Fé evangélica e fascismo

Da série "Capitalismo em agonia"

Não é preciso muita perspicácia para constatar que o fanatismo e o fundamentalismo evangélicos se enamoram do fascismo. As atuais eleições falam por si a respeito desse lado sombrio da fé cristã que, em nome de Deus, odeia homossexuais, mulheres emancipadas, praticantes de umbanda e candomblé e comunistas - nome que os evangélicos dão a qualquer pessoa com convicções progressistas, principalmente os petistas da agora.

Gostaria de explorar um pouco essa região sombria (a sombra junguiana?) da alma evangélica, para tentar entender esse triste povo de Deus. Parece-me que todo esse fanatismo evangélico se fundamenta no medo que, depois, se transforma em ódio. Medo do outro que é feliz simplesmente sendo o que é, autoliberto de algumas amarras sociais do status quo para trilhar o caminhos que mais convém a seu corpo e sua mente.

O evangélico, para constituir sua identidade cristã contra um mundo pecador, se torna rígido e disciplinador: dos outros, mas também de si mesmo. É difícil ser evangélico. É necessário uma dose de autorrepressão (que Freud chamava de recalque) com a qual é impossível se manter satisfeito consigo mesmo. Os evangélicos têm a alma dura, austera e triste, mesmo que soltem alguma risada de vez em quando.

Por isso sentem raiva de quem, seguindo suas inclinações pessoais, resolveu provocar a subversão da ordem social "natural", dada pela divindade. Sentem raiva de quem decidiu conviver com os seus desejos de forma harmoniosa, como os homossexuais e as mulheres libertas da repressão sexual. Também têm raiva dos que, de alguma forma, acreditam na luta contra os status quo, em favor de uma sociedade mais justa, como as feministas, os ativistas LGBT e os progressistas. Mais raiva ainda sentem dos que cultuam outras divindades, como os praticantes do candomblé e da umbanda, tidos como adoradores do Demônio.

A demonização, aliás, é um dos fundamentos da fé evangélica no Brasil. Basta prestarmos atenções em suas cerimônias e constatamos que o Demônio costuma ser tão ou mais presente que Deus nas pregações. Boa parte do culto evangélico é dedicado à expiação do mal. Em geral (há exceções, o que confirma a regra) a constituição da identidade evangélica se dá principalmente pela via negativa, na qual o povo de Deus é se define como tal de forma defensiva e até paranoica, fechando-se em comunidades puritanas, em luta contra o mundo tomado pela depravação e a corrupção do corpo e da alma.

Os demônios estão soltos na Terra. O homem evangélico, ungido pela fé como pessoa de bem, deve se purificar do mundo, juntar-se a seus irmãos de fé e numa comunidade que o proteja da tentação do mal. E, quando houver força suficiente nas legiões de Cristo, as forças demoníacas devem ser atacadas e eliminadas com a espada de luz do senhor, cujo portador é o homem evangélico.

Que demônios são esses que infestam a pátria pecaminosa? 

O demônio fêmea

Os homossexuais e as mulheres libertas e/ou feministas cometeram o pecado mortal de borrar a sagrada fronteira entre homens e mulheres, entre o masculino e o feminino. O homem deve honrar o pênis que a Deus lhe deu e ser forte, viril, racional, ativo, disciplinado e dominador. O contrário da mulher que, por natureza, é frágil, sedutora, emotiva, passiva, indisciplinada e submissa. Para os evangélicos esta é a ordem natural do mundo, cujo rompimento promovido pelos ativistas de direitos LGBTs e das mulheres, está causando o caos social do mundo atual.

É interessante notar como as características masculinas são as mesma do capital, personificadas no profissional, o trabalhador ideal e hiper-eficiente, competitivo e racional, capaz de separar sua vida e sentimentos pessoais do exercício profissional, que deve visar sempre a máxima eficiência. O capital é masculino, ou melhor, incorporou na forma social capital as características que a cultura feudal, fortemente patriarcal, atribuía aos homens . De certa forma, isso foi um avanço, pois ao desencarnar o capital dos machos concretos e reinvesti-lo numa forma abstrata, o capitalismo permitiu, por exemplo, que as mulheres pudessem assumir funções que, no mundo medieval, seriam exclusivas dos homens. O capitalismo abriu as portas do feminismo e da possibilidade de igualdade entre homens e mulheres, impensável nas culturas pré-capitalistas, quase todas fortemente masculinas.

