A fazenda de trevas

ou: O abismo de Narciso

A exigência de ser amado é a maior das pretensões (Nietzsche) 

Ah, se uma rês pastou em sua fazenda, gostou do pasto e depois se afasta! Mesmo que não deixe de amá-lo, a simples diminuição do amor (ele faz contas com o amor) ou o interesse por outras pastagens lhe é insuportável. Enquanto está entre as suas cercas, pastando em seus campos, a rês vale muito pouco para ele. Mas se ela ousa fugir para experimentar novas pastagens, é como se tornasse um Deus ou Demônio muito maior que ele, que se carcome por dentro. De ciúme. De inveja da rês alada que é feliz sem o seu pasto. De inveja dos outros fazendeiros e de seus pastos fartos. De raiva de si mesmo e da pouca sustância de seu pasto magro. 

A rês é terrível: não lhe gosta, como pode pastar feliz longe de suas terras? Uma rês mal agradecida, malvada. Ele quer que ela se sinta infeliz longe de sua fazenda e volte ao cativeiro, ele quer a tristeza do que lhe escapou às mãos. E a rês, mesmo longe, lhe quer bem, ainda lhe tem amor no olhar, um amor além da posse. Que ódio! A rês é virtuosa, é melhor que ele, que se sente impotente e raivoso. Que inveja da bondade da rês, ela fere, uma ferida que cresce e aprofunda, uma ferida antiga que estava oculta e se mostra em carne viva: a carne podre de sua alma escura. Que ódio de sua alma que não consegue ser tudo para a rês, que não consegue ser algo para alguém, nada para ninguém. 

Ele se sente horrível se não lhe gostam. Precisa que gostem dele em seu lugar, pois é incapaz de gostar, inclusive de si mesmo. Precisa de um rebanho que lhe siga os passos e as ordens. Um rebanho submisso de mil cabeças infelizes no seu pasto miserável, para fazê-lo um fazendeiro rico e orgulhoso. Há um medo terrível da fuga, que uma rês escape de seu pasto. Em sua fazenda, os serviçais vigiam sem parar as suas reses: os peões da Posse, da Raiva, do Ciúme, da Vingança, da Vaidade e da Inveja. E o Capataz do Medo, o medo de perder as reses. O Capataz que a tudo controla, que quer regular o fluxo da vida, manipulando o pasto, a ração e o caminho das reses, que vigia os lobos que rondam a fazenda e dá ordens aos peões sombrios. O Capataz é seu servo mais assíduo e fiel. Com o Capataz zeloso vigiando suas posses, ele pode dormir em paz, contando seu rebanho e acumulando o lucro da ordenha diária do amor, da sangria de amor que ele guarda em seus tanques imensos, insaciáveis. 

Mas ele está ficando cego. Não vê que se fazendo de servo, o Capataz se torna o seu senhor. Não vê como sua fazenda está ressequida e triste, sem pássaros nem frutas, sem chuva, sem árvores: apenas um pasto imenso e ralo, e seu rebanho infeliz. Ele mesmo não vê o quanto é triste, se arrastando sozinho em sua casa grande e ruinosa. Ele é o silêncio que se move no silêncio, o vazio que se abisma no vazio, as ruínas que deslisam nas ruínas, o escuro dentro do escuro da casa sombria. Ele está cego e surdo, doente, quase não se move, absorto em sua catatonia, em seu medo de perder uma rês que seja, uma gota que seja do leite do amor que ele sangra das reses. O leite que ele pensa beber todas as manhãs, mas que há muito não lhe molha a boca ressequida. Ele está morrendo em vida, a pior morte que existe. 

Enquanto morre, ele pergunta a seus peões por uma rês fugida e se contorce de ódio pela perda, ódio da rês que não quer mais o seu pasto, ódio de si mesmo que a deixou escapar... E as reses fugindo mais e mais de sua triste e ressequida fazenda, e seu ódio aumentando, e sua vida murchando, e a morte crescendo nos porões da casa, planta negra cultivada pelos peões sombrios. A morte tomando a casa inteira e ele fazendo as contas das reses fugidas, das reses que restam, do leite do amor que começa a faltar, de que ele nunca se fartou, que sempre lhe faltou, embora abundante... E o Capataz do Medo rindo dessa canção tão triste.

 

De repente 

Não há casa nem curral 

Não há rebanho nem cercas 

Nem leite nem riquezas 

Nem fazenda ou fazendeiro 

Não há nada 

Nunca houve nada, nunca! 

Apenas seus olhos sombrios 

De menino assustado 

Sonhando latifúndios no asfalto 

Seus olhos tristes de boi apartado 

 

Ele é um boi 

Sobre os campos de cimento e vidro 

E pedra e plástico e cavalos de metal 

O Capataz e seus peões tangem com violência 

Um rebanho cheio de peste e feridas 

E o rebanho era ele 

 

Ele é um boi 

E a morte cresce nos porões da casa imensa 

De cômodos mobiliados com o Medo 

O Ódio, a Vingança, o Ciúme, a Inveja 

Móveis carcomidos de si mesmos 

Tão antigos quanto a casa 

E a casa era ele 

Ruindo ainda em vida 

Com as suas fantasias 

De boi só 

 

Ele é um boi 

Um boi magro e marcado 

A ferro e fogo e ferido 

Pelo chicote e os ferrões 

Do Capataz e dos peões 

Senhores de fato 

De suas terras desertas 

Senhores que cruzam num galope louco 

Os campos de sua alma de um confim ao outro 

Sua alma de abismos: fazenda de trevas 

Prenhes de mágoa e medo 

E delírios negros 

 

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