuras dos estados (serviços secretos, alta burocracia, judiciário, partidos políticos) em busca de mercados e, obviamente, lucro, que é a razão de ser das corporações no capitalismo. 

Nessa luta sangrenta por lucro e mercados há, obviamente, guerras surdas e conspirações de toda ordem, nas quais os estados tentam controlar e vencer seus adversários. Boa parte das conspirações capitaneadas pelos EUA tem como objetivo impedir que estados-colônias continentais, como Brasil, Rússia, Índia e China, se tornem potências e confrontem os países centrais. A China e, em menor grau, a Rússia, parecem estar conseguindo escapar das guerras híbridas e redes conspiratórias imperiais e ascender ao seleto panteão das nações realmente autodeterminadas.

Para isso, fizeram o que o Brasil e a Índia não quiseram ou não puderam realizar: burlaram a farsa das relações democráticas e republicanas e jogaram sujo a favor de seus respectivos nacionalismos, tanto internamente quanto externamente. Ou seja, aceitaram o jogo conspiratório como a política real e contra-atacaram sem piedade (e sem falsos moralismos ou republicanismos) os adversários internos e externos da autodeterminação nacional. 

Os governos petistas de Lula e Dilma, por exemplo, poderiam ter transformado o Brasil numa Alemanha da América Latina, uma potência industrial regional. Mas para isso teriam que construir um serviço secreto eficiente e fazer uma limpeza ideológica no Judiciário, no aparato policial e nas forças armadas, aposentando ou demitindo os aliados dos EUA e do neoliberalismo, incrustados no aparelho de estado. Lula, por exemplo, perdeu a chance de estatizar a Rede Globo, que estava quebrada em 2002, ano de sua posse. Com a Globo em suas mãos, ele poderia quebrar toda a grande mídia familiar, aliada de longa data do império norte-americano, e não haveria nem Lava-Jato nem o golpe de 2016. 

Pouco democrático? A democracia no capitalismo é sempre muito relativa e todos os países que se tornaram potências a burlaram constantemente em nome de seus projetos de poder, a começar pelos EUA, onde não faltam exemplos de conspirações muito pouco democráticas, como o macarthismo anticomunista, a aliança velada do deep estate com a grande mídia (explicitada com as mentiras sobre as armas químicas na guerra do Iraque) e o atual conluio das agências de espionagem com as grandes bigs techs norte-americanas.

Então, as conspirações descritas pelas esquerdas existem de fato. Negá-las seria negar a realidade imperialista do capitalismo mundial. E qual o resultado das guerras conspiratórias e disputas geopolíticas para as pessoas comuns, como nós? 

O capitalismo gera dois tipos de sofrimento para as pessoas. O primeiro decorre da transformação das pessoas em capital humano, em máquinas racionais de trabalhar e gerar lucro, cuja exigência de desempenho se acelera à medida que o capitalismo se desenvolve. O segundo tipo de sofrimento decorre da desigualdade inerente ao desenvolvimento capitalista e se traduz em massificação do desemprego/subemprego, da pobreza, miséria e fome.

Para os males da redução da pessoa a capital humano, as disputas geopolíticas e as guerras conspiratórias não fazem diferença: todas as pessoas de todas as nações são afetadas por este sofrimento. Talvez as pessoas dos países dos países ricos padeçam até mais das exigências do alto desempenho individual, que obrigam as pessoas a dedicarem quase toda sua vida ao mercado de trabalho e, em consequência, ao capital.

Em relação aos males da desigualdade, os países vencedores da guerra capitalista se tornam mais ricos e com mais condições de combater, senão a desigualdade, pelo menos o desemprego, a miséria e a fome. Estes três problemas, por exemplo, foram praticamente resolvidos na China, a partir dos anos 2000, quando começa sua ascensão meteórica como potência industrial. 

O dinamismo dos ganhadores gera emprego e renda e mesmo que não resolva o problema da distribuição e da pobreza, o sofrimento causado pela miséria e a fome cessam. Politicamente, o resultado é o apoio popular, o crescimento do sentimento nacionalista e o fortalecimento interno das forças políticas que promovem a ascensão da nação, que China (com o PCC) e Rússia (com Putin) souberam aproveitar muito bem, se projetando no cenário internacional e lutando contra as conspirações do Ocidente para frear sua autoafirmação como potências.

As conspirações imperiais e as lutas anti-imperialistas, portanto, são fundamentais para definirem os países vencedores e perdedores na encarniçada guerra capitalista mundial, redistribuindo o poder econômico e político entre as nações e seus habitantes. Os povos dos países perdedores estão sujeitos à expansão da miséria, da fome e do inevitável caos político e social decorrente de tal situação, como é o caso dos países da América Latina. 

