O Capital, esse Deus

Da série "Capitalismo em agonia"

A natureza do deus: categorias abstratas do capitalismo

O capital, na acepção marxista, é o valor que se valoriza. E valor, para Marx, é uma grandeza abstrata, puramente quantitativa, definida pela quantidade de horas de trabalho humano necessárias para se produzir uma mercadoria. O valor, categoria fundamental do capitalismo, faz parte de sua estrutura profunda e é representado, na superfície, pelo dinheiro.

Quando o dinheiro é acumulado por meio do lucro, o que se acumula, portanto, é valor/trabalho, ou seja, horas de trabalho humano gastas na produção de mercadorias que são vendidas no mercado. Na sociedade capitalista, onde o trabalho humano é uma mercadoria comprada pelos capitalistas para se produzir mercadorias que, por sua vez se tornam capital, o valor é também uma relação social, a mais fundamental de nossa sociedade. É por meio da venda de seu trabalho que a imensa maioria das pessoas sobrevive no capitalismo, que abole a dependência direta entre sujeitos, como acontecia na Idade Média, quando a relação servil era uma dominação direta e concreta, exercida pelo senhor feudal sobre o servo.

No capitalismo há uma relação de dominação dos capitalistas (ou da elite)  sobre os trabalhadores (povo), mas este domínio é mediado objetiva e obrigatoriamente pelas categorias abstratas (mas reais) do capitalismo, que são o trabalho abstrato, a mercadoria e o valor. Em última instância, mesmo os capitalistas devem se submeter a estas categorias abstratas, sob a pena de vergar diante da concorrência.

Na sociedade capitalista, portanto, embora haja claramente uma exploração do povo exercida pela elite, pode-se dizer que ambos são coagidos pelas leis impostas pelas categorias abstratas do capital. E mais, esta dominação do capital sobre as pessoas em geral (capitalistas e trabalhadores) é principal, sendo mais decisiva, em termos de constituição do capitalismo como sistema social, que a exploração que os capitalistas exercem sobre os trabalhadores. Daí a conclusão que a dominação que define o capitalismo é abstrata e impessoal, exercida do capital sobre as pessoas e não a dominação de uma classe sobre outra, que embora exista, é secundária.

Onisciência do capital

O capital tem como substância uma relação social, o trabalho abstrato, e se configura como uma grandeza quantitativa, o valor, hora de trabalho necessária para a produção de uma unidade de mercadoria. Trata-se, portanto, de uma grandeza abstrata e impessoal, mas que se faz presente em cada ato humano na sociedade capitalista, inclusive os que aparentemente nada tem a ver com o capitalismo, como por exemplo, os que envolvem afetos, como o amor, as relações familiares, a amizade etc.

Os afetos existem em condições de classe social, que são definidas pela distribuição do capital entre classes e estamentos sociais. As famílias necessitam ser mantidas financeiramente, o que implica em ganhar dinheiro, ou como trabalhador ou como capitalista. Pode-se dizer, portanto que o capital é onisciente e permeia todas as relações sociais.

Onipotência do capital

Mas o capital também coage todos os grupos sociais e indivíduos a se comportarem de acordo com suas leis. Numa sociedade capitalista, a única maneira de sobreviver é ganhando dinheiro, ou vendendo seu trabalho como mercadoria, ou se tornando capitalista (mesmo que individualmente, o tão louvado empreendedor individual). Por outras palavras, os indivíduos devem se submeter às leis do valor caso queiram sobreviver. É por isto que Marx dizia que o verdadeiro sujeito, que trabalha pelas costas do sujeito moderno, supostamente dotado de livre-arbítrio, é o capital que, em última instância define suas ações e até sua visão de mundo e afetividade, que devem se adequar às exigências da produção do valor.

O capital, portanto, para se reproduzir, submete as pessoas às suas coerções abstratas: no capitalismo é a vida humana que serve ao dinheiro e não o contrário como faz crer as ilusões liberais. O capital se torna uma segunda natureza e, tal como a lei da gravidade, coage, de forma impessoal, todos os indivíduos e grupos a se comportarem e, mais que isso, a se constituírem como sujeitos de acordo com suas coerções. Daí se poder dizer que o capital, além de onisciente, é também onipotente.