Por outro lado, o capitalismo não pode cumprir esta promessa de igualdade por ele aberta, pois mesmo deslocando o masculino do macho concreto para uma forma social (o capital), o fato é que ele valoriza as características humanas historicamente construídas como masculinas, em desfavor das femininas. A inércia cultural do patriarcalismo, que há milênios, no Oriente e no Ocidente, inferioriza as mulheres, somada à identidade masculina do capital, cuida para que as mulheres nunca cheguem, de fato, à emancipação.

Nessa tensão, própria da modernidade, entre a possibilidade de emancipação feminina (liberalismo dos costumes) e a regressão da mulher ao papel submisso das culturas pré-capitalistas patriarcais (conservadorismo) , a fé evangélica se posiciona claramente do lado conservador. Sem negar o capitalismo, os evangélicos propõem uma reencarnação dos caracteres femininos (não capitalistas) na mulher concreta que, por isso, deve se submeter ao homem: este é a cabeça (racional) do casamento, enquanto a mulher seria o corpo (irracional, próxima à natureza). Esta reencarnação não nega o capital, pois não tenta o retorno a uma cultura pré-capitalista, apenas nega as possibilidades (limitadas) que o capitalismo oferece à emancipação feminina, optando, em nome da ordem divina do mundo, por manter o patriarcado estrito e concreto das culturas pré-capitalistas.

A razão real de tal rigidez certamente repousa no medo ancestral que o homem sente em relação à mulher, principalmente da mulher que decide se libertar sexualmente. A fé evangélica se esmera em cuidar da sexualidade da mulher, que deve ser pura, fiel e recatada. O corpo feminino deve ser objeto de um severo controle por parte da igreja.

Em pior situação estão os "pervertidos sexuais" que não se encaixam no dualismo heterossexual homem-mulher. Estes, na visão evangélica, não cumprem o destino natural de seus corpos, estabelecido por Deus no nascimento. Os que nasceram com pênis e recusam a virilidade do "homem" e as que nasceram sem pênis e se desviam da sensualidade submissa da "mulher"  são seres monstruosos, que promovem a desordem da natureza divina e só podem estar doentes da alma, que certamente foi envenenada pelo Demônio.

Aos não héteros só é dada a opção de retornar ao leito natural de seu destino (por isso, a necessidade da instituição legal de uma "cura gay"), uma vez que nem mesmo uma posição subordinada lhes será oferecida no mundo regido pela ordem divina da fé evangélica. Ao homem que insiste em querer ser fêmea e à mulher que se afirma como macho, só restam o desprezo, a execração e a repreensão severa, na forma de castigo físico e psicológico, prisão e, no limite, eliminação física.

O demônio negro

Em relação aos praticantes do candomblé e da umbanda, os evangélicos sentem um pavor extremo. Como ousam acreditar em deuses outros que não o cristão? E ainda deusas? Como um ser superior pode ser mulher? Como não há bem e mal claramente delimitados e delimitáveis? E aquelas danças, aqueles transes, aquelas vozes e possessões? Quanta anarquia, quanta heresia, quantos demônios! É muita subversão ao mundo patriarcal, hígido, hierárquico, disciplinado e disciplinador.

Por trás da aversão da fé evangélica às religiões sincréticas, como candomblé e umbanda, há implícito um forte preconceito racial contra o não branco, principalmente o negro. Os evangélicos não podem ser racistas à maneira europeia ou norte-americana, regiões onde os negros são minoria numérica e a miscigenação é pouca. A maior parte dos evangélicos brasileiros, inclusive pastores, é negra ou mestiça e, por isso, um racismo que se baseie na genética ou em traços aparentes, como a cor da pele e o tipo de cabelo, estaria fadado ao fracasso.  A estratégia passa pelo embranquecimento da alma, demonizando o candomblé e a umbanda, religiões que expressam, por meio da fé, a identidade dos negros brasileiros.

Ao contrários dos escravos norte-americanos, submetidos à repressão puritana protestante desde sempre, os negros brasileiros tiveram (e forçaram) um "espaço espiritual" para umbanda e candomblé, que possibilitou o desenvolvimento e manutenção de sua identidade negra no plano espiritual e cultural. Como são religiões sincréticas, que absorvem elementos da religiosidade branca (catolicismo e kardecismo) e indígena, a umbanda e o candomblé possibilitaram ainda pontes de comunicação com a cultura dominante do branco, mas não de forma submissa (como acontece na esfera sócio-econômica) e sim nos termos de sua própria mitologia, entendida como visão de mundo.

