Não culpe os economistas pela bagunça

Da série capitalismo em agonia

Este texto é um comentário ao artigo “Culpe os economistas pela bagunça” de Binyamin Appelbaum, publicado recentemente no GGN.

O artigo de Binyamin Appelbaum ilustra um erro clássico de julgamento, baseado no sucesso distributivo provisório dos anos dourados do capitalismo, que duraram de 1945 a 1975, quando os países do Primeiro Mundo conseguiram colocar 2/3 da população na classe média e proporcionar uma pobreza "digna" para o terço restante.

Para o autor, a culpa pelo fim deste sucesso foi um erro político dos governos, somado à ganância das corporações, principalmente da banca, que promoveram a ideia dos economistas (neoliberais principalmente) em favor do crescimento dos lucros a qualquer custo.

Mas em meados da década de 70 realmente havia uma crise de lucratividade em todo mundo ocidental, cuja expressão foi uma estagflação prolongada. Ora, sem lucratividade, o capitalismo não é capitalismo. O que os economistas neoliberais sugeriram foi apenas uma maneira do sistema continuar lucrativo, ou seja, do capital continuar se reproduzindo: mais exploração do trabalho, menos impostos sobre as corporações e os ricos e mais financeirização, para permitir que o capital se reproduza fora fora dos limites da produção real, cujo lucro estava minguando - o que acontece até hoje.

E funcionou! O neoliberalismo financista e globalizante salvou o capitalismo do colapso a que ele seria levado pela falta de lucratividade. Foi às custas da distribuição de renda e do empobrecimento da maior parte da população? Sim, mas quem disse que esse é o objetivo principal do capitalismo? As pessoas, neste sistema, são apenas meios para a reprodução do capital: não há nada mais coerente com a lógica capitalista do que um economista liberal, que não vacila nem mesmo em precificar a vida humana.

Como os mercados são criados e geridos por pessoas, tanto no governo quanto na iniciativa privada, Appelbaum acredita que elas possam fazer com que o capitalismo seja direcionado para beneficiar o povo, via distribuição de renda e políticas públicas. Para ele é possível, mediante decisões políticas, utilizar o enorme potencial do capitalismo de produzir riqueza material em favor do bem estar da maioria da população.

Esta é uma visão comum entre (neo)keynesianos e progressistas em geral, que ignora o fato (teorizado por Marx e demonstrado pela história) que o capital, uma vez posto em movimento, não pode ser controlado, freado ou domesticado pela política, em desfavor de sua acumulação e a favor da vida das pessoas. Apenas pontualmente e de forma provisória, a política consegue conter as tendências espontâneas do capital, como a de concentração de renda e riqueza e a de instrumentalização das pessoas para sua reprodução. Ao fim e ao cabo, o capital é que acaba por se servir (instrumentalizar) da vida humana, da técnica e da natureza para sua própria reprodução, que é seu único objetivo.

Mesmo as elites, que sem dúvida se beneficiam deste processo, são instrumentos do capital. Apenas se encontram no topo da cadeia predatória que o capitalismo instaura na sociedade como se fosse uma segunda natureza. Pobre do banqueiro, industrial ou CEO que comece a contrariar as exigências da acumulação e queira repartir os lucros corporativos com seus “colaboradores” ou com a comunidade, ou insista em pagar diligentemente os seus impostos, sem o recurso a paraísos fiscais. A “seleção natural” do mercado o esmagaria em instantes, dando lugar a outros profissionais mais “adaptados” ao meio ambiente hostil da concorrência e da acumulação capitalista.

O “milagre” da humanização do capital que ocorreu no pós-guerra só aconteceu por conta de circunstâncias impossíveis de se repetir:

1. O medo da expansão comunista, que forçou políticos e elite econômica a fazer concessões improváveis ao trabalho;

2. A enorme expansão do capital industrial das economias centrais, que possibilitou um crescimento exponencial do PIB dos países de Primeiro Mundo, sem a qual não seria possível financiar o estado do bem-estar social, fazendo frente à ameaça comunista.