As conspirações imperialistas e a resistência a elas  mudam o destino de alguns povos na disputa capitalista. Mas os teóricos da conspiração da esquerda, costumam acreditar que uma boa resistência das nações periféricas às escaramuças conspiratórias capitaneadas pelos EUA também podem mudar o destino do capitalismo em geral, e para melhor. Ou seja, eles creem que se entendermos bem os objetivos do império (se tivermos uma boa teoria da conspiração) e nos defendermos e contra-atacarmos de forma eficaz, podemos melhorar a vida de todos os povos do planeta. 

Poderíamos, por exemplo, apoiar a ascensão da China como próxima força imperial e negociar como ela um mundo multipolar, onde a autodeterminação dos povos seria concreta e não apenas formal. Um mundo forjado a partir da cooperação sul-sul, sonho dos idealizadores dos BRICs, poderia engendrar um capitalismo mais justo, geopoliticamente.

A resistência às conspirações imperiais podem alterar os rumos fundamentais do capitalismo? Não

A conversa de Trump sobre a China roubar empregos norte-americanos é uma meia-verdade, pois há uma parte dos empregos que foram `roubados" pela automação. Mas a China realmente tirou indústrias (e empregos) dos EUA, assim como tirou da Europa e do Brasil.

Não que os chineses sejam maus e tenham um plano diabólico de empobrecer os outros para se enriquecerem. É que eles entenderam as regras do jogo capitalista e passaram a jogá-lo de forma agressiva, que aliás é a única forma de se tornar um vencedor. E o capitalismo é um jogo de soma zero, que concentra a riqueza em poucas mãos - e países. Quem ganha, costuma levar tudo, ou quase tudo.

Distribuir riqueza e, em consequência, o poder de forma desinteressada, a beneficiar todas as nações e, dentro delas, todas as pessoas, é contra a lógica do capital, cuja tendência mais eficiente (para o capital) é a acumulação de riqueza e poder. Quem ganha a guerra, pode até distribuir o butim, mas jamais da forma que consideraríamos justa e desinteressada: será sempre uma distribuição que considera a eficiência do capital e a preservação de seu poder econômico e político, exatamente como os EUA fazem atualmente. 

E sempre haverá muito mais nações (e pessoas) perdedoras que vencedoras. Não há vontade política nem boas intenções progressistas e anti-imperialistas que possam mudar este DETERMINISMO capitalista de concentração da riqueza criada e de geração de miséria e fome em meio à riqueza e abundância alimentar. Se a China desbancar os EUA, ela não vai se tornar um império do bem (uma contradição em termos) só porque já foi um país colonial, explorado pelo grande capital - os EUA também já foram, é bom lembrar. O jogo capitalista exige que os ganhadores se portem como ganhadores, que eliminem os potenciais competidores e evitem solidariedade desnecessária para com os perdedores. É assim com empresas e pessoas e também é assim com estados.

As guerras convencionais, assim como as guerras comerciais e híbridas, nas quais as conspirações são essenciais, mudam a riqueza e o poder no interior do capitalismo e definem os vencedores e perdedores do sistema. Estas mudanças de poder são imprevisíveis e dependem, em larga medida, da vontade política dos povos, de sua coesão interna e sua disposição em transformar sua coletividade numa máquina eficiente e competitiva para produzir capital humano, ciência, tecnologia e, por fim, mercadorias e lucro, que é a finalidade do capitalismo.

Mas as guerras e conspirações não alteram alguns desenvolvimentos fundamentais do capitalismo, que estão DETERMINADOS desde o início do sistema como um DESTINO LÓGICO seu, como por exemplo, a substituição de trabalho humano por automação, a queda tendencial da taxa de lucro, a necessidade de se aumentar constantemente o volume da produção de mercadorias para compensar a queda do lucro, o crescimento do desemprego tecnológico, a tendência à concentração de riqueza e a degradação ambiental decorrente da necessidade insana de aumentar a produção de mercadorias. Todas estas “leis” foram previstas por Marx e os marxistas a partir da lei do valor-trabalho e são verificáveis empiricamente ao longo do desenvolvimento do capitalismo, desde a Revolução Industrial.

Enquanto durar o capitalismo e sua lógica da mercadoria, estas “leis” podem, no máximo, terem suas consequências mitigadas, mas nunca poderão ser revogadas, pois não dependem da vontade política das pessoas, por mais bem intencionadas que sejam. A luta contra as conspirações imperiais dos EUA e seus aliados, mesmo se vitoriosa, não vai alterar esses desenvolvimentos pré-determinados do capital. 

Se o centro do sistema mudar para a China, mesmo que ela queira, não haverá meios para mudar os destinos lógicos do capitalismo, que não levam automaticamente ao socialismo, como muitos marxistas tradicionais pensaram, mas ao colapso do sistema e ao caos, que já se anuncia com as crises do neoliberalismo financeiro e a ascensão mundial dos neofascismo. 