Ao recusar categoricamente a umbanda e candomblé, literalmente demonizando-as e tratando seus líderes e praticantes como adoradores do Demônio, o que a fé evangélica faz é recusar uma das mais importantes formas de expressão da identidade dos negros brasileiros, justamente aquela que, junto com a música negra (samba e choro), afirma o negro como diverso, não inferior ao branco e ainda mantendo com a cultura dominante (cristã, branca) fecundos canais de troca simbólicas, numa "simbiose cultural" que enriqueceu a ambas.

A fé evangélica oferece às pessoas negras a possibilidade de igualdade com o branco, desde que abram mão de toda a identidade negra que seus ancestrais construíram, a duras custas. Identidade da qual a umbanda e no candomblé são expressões fundamentais. Em que pese os erros e os horrores do catolicismo, este foi muito mais sábio ao fazer "vistas grossas" ao sincretismo espiritual do povo, que ao sair das missas, recorria às benzedeiras e terreiros. O rígido policiamento evangélico da fé, exercido não apenas pelos pastores, mas principalmente pelos fieis, sobre os outros e sobre si mesmos, veda o "desvio" sincrético da fé cristã.

Esta igualdade que a fé evangélica oferece aos negros, às custas da recusa da identidade negra brasileira, não deixa de ser uma espécie de embranquecimento da alma. O que, por sua vez, é também uma incorporação do negro (desta vez com o 'espírito limpo' de sua negritude) ao capital que, além de masculino, é branco. É que os negros, assim como as mulheres, são caracterizados (marcados) pela modernidade com os aspectos negativos do capital: irracionalidade, proximidade com a natureza, ausência de autocontrole e competitividade, inaptidão para o trabalho e sensualidade exacerbada.

O processo da fé evangélica, em relação aos negros, é inverso ao das mulheres. No caso destas, as características abstratas (masculinas) no capital são 'reencarnardas' no homem concreto, o qual mantém a mulher numa posição subordinada, como nas culturas semi-capitalistas do Brasil arcaico. No caso dos negros, as características abstratas (brancas) do capital são mantidas como abstrações e, portanto, ao alcance do indivíduo negro concreto, que deve abrir mão de sua identidade (alma) negra brasileira, expressa principalmente pelo candomblé e umbanda (mas também pela cultura do samba e da capoeira, por exemplo).

O demônio vermelho

Os comunistas (na verdade, os progressistas, ou seja, as pessoas simpáticas à ideia de justiça social), por sua vez, questionam o mérito do trabalho, que é sagrado, pois Deus trabalhou seis dias e folgou apenas um. Esses pecadores vermelhos querem alimentar a preguiça dos vagabundos com o suor dos que seguem os mandamentos divinos do trabalho duro. A teologia da prosperidade diz que fé e trabalho são mais que suficientes para uma boa vida. Se quer ter o seu dinheiro, caro vagabundo, converta-se e mereça, pela fé e pela labuta, o quinhão de prosperidades que Deus lhe reservou como prêmio.

Os "comunistas" querem conspurcar a justiça divina com a justiça social e os direitos humanos que protegem os criminosos e os preguiçosos. Tal justiça vermelha nada mais seria que a justiça do demônio, distributivista e piedosa para com os vagabundos, praga pecadora de ateus comunistas e padres vermelhos da teologia da libertação.

Por aí se vê o quanto a fé evangélica é, em termos sociais,  uma ideologia do capital, que justifica, com uma leitura no mínimo enviesada da Bíblia, o inferno social da desigualdade crescente do capitalismo atual como ordem divina natural. Pouco adianta alertar que o Cristo, além de milagreiro, praticava e pregava ao povo de Deus um altruísmo extremo, inclusive em termos de riquezas mundanas: há quem diga, com razão, que Jesus foi o primeiro comunista do mundo ocidental. O Sermão da Montanha (talvez o ápice do Novo Testamento) passa ao largo dos cultos evangélicos.

Normalmente, as pautas progressistas não se restringem à justiça social e acabam por se encontrarem com outras reivindicações igualitárias, do chamado ativismo identitário das mulheres, dos LGBTs e dos negros. Ou seja, o demônio vermelho acolhe também os demônios fêmea e negro. Sem falar que o progressismo conta, entre suas fileiras, com muitos intelectuais e acadêmicos, sobre os quais sempre paira a suspeita do ateísmo, uma vez que essa gente insiste em deixar Deus fora de suas elucubrações mentais.