E, por sua vez, este enorme crescimento do pós-guerra foi possível porque:

1. As duas guerra mundiais proporcionaram uma inédita queima de capital nos países centrais, abrindo o terreno para um novo ciclo de expansão capitalista;

2. Havia um imenso mercado mundial no terceiro mundo para a exportação de produtos industriais ou instalação de multinacionais que remetiam lucros às suas matrizes;

3. E por conta do dinamismo excepcional da indústria armamentista, mobilizada pela guerra fria com a URSS.

Destas três condições, apenas a última subsiste, pois a produção de armas continua forte como nunca, mesmo depois da dissolução do mundo socialista. A partir da década de 1970 os lucros industriais começam a cair e, com ele, os de toda a chamada economia real. Isto devido à terceira revolução industrial, que introduz a informática e microeletrônica no chão da fábrica, substituindo trabalho humano por máquinas inteligentes.

Como Marx previra, uma hora este processo de automação iria levar o capitalismo ao colapso, vítima de seu próprio sucesso produtivo. A decadência começou em meados de 70 e tende a se aprofundar com a indústria 4.0, ainda mais poupadora de trabalho humano, e não só na indústria, mas também no setor terciário, que tem sido a válvula de escape empregatícia para os trabalhadores expulsos das fábricas.

Sem lucros crescentes, a economia real não podia mais financiar o relativo igualitarismo do estado do bem-estar social e, depois do fim do regime soviético, não havia mais a necessidade de se enfrentar a ameaça da ideologia socialista se espalhar entre o povo. Então, os economistas neoliberais intuíram acertadamente que, para o sistema continuar lucrando, era necessário aprofundar a globalização e a concorrência entre capitais privados mundiais, aumentar a exploração do trabalho e principalmente financeirizar a economia, já que a produção real produzia cada vez menos lucros.

E decidiram, também acertadamente (para a lógica do capital, é claro), que já era o momento de parar de financiar o estado do bem-estar social, cujas políticas públicas universalistas eram uma desnecessária absorção improdutiva de capital. Somente a defesa, a justiça, a polícia, a fazenda, o BC, a infraestrutura e talvez um sistema educacional de qualidade deveriam ser públicos: a mínima estrutura estatal necessária ao funcionamento dos mercados. Os gastos sociais deveriam limitados ao mínimo possível, apenas para manter, junto com a repressão policial, a paz social e evitar a revolta da crescente massa de perdedores que são os pobres.

Portanto, as decisões políticas da década de 1970 e 1980, que configuraram o neoliberalismo que ainda governa o mundo, não foram erradas, do ponto de vista do capital. Aliás, foram a única alternativa para manter o sistema funcionando ou, por outra, palavras, para o capital continuar seu processo de reprodução infinita. Os economistas neoliberais foram os vencedores neste processo porque se adaptaram melhor à “seleção natural” capitalista, que premia os grupos e pessoas que conseguem fazer o capital se reproduzir com mais quantidade e velocidade.

A prevalência dos economistas neoliberais não foi fruto, portanto, de erros político e éticos da classe política, em combinação com a ganância da banca e das corporações multinacionais. É claro que esse pessoal da elite tem pouca ética e muita ambição, mas o neoliberalismo financista não é resultado de um plano orquestrado por pessoas poderosas com maus instintos humanos. Ele só vingou por ser a única alternativa que poderia manter o sistema capitalista vivo, depois das crises de lucratividade da economia real na década de 1970.

Binyamin Appelbaum, como quase todos as pessoas “de esquerda” ou progressistas, se ilude ao achar que basta uma decisão política das massas e das elites (um novo pacto social-democrata?) para o capitalismo voltar aos trilhos e servir ao bem estar das pessoas. Este nunca foi o trilho do sistema capitalista e os trinta anos gloriosos foram uma exceção histórica que dificilmente se repetirá. O trilho normal do capitalismo é o que ele percorreu, de seu nascimento no século XVIII até 1945, e da década de 1980 até agora, que consiste na instrumentalização das pessoas, sociedade e natureza para seu único objetivo, que é a reprodução do capital.

O capital é uma criação do ser humano, mas, a partir do momento em que ele é posto em movimento, ele se torna autônomo e as pessoas passam a ser apenas um instrumento de sua reprodução e pouco podem fazer para deter ou controlar sua lógica desumanizadora e excludente. Mais uma vez, Marx teorizou sobre isto e a história tem provado que ele está certo. A única forma de deter o capitalismo é através de uma revolução antropológica, abolindo o capital e sua cultura de instrumentalização do humano, reinventando uma nova sociedade que não seja mais fundada no valor, na mercadoria e no trabalho, suas categorias básicas.

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