As conspirações imperiais e lutas anti-imperialistas nada podem fazer a respeito dos destinos fundamentais do capitalismo, a não ser que as lutas contra o império se transformem, em algum momento, em lutas anticapitalistas, que busquem não apenas reformar o capitalismo ou mudar seus centros de poder, mas promover, de fato, alguma forma de transição emancipatória para fora do sistema.


01 outubro, 2020

“lâminas”, a poesia imprescindível de Dheyne de Souza

lâminas, o mais recente livro de poemas de Dheyne de Souza, foi lançado em junho pela Martelo Editorial, numa edição muito bem cuidada e com uma bela capa que faz juz aos poemas do livro. Trata-se do segundo livro impresso de Dheyne de Souza, cuja obra de estreia foi o ótimo Pequenos mundos caóticos, livro infelizmente muito mal divulgado. Além disso, a poeta tem outras publicações em formato de ebook, que ela disponibiliza gratuitamente para download em seu blog pessoal.

Além de apresentar o livro de Dheyne de Souza, este texto é a tentativa de abrir uma porta de entrada para a poesia da autora, para que o leitor possa, depois, construir suas próprias entradas e caminhos para explorar as várias possibilidades de sua obra poética, ao mesmo tempo densa e sutil, experimental e expressiva.
 
Uma corrente alternativa da poesia
 
De início, a poesia de Dheyne de Souza pode se apresentar como difícil, hermética, pouco afeita ao humor, à ironia, à discursividade e à fala coloquial, características que tanto marcaram a nossa tradição modernista e nos educaram como leitores de poesia pela pena de grandes poetas como Drummond, Bandeira, Mário e Oswald de Andrade, Cecília Meireles e Ferreira Gullar, entre outros. 
 
Dheyne de Souza se filia a uma outra tradição poética, alternativa a esta corrente principal e que passa pelo simbolismo, surrealismo (em sua vertente mais construtiva) e deságua numa linguagem que se costuma denominar como pós-moderna ou pós-modernista, feita de quebras sintáticas, sentidos obscuros e incompletos e metáforas violentas, cuja poesia é marcada pelo experimentalismo e polissemia exacerbados.

Sua filiação mais imediata é Manoel de Barros, com suas metáforas e construções poéticas inusitadas. Mas há diferenças significativas, pois a poesia do mato-grossense é alegre e marcada pela busca das origens, que se dá pela evocação e celebração da natureza (animal, vegetal e mineral) e dos restos inúteis da civilização, sejam eles coisas (objetos e espaços abandonados) ou pessoas (mendigos, bobinhos, aleijados etc). 

A criança e sua linguagem desajeitada de aprendiz, que descobre o mundo brincando com a língua, é o sustentáculo, tanto da linguagem experimental quanto da persona poética (eu lírico) de Manoel de Barros, marcada pelo lúdico e pela alegria da descoberta de um mundo inaugural, em fusão com a pré-subjetividade infantil, intrinsecamente poética e alternativa ao mundo urbano, cinza, pragmático e angustiante do homem moderno. Talvez, por conta de seu phatos celebratório e da exploração da linguagem lúdica da criança, Barros seja um poeta tão popular, apesar de seu experimentalismo.

Uma poesia feita com as sombras do agora

Experimentalismo que certamente foi uma das fontes de Dheyne de Souza, mas, ao contrário de Manoel de Barros, sua poesia não é celebrativa e nem fundada na linguagem e perspectiva da infância. Sua descoberta do mundo se dá pela persona de um adulto angustiado e não por uma regressão efusiva (e fusional) às origens da infância. Sua poesia se constrói não como fuga para a ancestralidade natural como em Manoel de Barros, mas como um mergulho sombrio (também fusional) na vivência urbana atual, fragmentada e agônica, como já anuncia o primeiro poema de lâminas:

quebrados de rua
bebidos de pressa
ladrilhos sem linha
(p. 9)

A sintaxe do primeiro verso remete às distorções sintáticas de Manoel de Barros e seus “erros” de regência, mas também às metáforas ferozes do surrealismo e ao hermetismo simbolista. Afinal a que sentidos podem nos levar a expressão “quebrados de rua”, que parece ser uma qualidade dos “ladrilhos sem linha”, que ainda são adjetivados como “bebidos de pressa”? 