Por ter características de onisciência (estar em toda o campo social) e onipotência (determinar as ações dos sujeitos), o capital se equipara a um deus. Não sem razão, Robert Kurz, costumava afirmar que o capital é a metafísica tornada terrena. Na mesma direção Moiche Postone dizia que o capitalismo seria o único sistema social no qual o ser (capital) se realizaria de fato.

A objetividade do capital

Como os outros deuses, o capital é uma criação dos homens mas, ao contrário deles, sua manifestação não é apenas subjetiva e intersubjetiva. Sobre o Deus cristão, por exemplo, não há qualquer evidência de que sua “ação” e suas “leis” se manifestem objetivamente, independente da vontade minimamente consciente dos cristãos e suas instituições. Por mais que o cristianismo estruture uma certa mentalidade do “homem” ocidental, o Cristo e suas coerções dependem de um contínuo esforço de vontade para “agir”, por meio dos braços e vozes humanos, sobre o conjunto da sociedade.

O Cristo e todos os outros deuses que os humanos inventaram encontram-se de fato desencarnados e fora do mundo, necessitando ser invocados e celebrados para se manifestarem. Neste aspecto, o capital é um “deus” de natureza completamente diferente, pois uma vez que ele se instaura numa sociedade, suas coerções não dependem de invocações ou ações conscientes para se fazerem valer.

No capitalismo, as leis do trabalho abstrato, da mercadoria e do valor se impõe como uma segunda natureza, como coerção objetiva sobre os indivíduos. Não são necessário atos de fé, invocações, punições ou ações conscientes em nome do deus capital, cujas leis se fazem valer quase que com a objetividade das leis da física: o capitalista que se mostrar solidário em detrimento da eficiência de seus funcionários fatalmente irá a falência; o trabalhador que não arrumar serviço cairá no abismo da miséria ou da esmola social do estado etc.

A impessoalidade se sobrepõe ao arbítrio

Esta característica objetiva e impessoal do capital tem duas importantes consequências. A primeira é que ela estreita a margem de arbitrariedade na ação de indivíduos e grupos sociais. Ao contrário de todas as outras sociedades, a objetividade impessoal do capital, torna o seu domínio sobre as pessoas e grupos sociais mais importante do que o domínio de um grupo sobre o outro.

A exploração que os capitalistas exercem sobre os trabalhadores, por exemplo, é real e massacrante, mas a margem de manobra (ou o poder de arbítrio) da elite é muito menor do que o dos nobres sobre os servos, por exemplo. O servo e o peão estavam a mercê dos caprichos pessoais do senhor feudal ou do coronel muito mais que o trabalhador está a mercê do capitalista. Na verdade, tanto o cálculo frio deste último, quanto o sofrimento do operário são submetidos, não ao capricho, mas às leis impessoais do capital - das quais as leis do direito são um derivado auxiliar.

O capitalismo como um sistema previsível

A segunda consequência da objetividade impessoal do capital, que deriva também do fato de que o valor é uma grandeza abstrata e quantitativa, é que o sistema capitalista tem o que os marxistas chamam de tendências espontâneas. Por outras palavras, uma vez que se descobre as leis sistêmicas do capital, é possível prever com relativa segurança o comportamento do sistema capitalista, como, por exemplo:
- a contínua centralização e concentração do capital, e a consequente exclusão social de imensas massas populacionais;
- a queda tendencial da taxa de lucro;
- o explosivo desenvolvimento da ciência e da técnica, a serviço da reprodução do capital (lucro);
-  o investimento crescente em máquinas para substituir o trabalho humano;
- o aumento da produção pela produção, sem a correspondente necessidade humana dos bens produzidos;
- a mercantilização progressiva de todas as esferas da vida;
- a volúpia expansiva do capital a todos os povos e lugares, formando um único mercado mundial (expansão facilitada pela superioridade militar ocidental, decorrente do desenvolvimento técnico);
- a subsunção de todas as instituições sociais ao capital, principalmente o estado, cujo poder político é posto a serviço das coerções capitalistas;
- a geração de crises cíclicas cada vez mais graves, decorrentes das contradições inerentes ao capital;