Por dar guarida a todos esses demônios, os progressistas em geral, ou melhor, os "comunistas" se tornam uma espécie de demônio dos demônios. O PT, que no momento atual, detém a hegemonia do campo das esquerdas, torna-se o catalisador de todas as corrupções da alma e do corpo, do céu e da terra, abrigando sob seu manto vermelho os demônios a serem temidos, odiados e combatidos. Mais recentemente, o PT passa a ser visto pelos evangélicos como uma anti-igreja, uma espécie de igreja de Satanás disfarçada de partido político, cuja missão é tomar o poder e promover a vagabundagem e a bandidagem, a depravação e a corrupção, com o intuito de instaurar, por fim, o Reino de Lúcifer na Terra.

O ativismo antipetista da fé evangélica é a concretização, no plano terreno, da luta espiritual contra a corrupção da ordem divina promovida pelos demônios fêmea, negro e vermelho. Por ser uma instituição partidária, o PT se torna o alvo mundano das igrejas evangélicas, que projetam na luta política a disputa apocalíptica entre o bem e o mal.

Os petistas e seu líder são os "comunistas" por excelência, de alma corrupta e corruptores do mundo. São soldados dos demônios vermelho, negro e fêmea. Contra eles devem se levantar os evangélicos, o verdadeiro povo de Deus que tem a missão de restaurar a ordem divina do mundo, limpando-o da corrupção.

Medo, raiva e inveja: as sementes do fascismo

Mais que raiva, no fundo os evangélicos sentem inveja da liberdade de espírito a que esses outros, "pecadores", se permitem, enquanto sua fé cinza e austera encarceram seu espírito numa cela estreita, cujas paredes são a autorrepressão sexual, o patriarcado rígido e castrador e a submissão ascética ao capital. Por consequência, seu corpo e sua alma são servos dóceis do modo de vida capitalista consumista, individualista e de devoção cega ao trabalho: o evangélico vive uma vida para o mercado, a ponto de não sabermos se seu deus é de fato Cristo ou Mamon.

A inveja, por sua vez, contém uma dose de ódio contra si mesmo. Quando o evangélico inveja a alegria, a liberdade e a luminosidade do outro, ele odeia, sem saber, a tristeza estrutural e a prisão sombria de sua alma acorrentada a um Cristo punidor, patriarcal e desumano, mais parecido, na verdade, com o Capital, este sim, um deus implacável na punição dos que não se curvam às suas leis e cuja essência abstrata (valor) é profundamente desumana.

Mas a raiva de si que a inveja contém não pode vir à consciência do evangélico, pois isto o levaria fatalmente a uma autocrítica e, como consequência, uma mudança de sua estrutura interior, fazendo ruir sua identidade evangélica. Não, esta raiva deve ser direcionada para fora, contra os pecadores, que devem ser vistos como responsáveis pela anarquia pecaminosa que transformou o país numa Babilônia depravada. O pecados da sodomia, da libertinagem feminina, do comunismo e da macumbaria devem ser eliminados com a conversão dos infiéis. Se estes recusarem o Cristo evangélico, a solução é sua punição severa, pelo porrete, prisão ou eliminação pura e simples, com a bênção de Deus.

É neste ponto que o cristianismo evangélico dá as mão à besta fascista que quer emergir do inferno social do país e destruir tudo e todos à sua frente. Como bem observou Moishe Postone, para emergir, o fascismo precisa de um inimigo poderoso, daqueles que metem medo de verdade, e de argumentos inquestionáveis contra este inimigo. O fundamentalismo evangélico fornece as duas coisas.

O inimigo são os infiéis demoníacos, subversores da ordem divina do mundo: gays, libertinas, comunistas e macumbeiros.

O argumento contra os pecadores é o mais infalível de todos: eles infringem as leis de Deus e têm o Demônio como aliado e mentor. Por isso metem medo, muito medo, e despertam a ira dos justos. E devem ser combatidos implacavelmente, com a espada (do Senhor) se necessário.

A fé evangélica está pronta para o fascismo. Este, na verdade, estava sendo gestando há décadas no útero obscurantista de suas igrejas evangélicas, principalmente as pentecostais. Uma gestação filha do medo e da raiva, esperando apenas a crise e o líder ideais para vir ao mundo e mostrar sua face fascista. O momento parece que chegou.

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