O curto poema revela uma atenção meditativa da voz poética a elementos insignificantes e raramente percebidos da paisagem urbana, num procedimento comum à poesia moderna. O poema parece mergulhar no mundo mineral da rua, mais especificamente na estética não linear dos ladrilhos do que seria, talvez, uma rua pavimentada de paralelepípedos ou bloquetes desgastados, ou ainda uma velha calçada ladrilhada. Construída inadvertidamente pelo tráfego pesado que danifica o pavimento, a estética ruinosa da rua não pode ser fruída pelas pessoas, que bebem/usam os ladrilhos de forma apressada e meramente utilitária, sem tempo nem disposição para fruir sua beleza derruída e assimétrica. O que dá ao poema um tom de lamento e crítica em relação à vida pós-moderna, dedicada ao desempenho e à produtividade e que não permite às pessoas uma visão contemplativa, nem mesmo de seu próprio universo urbano.

Mas o poema nos possibilita ir mais longe em seus desdobramentos de sentido, pois a coletividade de ladrilhos desalinhados, além de se referir ao pavimento, pode muito bem ser uma metáfora que remete às pessoas: ladrilho-pessoa. Neste caso, o elemento humano passa do polo ativo, que usa/bebe apressadamente os ladrilhos, para a objetificação passiva, como peça a mais do pavimento das ruas, instrumentalizada para o funcionamento da cidade. A rua e a cidade, por sua vez, se tornam metáforas da própria coletividade urbana, anônima e utilitária (capitalista), cujo funcionamento consome (bebe) as pessoas de forma descuidada, restando, ao final, ladrilhos/pessoas alquebradas, exploradas. As ruínas da rua se tornam a expressão da ruína coletiva da sociedade do desempenho, um corpo coletivo fraturado e desalinhado, composto de vidas quebradiças, isoladas e destituídas de continuidade e sentido humano: ladrilhos sem linha.

O poema nos apresenta, portanto, duas esferas densas de sentido, em que o elemento humano oscila entre sujeito e objeto da instrumentalização que caracteriza a sociedade contemporânea, abrindo o livro com uma primeira lâmina de contemplação sombria, mas também de crítica afiada dos sujeitos e objetos da paisagem/engrenagem urbana.

Experimentalismo violento da linguagem

Além dessas duas esferas de sentido, o poema acima também pode ser lido ‘apenas’ como uma construção de imagens que cria, a partir das palavras ‘rua’ e ‘pressa’ , uma atmosfera urbana a ser re-vivida poeticamente. Esta, na verdade, seria a primeira interpretação deste e de muitos poemas de Dheyne de Souza, uma exímia construtora de imagens, como se pode observar no segundo poema do livro, em que o sofrimento íntimo se expressa como uma atmosfera tempestuosa, numa fusão, ao estilo surrealista, entre psique e paisagem:

coração nublado
abre as cortinas

essas veias
tempestam
(p. 11)

A poeta evita os conectivos de comparação e outros procedimentos prosaicos, truncando as frases e aproximando violentamente os elementos da subjetividade e da paisagem, provocando um choque entre o imaginário da intimidade e as imagens do clima. O impacto no leitor é, primeiramente, de estranhamento e, depois, de tentativa de reconstrução dessa colisão de imagens que expressam o dentro e o fora, tão inesperada quanto bela.

Esse truncamento do discurso, construído com procedimentos que evita ou “erra” os conectivos, insiste em quebras sintáticas, desvios de regência e metáforas inusitadas (“veias tempestam”), que às vezes recorre a neologismos (“tempestam”), enfim que força experimentalmente a linguagem e sua lógica a se dobrar às exigências expressivas, é uma constante na poesia de Dheyne de Souza e resulta em metáforas e imagens surpreendentes, que conduzem ao estranhamento e à expressão do inconsciente (individual e coletivo). 

Tais características poéticas que levam à expressão do inconsciente nos permite inserir Dheyne de Souza nessa tradição subterrânea da poesia ocidental, que passa pelo Simbolismo e, mais recentemente, pelo Surrealismo. Não o Surrealismo da ‘escrita automática’ e do ‘jorro verbal’ em que o poeta ‘possuído’ deixa fluir a linguagem inconsciente, mas sua vertente construtiva, que busca atingir a ‘lógica’ do inconsciente por meio da experimentação verbal, da construção laboriosa e concisa da linguagem poética.

Erotismo e amor num só movimento

O amor é um tema constante na poesia de Dheyne de Souza. A temática de seu primeiro livro impresso,  Pequenos mundos caóticos, se divide entre o topos do amor e, na falta de um nome melhor, um existencialismo fluido e fraturado, que busca exprimir as angústias da vivência pós-moderna ― não raro, amor e existencialismo se misturam inextricavelmente. Em lâminas, a poeta estende sua temática ao fora social, com poemas críticos e que tratam do sombrio momento histórico em que vivemos, mas sem deixar de tratar dos abismos interiores da existência e do amor.