Todas as tendências espontâneas acima são empiricamente verificáveis ao longo de 250 anos de capitalismo e foram enunciadas por Karl Marx, quando o capitalismo ainda estava na infância, pois mal acabara de se instaurar por completo em alguns países da Europa, como Inglaterra, França e Alemanha. Estas previsões acertadas não são decorrentes de algum poder de vidência de Marx, mas do fato de ele ter se apercebido do caráter objetivo, impessoal, abstrato e quantitativo do capital, formando um sistema móvel, mas direcional e efetivamente centrado em categorias básicas (valor de troca, mercadoria, trabalho abstrato) que não mudam, embora as mudanças que o capitalismo provocou e provoca nas esferas subjetiva, social e natural sejam exponencialmente mais rápidas e maiores que os sistemas sociais não capitalistas anteriores.

O capitalismo como uma estrutura centrada (reino de deus)

Em “Tempo, trabalho e dominação abstrata” Moiche Postone mostra como o capitalismo permanece imutável em seu tempo abstrato, que é o de suas categorias básicas, enquanto acelera o tempo histórico de maneira jamais vista na história humana. Tudo muda ou “tudo o que é sólido se desmancha no ar” apenas para que a riqueza abstrata, o valor (que não é sólido mas é real), permaneça no centro do sistema, imutável enquanto faz a roda da história girar.

O capitalismo torna realidade as imaginações e desejos metafísicos de Parmênides, Platão, do Judaísmo e do Cristianismo, ao estabelecer na terra um reino efetivamente centrado, cujo núcleo (ser) não se altera e, além disso, comanda o desenvolvimento da superfície. A estrutura tão procurada pelos estruturalistas franceses e o ser obsessivamente perseguido por Hegel estavam diante de seus olhos: era, e ainda é, o capital, a própria metafísica encarnada no mundo dos homens.

O capitalismo é o único sistema social, ou melhor, a única cultura que, de fato, perfaz uma estrutura, uma totalidade plenamente realizada e una (por meio do valor) em suas variedades sociais e variações históricas. Uma totalidade objetiva, cujas leis independem da vontade das pessoas e que possui um destino, pois caminha inabalavelmente numa direção específica de realização do capital como ser total.

No entanto, há três considerações a se fazer a respeito do “deus” capital. Em primeiro lugar, ao contrário do Ser hegeliano, a realização plena do capital significa um desastre para a sociedade humana, pois à medida que ele se realiza, massas enormes de pessoas são excluídas do sistema e jogadas na miséria. Em segundo lugar, ao contrário do Deus cristão e do Ser hegeliano, o capital, embora onisciente e onipotente, é absolutamente cego, ou melhor, inconsciente. Aliás, o capital sofre de uma dupla inconsciência: ele não tem consciência de si nem de nada; e as pessoas, em sua esmagadora maioria, não têm consciência de sua onisciência e onipotência, em suma, de sua existência como “deus”. Em sua inconsciência e indiferença para com o humano, o capital se assemelha muito mais ao impassível deus de Spinoza do que ao deus judaico-cristão ou ao ser hegeliano.

Em terceiro lugar, o deus capital, embora dotado de uma objetividade e realidade terrena que os demais deuses não têm, não se trata de um ser transhistórico e muito menos é dotado uma objetividade absoluta, pois não existe independente da esfera social em que atua. O capital é uma criação humana da época moderna: nenhum povo sequer esboçou algo parecido antes de seu surgimento e nem os antropólogos encontraram qualquer cultura contemporânea ao Ocidente moderno, cuja estrutura social se baseasse em algo semelhante ao valor. O ser do capital, embora tenha características e a potência do deus (o primeiro que efetivamente se manifesta no mundo terreno), é uma divindade manca, pois não está fora da história ou das culturas, mas se encontra enraizado e delimitado pela modernidade ocidental dos últimos 250 anos.

Sujeito moderno: o deus encarnado no indivíduo

Mas como o capital se torna onisciente e onipotente como um deus terreno? A dupla inconsciência do capital talvez explique este mistério. Por se tratar formas sociais abstratas, despidas de conteúdo e cujo único objetivo é a multiplicação infinita do capital, as categorias basilares do capitalismo (trabalho, valor/dinheiro, mercadoria) se passam por neutras, meios com os quais as pessoas produzem para o seu sustento.

