Aquele corpo

Double Secret - Rene Magritte

as mentiras da arte são tantas... são plantas artificiais
artifícios que usamos para sermos (ou parecermos) mais reais
         H. Gessinger

Um poeta se alimenta de outros poetas, de alguma filosofia, alguma notícia e alguma fábula. Mas há também a amada e os amigos. Amigos doutos e outros nem tanto, pois erudição e intelecto demais cansam a alma rude do poeta. Não que ele seja prático da vida. Mas também não é um teórico da letra. O poeta é um homem de ação da palavra, com pouca paciência para sua ciência ou contemplação. Ele luta no mundo das palavras. Mas está na vida também, pois tem corpo, casa, trabalho e vai ao supermercado. O poeta toma café, cria filhos, cuida do cachorro e conversa amenidades com vizinhos, parentes e conhecidos. Mas seria demais dizer que ele vive ou sabe viver, que tem profissão (além de seu ofício obscuro de cantar palavras mudas), que é virtuoso, íntegro, generoso – aliás,  não seria surpresa flagrarmos no poeta um ente despedaçado, vaidoso e de caráter duvidoso. Fiquemos então com a primeira impressão: ele está na vida. Já basta para que um homem se perca e não se reencontre jamais – condição imprescindível para que haja, naquele corpo, um poeta.

Estar na vida é ficar fora do mundo, olhando nuvens deitado na rede da varanda, defronte o jardim, sem esperar nada, nem mesmo um poema. Às vezes não há esta paisagem, mas apenas uma cidade infernal e ruidosa se debatendo além da janela, mas não importa, qualquer paisagem serve, mesmo a de um quarto escuro e solitário – se o poeta não vê nuvens, ele dará um jeito de sonhá-las.  Olhar nuvens na rede da varanda... Coisa de preguiçosos. Mas um preguiçoso é muito mais sábio que o poeta, que se gasta em converter seu ócio no trabalho inútil e sem sentido das palavras – esses riscos fugidios que se agarram à página sem nos dizer (quase) nada. Isto quando o poema vem. E uma hora ele vem, para o desespero do poeta que é impelido a grafá-lo na aridez da página. Os poemas escravizam o poeta de tal forma que podemos dizer que ele fez um pacto fáustico com algum demônio: a vida vivida em troca da vida de fachada dos poemas. Só que, ao contrário do Fausto, o poeta não sabe do trato, ou sabe e finge não ver –  o lusco-fusco é um Deus dos poetas. Só que, ao contrário do Fausto, um poeta não vende a alma à prazo, mas à vista – a vida se perde no seu agora. Ou talvez os motivos nem sejam tão dramáticos e literários assim, e seus poemas sejam apenas a fuga e o despedaçamento de um ente que desde sempre nunca soube viver. Em todo caso, a escravidão das palavras é outra condição necessária para que haja, naquele corpo, um poeta.

O poeta vende a vida à vista. A vida escorre por entre seus dedos como água ou areia, enquanto ele a fixa (ou tenta fixá-la) na fluidez da página em busca da eternidade e da consagração, mesmo sabendo que o tempo não perdoa nem as galáxias e que a fama é o ouro de tolo dos vaidosos. No fundo, ele sabe que seu trabalho apenas transforma um fluir em outro: a fluidez da vida no correr da letra. Então, por que este trabalho vão, se ele poderia simplesmente se entregar ao fluir da vida? Não haveria, ali, um poeta, mas seria a alegria do corpo – e da alma. Mas o poeta não é sábio a ponto de tal simplicidade. Se tiver muita sorte, talvez seus poemas guardem alguma sabedoria, a que ele não tem em vida. Sua vida, ao contrário, é uma cumulação de erros, desnorteios e enganos, é o cúmulo da insensatez. Em todo caso, um poeta precisa da vida (amada, amigos, pais, filhos, parentes, conhecidos, bichos, plantas, planeta, casa e rua, cidade e solidão, dias e noites, nascimentos e mortes, o fluir inesgotável da vida) mais do que precisa das palavras que o escravizam. E ele afirmaria sem pestanejar, e sem errar, que a vida é o principal alimento de sua poesia, embora de um poeta não se possa dizer que viva ou saiba viver. Fiquemos ainda com a primeira impressão: ele está na vida, e basta para que precise dela. Precisar da vida mais do que tudo, apesar de não saber vivê-la, é também uma condição para que haja, naquele corpo, um poeta.

O homem que suja a página de poemas se faz então por paradoxos e aporias, pelo descompasso consigo mesmo e com o mundo, pelo excesso de disfarces e pela falta de integridade, senso e sabedoria. Não se louvará nele a virtude e se lamentará sua desorientação geral diante da vida. É um homem atravessado por falhas e acidentes de um rincão ao outro de sua inquieta geografia. Condição para que haja, naquele corpo, um poeta.

Poema do e-book Acerto de contas

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