Um dos pontos altos de lâminas é justamente um poema de amor, que é também erótico, ao mesmo tempo espiritual e corpóreo, cujo título já faz o papel de um primeiro verso:

no limbo do teu olho mora

uma noite vestida de páginas
que leio
e sopro
na umidade do teu corpo dorme
uma pálpebra que acorda
e treme
porque tua pele guarda
esculturas movediças
e meus poros são feitos de cílios
(p.33)

Neste poema, um pouco mais longo que os dois que acabamos de ler, podemos notar outra qualidade da poeta, além de sua habilidade em criar imagens belas e inusitadas (“noite vestida de páginas”, “esculturas movediças”,“poros feitos de cílios”), que é sua perícia sonora. O texto vai se tecendo por versos livres de delicada melodia, que oscilam entre sete e nove sílabas, entrecortados de forma irregular por três versos curtos de duas sílabas, tornando todo o poema uma espécie correspondência simbolista, em que ritmo sonoro do todo espelha o ritmo irregular da cena erótica, na qual os amantes se contemplam (“leio”) e se excitam (“sopro”, “treme”) no mesmo movimento.

Cabe ressaltar ainda que o poema é atravessado por uma aliteração em r presente em quase todos os verbos (mora, sopro, dorme, acorda, treme, guarda) e que ressoa em três substantivos fundamentais para o sentido do texto: corpo esculturas e poro. A aliteração estabelece uma continuidade entre os amantes (corpo e poro) e suas ações (verbos), o que reforça o sentido de fusão erótico-amorosa e a correspondência entre som e sentido. A poeta cria, assim, um efeito encantatório em que o encontro amoroso é reverberado tanto pelas imagens quanto pelos sons do poema. 

Esta fusão erótica entre os desejos da carne e do espírito vai se construindo à medida que o poema de desenvolve. O título e os dois primeiros versos evocam uma imagem espiritualizada da pessoa amada, com a alusão ao olho (espelho da alma) e ao outro como um livro a ser lido. O quarto verso, no entanto, complementa a contemplação espiritual com um sopro erótico, apesar do verbo soprar evocar também sopro criador de Deus do Gênesis ― em todo caso o sopro bíblico já é uma metáfora erótica da fecundação que dá vida.

Nos três versos seguintes ‘acontece’ o que parece ser a reação ao sopro: uma acordar trêmulo do outro. E o que acorda é uma pálpebra que dorme “na umidade do corpo”, ou seja os olhos, ou a alma, que repousa no corpo, ou ainda, o espírito que dorme na carne e desperta junto com esta, em reação ao sopro do desejo do outro. Note-se que não há, no poema, a oposição entre sujeito ativo e objeto passivo do amor, pois o corpo que acorda é também pálpebra, olhar. É, ao mesmo tempo, objeto do desejo que se deixa ler e soprar e sujeito desejante que lê. 

Assim como anula a oposição entre polos ativo e passivo, o poema transcende os limites entre corpo e alma, amor espiritual e carnal, consumado na bela imagem da “pálpebra/corpo que acorda e treme”. É a alma que deseja e se excita junto com o corpo, fusão entre amor e sexo que vai se consumar nos três últimos versos, em que a poeta introduz uma metáfora mais sensorial do corpo, que antes era um livro a ser lido e que passa agora a “esculturas movediças”, a ser visto e tocado ao mesmo tempo.

O verso final retorna a perspectiva do eu e consagra a fusão entre corpo e alma com uma imagem desconcertante: “meus poros são feitos de cílios”. O olhar dos corpos é táctil, é o toque e o deslizar da pele que olha, lê, contempla. Ao mesmo tempo, cada poro do do corpo é um olho (“cílio”) que vê o outro com a pele, pelo contato erótico dos corpos. Este verso de arremate ainda cria um efeito de multiplicidade na unidade da fusão amorosa: são miríades de poros-olhos se acariciando e contemplado no entrelaçamento entre os desejos sensorial e espiritual. Mais à frente veremos que o tópos da multiplicidade (do rizoma) é recorrente na poesia de Dheyne de Souza.

O poema não fala sobre a fusão amorosa. Antes, suas imagens inusitadas, seu discurso truncado, sua construção sonora e sua metáforas abruptas, ao invés de representar o amor erótico, quer apresentá-lo ao leitor. Mais ainda, parece haver uma ambição ultrarrealista no texto, para além ou aquém do universo da linguagem, que é a de recorrer às rupturas do discurso para presentificar ou re-presentificar o amor, na esperança de recuperar com a poesia - essa abstração feita de palavras - a vivência concreta dos afetos, das razões e das sensações presentes experiência amorosa. 