A dominação de um grupo ou um tirano sobre o povo, por mais que a ideologia corrente tente justificar, implica em choque de subjetividades que torna fácil a identificação da classe ou do indivíduo opressor. No capitalismo acontece algo semelhante quando o trabalhador identifica a elite como seu opressor. Mas dificilmente o trabalhador vai identificar o trabalho abstrato ou a lógica da mercadoria como a opressão que realmente importa no capitalismo. Isto porque tais formas sociais se parecem, ao olhar do trabalhador e do capitalista, meios neutros, legítimos e incontornáveis (quase naturais) para a reprodução da vida, quando, na verdade, são meios que se transformam em fins em si mesmos. O dinheiro, no capitalismo, é um meio que se torna um fim em si, que é o de se multiplicar, enquanto a vida humana, cuja satisfação deveria ser a finalidade do dinheiro, passa a ser um meio para o capital se multiplicar. A vida se torna um instrumento (meio) do capital no momento em que as pessoas se vendem no mercado como mercadoria, através do trabalho.

Na mesma medida em que o capital é inconsciente, por se tratar de uma forma social cujo “conteúdo” é uma grandeza abstrata (o valor), o indivíduo no capitalismo não tem consciência de que sua principal atividade social o transforma num mero instrumento para a reprodução do capital. Não tem consciência, também, de que quase todos os esforços, dele e da sociedade, para se constituí-lo enquanto subjetividade (como cidadão, trabalhador, consumidor, membro da família) objetivam, na verdade, sua subordinação instrumental ao capital, da forma mais eficiente possível, e não sua liberdade ou a satisfação de suas necessidades.

Esta dupla inconsciência do capital facilita enormemente o seu domínio abstrato sobre as pessoas, na medida em que elas incorporam suas coerções formais (o capital não exerce coerções de conteúdo) como se fossem leis naturais do comportamento humano. Não são necessários templos ou polícias para reforçar ou cobrar a fé no deus. Ela está introjetada no inconsciente dos indivíduos que se tornam, ao mesmo tempo, padres e policiais de si mesmos. Trabalhar, receber por seu quantum de trabalho  e consumir mercadorias são leis “naturais” que simplesmente devem ser seguidas. Todos os demais arcabouços de conteúdos morais e interpretativos são construídos sobre as categorias simples do capital (trabalho valor, mercadoria), de forma a facilitar sua reprodução sistêmica.

Nas antigas religiões, como no cristianismo, não saber do seu deus ou não louvá-lo era um pecado para o indivíduo. Os padres jesuítas discutiam seriamente se os índios teriam mesmo alma, uma vez que desconheciam o deus cristão. Os judeus eram amaldiçoados porque não louvavam o Cristo. No capitalismo, a ignorância acerca do capital é, pelo contrário, uma bênção para ele. Sem falar que negar o dinheiro como força motriz da vida costuma ser sinônimo de sabedoria.

Mas no fundo, todos sabem, que é o capital (Mamon, dinheiro, ouro) que está no centro da modernidade e subordina a vida das pessoas às suas necessidades. É o capital, no fim das contas, quem dá as cartas. Estas expressões, “no fundo” e “no fim das contas”, significam o que está inconsciente, submerso pela torrente ideológica do capitalismo. Mas, como diria Freud, às vezes,  a verdade inconsciente escapa no lapso de um dito (“o dinheiro é importante mas não é tudo na vida” que quer dizer exatamente o contrário, que é tudo na vida) ou duma piada (“o dinheiro não é tudo na vida, mas é 100%”, na verdade, uma afirmação muito séria).

Da mesma forma, a louvação do trabalho e do indivíduo trabalhador, tantas vezes cantada à esquerda e à direita, é cotidianamente desmascarada pela alegria que toma conta das pessoas com a proximidade do fim de semana ou da aposentadoria, quando o trabalho cessa, evidenciando o caráter torturante do trabalho na sociedade moderna.

O capital é um deus que obriga os humanos a trabalharem para que Ele possa se reproduzir indefinidamente. Trabalhar o máximo de horas, o mais intenso e até a idade mais longeva possíveis, de forma que as pessoas se tornem autômatos trabalhadores, cuja vida seja praticamente dedicada à reprodução do deus. Sem que sobre quase nada de vida que possa ser dedicada à uma existência realmente humana. O capital é um deus possessivo e sádico.

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