Transubstanciação entre vida e poema: ambição e fracasso

Utilizar os artifícios da poesia feita de palavras para reviver a poesia espontânea do momento é a ambição deste poema em particular, mas de toda a poesia de Dheyne de Souza. Uma ambição romântica, sem dúvida, que a poeta sabe destinada ao fracasso desde o início, mas que ela não cansa de buscar, lutando contra a linguagem discursiva e representativa em busca da vivência concreta, inatingível para a vivência abstrata da arte. 

Ora, mas esta não seria a ambição quase toda a poesia, a partir do Romantismo, inclusive de sua tradição mais discursiva dos mestres modernistas, como Drummond e Bandeira? Sim, mas a tradição subterrânea a que Dheyne de Souza se filia, que vai do Simbolismo ao Surrealismo, parece não aceitar a linguagem como mediação encantada, forçando-a a encarnar o encantamento e transformando-a, de fato, na vivência poética. 

A diferença entre estas poéticas talvez seja análoga ao conflito religioso entre os defensores da transubstanciação e os da consubstanciação. Para os primeiros, o pão e o vinho se transformam, de fato, no corpo e sangue de Cristo, enquanto os segundos se contentam com a união simbólica entre as matérias terrenas e o espírito divino. Certo Romantismo, continuado pelas vertentes simbolista e surrealista, quer transmutar a palavra poética na própria vivência poética, na poesia que se experimenta na vida, abolindo a distância entre vida e poema. Já a corrente majoritária do modernismo e da poesia ocidental ‘se contenta’ em encantar a palavra poética, rememorando ou evocando a poesia da vida com as palavras do poema. 

Esta diferença de procedimentos e finalidades não implica numa diferença qualitativa, pois há boa poesia em ambos os campos, mas deve servir de baliza para entendermos a radicalidade experimental de poetas como Dheyne de Souza, que não se contenta em encantar as palavras, mas luta para transubstanciar a linguagem em vivência concreta, mesmo sabendo do fracasso inevitável dessa tentativa em fazer palavra poética e vida vivida se transubstanciarem uma na outra. Consciência angustiada do fracasso que aflora em alguns poemas metalinguísticos de lâminas, como nos dois últimos versos de um deles: 

é feita de poros a língua
à míngua de tatos 
(p. 47)

A porosidade da língua-linguagem não está à altura, ou melhor, está sempre alta demais, abstrata demais para chegar à baixeza sensorial do tato, ao rés do chão da existência concreta. Um anticlímax final para um poema em que a autora começa afirmando peremptoriamente que sua poesia se confunde (se transubstancia) com uma cumulação extasiante de coisas, afetos e sensações da vida:

são feitos de versos livres meus buracos
são leitos de rasgos amargos, bordôs, quinas da alma quitada, 
                 [muito bem riscadas, rasuras ranhuras alturas vesgas 
são feitos de esquinas meus verbos 

O sentido do tato, talvez o mais concreto do ser humano, que faz o indivíduo se sentir como um corpo material em meio aos outros corpos e matérias do mundo, é uma constante na poesia de Dheyne de Souza, que pudemos observar neste poema e no analisado anteriormente ― o título do livro, lâminas, remete ao corte e, portanto, ao contato, à sensação do tato. Essa obsessão pelo táctil, pelo sensorial expressa o desejo de se chegar à realidade concreta do mundo, não apenas o real das coisas materiais, mas principalmente o real das sensações, afetos e vivências por que passam os corpos, individuais e coletivos. 

O fluir da vida, individual e social, é inapreensível pela linguagem. E a poesia de Dheyne de Souza deseja não apenas apreendê-lo e representá-lo, mas entrar nele e apresentá-lo, presentificá-lo. Por isso, sua filiação ao simbolismo e ao surrealismo, cuja linguagem truncada, aparentemente absurda, irreal e próxima do sonho e da loucura, é, na verdade, uma tentativa de agarrar com o correr da letra o fluxo caótico da existência, com suas indeterminações, sua vastidão inconsciente e sua multiplicidade desconcertante.  

Uma poesia do inconsciente

É claro que a poesia que deseja apresentar hiper-realisticamente (su-realisticamente) o fluir da existência fracassa irremediavelmente e, como vimos, a poeta tem consciência desse fracasso. A potência da poesia com tal ambição não está, portanto, em seu "sucesso imitativo", mas na sua capacidade de criar para o leitor um universo poético que possa interagir, não raro de forma áspera e conflituosa, com o fluxo sensorial, afetivo e intelectual da existência concreta de todos nós. 

Por outras palavras, a poesia de Dheyne de Souza se propõe a oferecer pontas, fios, nervuras ou línguas que possam se reconectar ou se religar com a existência concreta de onde essa poesia emergiu. A ambição ritual da religação religiosa (religare) está presente, sem dúvida, embora o sagrado não, pois se trata mais de uma religação mágica com as ‘energias’ e potências invisíveis, e nem sempre benéficas, do mundo do que uma religação com o divino. Continuando a comparação, a poeta não seria a sacerdotisa a cultuar o sagrado e sim a feiticeira que fazendo suas magias.

Esse mundo mágico e invisível em que a poesia da autora mergulha e com o qual tenta dialogar e mobilizar, como se o poema fosse um rito ou um canto feito de palavras mágicas, é normalmente conhecido, no Ocidente, como inconsciente. Dheyne de Souza é, portanto, uma poeta do inconsciente, das zonas sombrias da alma, não apenas individual, mas também coletiva. 

A construção de imagens inusitadas, presente em toda sua poesia, é uma forma de acessar e apresentar o inconsciente, locus onde tempos, espaços, coisas e vivências diversas se misturam caoticamente e cuja “gramática” é muito diferente da representação lógica da vida real e bem mais próxima da linguagem aparentemente absurda dos sonhos e do delírio.

O mergulho no inconsciente e a tentativa de apresentá-lo é uma constante na poesia de Dheyne de Souza, que tende ao intimismo dos movimentos “interiores” da alma ― as aspas aqui são fundamentais e mais à frente veremos porque. É interessante notar que sua poesia evita avisar o leitor sobre o “tema” do inconsciente, contornando a armadilha da tematização da matéria poética e, em consequência, de sua representação. Pois se trata exatamente de apresentar o inconsciente, de tentar se imiscuir nele, se religar a ele com a linguagem poética.

O inconsciente como multiplicidade

A multiplicidade é outra presença recorrente na poesia de Dheyne de Souza. Sua poesia é perpassada por imagens que remetem imediatamente a coletividades, como poro(s) e ladrilho(s) espinho(s) pétala(s), dente(s); pelo uso abundante do plural; e pela insistência no artigo indeterminado “um”. Todos esses procedimentos poéticos remetem à indeterminação e ao múltiplo, em oposição à determinação e à unidade.

O inconsciente, portanto, com o qual sua poesia procura se religar, não é uma unidade, mas uma multiplicidade a-centrada ou, para usar uma expressão de Deleuze e Guattari, um rizoma. Segundo esses filósofos, o rizoma não opera pela redução ao um, como seria uma árvore binária, mas sim pela adição infinita de mais um, num processo que impede a organização em torno de um centro (ser) que comandaria a estrutura do inconsciente. 

Um procedimento muito comum na poesia de Dheyne de Souza é a anáfora, que reforça a constituição rizomática de sua poesia, em busca da apreensão do inconsciente também rizomático. A tendência anafórica à repetição de termos, inícios de frases e mesmo a simples enumeração de imagens é tão recorrente em sua obra que pode-se dizer que faz parte de seu estilo, de sua voz poética: 

memória

memória, essa lâmina que não vem só com corte mas o cheiro 
                     [dos móveis o vapor do olhar a temperatura do dolo
as horas em torno

memória, esse som
que escava
regurgita
apodrece
o urro mais largo
o vazio da prece

memória, essa língua dentada
esse punho tombado
essa voz sem assento

memória
esse eco sozinho
esse tempo sombrio

a saudade de cada

memória,
esse espólio de guerra
(p. 77)
 
O poema começa com uma enumeração de cinco atributos da memória/lâmina (corte, cheiro dos móveis, vapor do olhar, temperatura do dolo, horas em torno) que evocam os afetos, o espaço e tempo que “vêm junto” com uma lembrança não referida a uma pessoa ou circunstância, nem situada cronologicamente. Essa indeterminação pode indicar que o poema se refere a uma memória entre outras ou à memória em geral, tornando-se uma espécie de poesia filosófica. 

O poema se constrói pela técnica da anáfora, com a repetição da palavra memória (cinco vezes) e do demonstrativo esse/a (oito vezes), além da segunda estrofe continuar o procedimento enumerativo dos dois versos iniciais. A enumeração e a anáfora tem, ambos, o efeito da acumulação dos atributos da memória, que por sua vez, se exprimem como uma sequência de imagens, muitas delas forjadas com metáforas violentas e inventivas que, como vimos, é uma característica da autora. É difícil não se surpreender com imagens como “vapor do olhar”, “temperatura do dolo”, “língua dentada”, “punho tombado”, “voz sem assento”.

Essas imagens surreais (ou simbolistas) remetem ao inconsciente. Portanto, uma leitura que se pode fazer deste poema é que se trata de uma tentativa de exprimir uma memória ou a memória em geral com um mergulho no inconsciente. A sequência de imagens inusitadas quer iluminar com a linguagem as formas e movimentos da memória nas zonas de sombras da inconsciência. Para ‘ver’ os abismos da mente, esta ‘luz da linguagem’ precisa ser a língua do sonho e do delírio, própria das metáforas violentas e imagens surreais.

E o recurso à anáfora e enumeração revela uma característica importante desse poema, mas também da obra da poeta. Ao recorrer a acumulação de imagens, a memória e o inconsciente não são ‘investigados’ ou ‘explorados’ de modo a se chegar a sua ‘essência’ ou ‘ser’. Pelo contrário, o que o texto faz é evitar a essência ou princípio geral, sempre acrescentando um atributo (imagem) a mais da memória que, antes de ser definida ou representada, é explorada por uma sucessão de imagens que a percorrem desde o inconsciente. 

Inconsciente que, menos que um teatro ou ser representado, remete a uma fábrica em produção, para usar uma outra imagem cara a Deleuze e Guattari. O que o poema faz, então, é se tornar também produtivo, uma fábrica de imagens que ‘funciona’ a partir e ao lado do inconsciente e da memória, estabelecendo com ambos uma relação de reciprocidade. A partir da ‘inspiração’ da memória (e do inconsciente) como rizoma, o poema se torna ele mesmo um rizoma que persegue, interage e apresenta (mais que representa) a sua temática. 

A sucessão de imagens do inconsciente, proporcionada pela anáfora e enumeração faz com que a poesia de Dheyne de Souza tenda à multiplicidade, irredutível a centros e unidades. Ao proceder assim, a linguagem poética, o real e a relação entre ambos se transforma. A poesia se torna ela mesma um rizoma, assim como a realidade, e a relação entre eles deixa de ser a representação e passa a ser uma interação entre duas cadeias de multiplicidades, uma poética e outra cultural (real).

Este procedimento rizomático da poesia da autora têm algumas consequências. Uma delas é a impossibilidade de delimitação clara entre sujeito e objeto, dentro e fora. Mais acima, afirmamos que Dheyne de Souza é uma poeta intimista, e que sua poesia tende a mergulhar nos abismos do inconsciente. Mas este, ao ser explorado como rizoma, dificilmente pode ser considerado um ‘interior psíquico’ do sujeito, em oposição ao qual a sociedade e suas relações seriam um ‘fora social’. 

Embora sua poesia remeta aos mergulhos no inconsciente, sua estética da multiplicidade torna problemático definir a autora como poeta da subjetividade, por exemplo, pois quando achamos que estamos dentro do sujeito, já somos remetidos ao fora do inconsciente social.

Mesmo sua poesia amorosa ou erótica, pródiga em imagens da fusão e da indeterminação entre os corpos e subjetividades, menos que evocar a unidade da união amorosa, insiste na exploração da multiplicidade. Ou melhor, trata-se de uma fusão de multiplicidades, num encontro rizomático que envolve os dois corpos e sua situação existencial no mundo. 
 
Há sempre uma variedade de mundos, uma acumulação de imagens e cenas mundanas a se suceder na lírica amorosa da autora, transformando a união amorosa numa colisão de multiplicidades, como no choque entre duas galáxias que, ao invés de reduzir o duplo ao um, potencializa (para o bem e para o mal, o prazer e a dor, a alegria e a angústia) a multiplicidade de ambos os corpos, inseridos na multiplicidade ainda mais ampla do mundo.

Uma poeta que precisa ser lida

Nos dias de hoje, quase não se lê literatura, menos ainda poesia. E ainda menos uma poeta como Dheyne de Souza, autora introspectiva, pouco afeita à vida literária e seus círculos de autopromoção. Além dessas dificuldades externas ao texto, sua poesia, ao mesmo tempo experimental e densa de sentido, pode parecer difícil ao leitor desavisado. Mas, na verdade, sua escrita não é difícil nem hermética e seu experimentalismo não visa a novidade formal em si mesma. 

A convivência com sua poesia nos descortina um universo poético em que o aparente hermetismo se revela como construções de percepções alternativas do mundo, tão belas quanto ricas. E seu experimentalismo poético não são “firulas formais” que se esgotam em si mesmas, mas procedimentos de linguagem necessários à expressão desta outra percepção de mundo. Enfim, depois que conseguimos abrir uma porta de entrada para esse novo mundo poético-perceptivo da autora, sua poesia se torna comunicativa, fluente e prazerosa, mesmo em seus (muitos) momentos de angústia.

Haveria mais a dizer sobre lâminas, como a inflexão que Dheyne de Souza faz à crítica social, que não estava presente, pelo menos de forma explícita, em seus trabalhos anteriores; e sobre seus poemas em prosa muito peculiares e originais.  

Mas espero ter aberto ao leitor algumas entradas para a sua poesia que, em minha opinião, tem muito a nos dizer. Sobre nós e nosso tempo.

O engenheiro onírico

Quando eu era menino, adorava brincar de carrinho.  Então, construía estradas, pontes, estacionamentos, postos,  calçadas e ruas, tudo muito...